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Paulo Betti, ator de “Império”, se preocupa com retrocesso no setor cultural brasileiro

Paulo Betti, ator de “Império”, se preocupa com retrocesso no setor cultural brasileiro

Com uma carreira repleta de novelas, filmes e peças teatrais de sucesso, o ator Paulo Betti filosofa sobre fofocas e fake news, fala do papel fundamental das artes nesses dias sombrios e rememora a sua infância e a sua juventude entre Rafard, Sorocaba, Piracicaba e Campinas.

Toda noite, Paulo Betti invade milhões de lares brasileiros para espalhar fofocas, maledicências, boatos e futricas. E as pessoas adoram. No papel do blogueiro impiedoso Téo Pereira, o ator brilha na reexibição da novela “Império”. E há mais de quatro décadas tem sido assim. Em 1980, ele estreou na TV, na novela “Como Salvar Meu Casamento”, na extinta TV Tupi. De lá para cá, atuou em dezenas de novelas, filmes e peças teatrais. Conquistou dois prêmios Molière e três troféus Mambembe. Já foi galã, vilão e bufão.

Hoje com 68 anos, ele é um apaixonado pelo universo caipira do interior de São Paulo: nasceu em Rafard, foi batizado em Piracicaba, cresceu em Sorocaba e ainda viveu por um período em Campinas. Há anos, trocou essa paisagem (cada vez menos) bucólica pelos contornos sensuais do Rio de Janeiro. Mas ainda se orgulha de suas origens e cultiva seu lado tabaréu.

Na entrevista a seguir, ele fala à 29HORAS da praga das fake news, dos baques sofridos pelo setor cultural e do papel fundamental desempenhado pela arte na missão de trazer um pouco de luz a esses dias sinistros.

 

Foto - Divulgação

Foto – Divulgação

 

Você nasceu em Rafard, cresceu em Sorocaba e ainda passou alguns anos dando aulas de artes dramáticas na Universidade de Campinas. Que recordações guarda do Interior de São Paulo?

De fato nasci em Rafard e, com 3 anos, fui para Sorocaba. E parte da minha família foi para Piracicaba e para Campinas. Por causa disso, eu sempre ia com a minha mãe a essas cidades. Tenho um carinho imenso pelo Interior de São Paulo. É a minha praia. Sinto saudades das pessoas, das comidas e da música – adoro o cururu, o repente paulista. Tinha uma paixão muito grande pelos clubes de futebol da região: o São Bento de Sorocaba, o Nhô Quim (XV de Piracicaba) e os campineiros Guarani e Ponte Preta, a lendária. Guardo ótimas lembranças de todos esses lugares. Fui batizado em Piracicaba e, em Campinas, dava aulas sob as árvores no jardim da Unicamp.

Nos anos 1980, você participou da concepção do espetáculo “Na Carreira do Divino”, que exaltava a cultura caipira. Você acha que o Brasil precisa valorizar mais esse patrimônio?

Essa peça foi um marco na minha carreira. A montagem estreou em 1979, livremente inspirada em um livro escrito pelo professor Antonio Candido (1918-2017), “Os Parceiros do Rio Bonito”, que mostrava um estilo de vida baseado no compartilhamento. Os caipiras sempre tiveram uma tradição de ajudarem uns aos outros. Essa cultura deveria ser valorizada e incentivada. Essa forma solidária de viver é um bom exemplo, nesses tempos de individualismo exacerbado, de cada um por si. É algo que o nosso país está precisando muito neste momento.

A sua mãe, dona Adelaide, foi empregada doméstica. Até pouco tempo, essa profissão era estigmatizada e desprezada, mas agora as domésticas até protagonizam novelas e filmes no cinema. Como você vê essa mudança?

Minha mãe trabalhou por muito tempo como doméstica. E isso foi decisivo na minha formação. A família para a qual ela trabalhava me arranjou uma vaga em uma ótima escola pública para que eu pudesse estudar. Fui educado em uma escola experimental, criada para filhos de professores de outras escolas da cidade. Eu tive muita sorte. O ensino era excelente. O triste é que, naquela época, as domésticas não tinham carteira profissional, não tinham nenhum direito trabalhista e nenhuma proteção social. O que elas fazem é um trabalho muito delicado, que acontece dentro das casas das famílias. Por isso mesmo, a categoria é enorme, mas pouco articulada. Cada uma fica isolada em seu trabalho. Que bom que tudo mudou, que a profissão hoje é totalmente regulamentada e que essas bravas mulheres deixaram de ser “invisíveis”.

 

O ator na peça "Biografia Autorizada" - Foto: Divulgação

O ator na peça “Biografia Autorizada” – Foto: Divulgação

 

Você já interpretou dezenas de personagens. Quais são os seus prediletos?

Acho que os meus prediletos são aqueles que ficaram mais marcados no imaginário do público. Gosto quando um personagem se torna popular e cai na boca do povo. Foi assim com o Timóteo (de “Tieta”), com o Ypiranga Pitiguary (de “A Indomada”), com o Carlão Batista (de “Pedra Sobre Pedra”) e com o Téo Pereira (de “Império”). No cinema, com o Lamarca e com o Ed Mort.

O blogueiro Téo Pereira, criado em 2014 para a novela “Império” e agora de volta ao horário nobre, tinha tudo a ver com aquela época, quando o culto às celebridades e as fofocas estavam no auge. Atualmente nem existem mais blogueiros! Como seria o trabalho do Téo Pereira hoje?

A fofoca sempre existiu. Segundo o psicanalista José Ângelo Gaiarsa, que escreveu o “Tratado Geral Sobre a Fofoca”, muita gente respira e se alimenta de fofoca. Gaiarsa observa que, quando fazemos fofoca sobre alguém, colocamos nessa pessoa tudo o que temos de pior dentro da gente. E, ao fazermos isso, nos livramos de qualquer defeito, nos tornamos modelos de perfeição. Consequentemente, além de fazer mal ao outro, frustramos toda e qualquer possibilidade de mudança interna que possa nos ajudar a evoluir, a melhorar, a nos corrigirmos. E é assim mesmo!

O Téo ocupava um espaço que hoje é o da fake news, do jornalismo sem ética. Ele inventava notícias, distorcia fatos, destruía reputações, era maldoso. De certa forma, foi um precursor desse Gabinete do Ódio que funciona em Brasília.

Nas novelas do Aguinaldo Silva, os gays são sempre tipos exagerados, grotescos e bizarros. O que você tem a dizer àqueles que consideram que esse tipo de atuação caricata só serve para reforçar os preconceitos usualmente associados aos homossexuais?

O Aguinaldo faz novelas, ele vive de altos índices de audiência. Ele carrega nas tintas e nas características de cada personagem mesmo. E é muito bem-sucedido nisso, é um craque. E não é só ele que faz isso, o Brasil tem uma tradição nessa composição cheia de trejeitos, desde os tempos de Oscarito e Ronald Golias. Eu mesmo me considero adepto desse tipo de atuação, quando cabe. Nesse caso específico, me preocupei com a interpretação histriônica, mas foi libertador quando um parente meu gay, que mora em Votorantim, me ligou dizendo que estava adorando o personagem e que o Téo estava até ajudando na aceitação desse jeito de ser mais extravagante e carnavalesco. O Téo Pereira é a chamada “bicha louca”, e tem muita gente que é assim, ele não é uma invenção do além.

 

Paulo Betti com a atriz Letícia Birkheuer na novela "Império" - Foto: Divulgação

Paulo Betti com a atriz Letícia Birkheuer na novela “Império” – Foto: Divulgação

 

Por falar em atuações anedóticas, como você avalia a performance da Regina Duarte no papel que ela escolheu recentemente para interpretar?

A trajetória da Regina foi uma coisa trágica, sem dúvida, não tem nada de cômico. Ela vem de uma consciência política, lá do tempo do seriado “Malu Mulher”, mas foi decaindo e se metamorfoseando até se converter nesse ser amargurado que tentou justificar a Ditadura Militar e apoiou o governante que conduz o nosso país de forma desastrosa. É muito triste.

Como é que você acha que o setor cultural vai se reerguer após esse desmanche?

O setor cultural está sofrendo um grande retrocesso, um verdadeiro desmonte executado de forma absolutamente irracional. Eu acredito e luto para que consigamos reconstruir tudo o que está sendo desmantelado. Em 2022, com certeza, vamos limpar a área e as plantas voltarão a florescer.

A quarentena foi um período produtivo para você? Você gostou de encenar virtualmente seu monólogo “Biografia Autorizada”?

Logo no início da quarentena, tive a oportunidade de fazer apresentações virtuais da peça. Foi um teatro possível, uma forma de arte respirando por aparelhos. O espetáculo foi criado para narrar a minha trajetória, a minha existência, mas acabou sendo importante para a minha sobrevivência. É fundamental nos mantermos na ativa, seja do jeito que for. A arte é sempre necessária, ela é fundamental – ainda mais em tempos sombrios como este que vivemos. Oferecemos instantes de respiro e de trégua no meio dessa loucura toda. Nós vamos resistir. O belo sempre vence no final.

 

Betti com a esposa, a comediante Dadá Coelho - Foto: Divulgação

Betti com a esposa, a comediante Dadá Coelho – Foto: Divulgação

 

Como foi o confinamento com a sua esposa, a atriz e comediante Dadá Coelho, durante a quarentena? Vocês têm projetos de atuar juntos?

A nossa troca ficou ainda mais intensa, com essa convivência forçada. Como ela é comediante, eu me considero um felizardo: por causa dela, consegui rir muito durante a quarentena. Estamos pensando em fazer algo juntos, sim. Temos várias ideias na cabeça, desde peças de teatro a podcasts. Uma das possibilidades é criar algo inspirado em Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, tentando adivinhar como seria a vida desse casal de filósofos franceses nos dias de hoje.

Voltando à TV, é verdade que você vai encarnar mais uma vez o Visconde de Mauá, agora na novela global “Nos Tempos do Imperador”?

Não tem nada confirmado sobre essa participação em “Nos Tempos do imperador”, que conta a história de Dom Pedro II – contemporâneo do visconde. O que é certo é que estou escalado para a novela das 18h que virá depois dessa trama histórica. Chama-se “Além da Ilusão”, está sendo escrita por Alessandra Poggi e vai marcar a estreia da Larissa Manoela na Globo. Eu vou interpretar o dono de um cassino, casado com a Zezé Polessa.

Por fim, agora vacinado, o que você mais quer voltar a fazer? Do que mais sente saudades lá dos tempos do “velho normal”?

O que eu mais sinto falta é do teatro, do palco, dos artistas se reunindo presencialmente, com o corpo e a alma. Não vejo a hora de poder voltar com tranquilidade ao cinema, a apresentações musicais e aos estádios, claro! É tão bacana assistir a tudo isso ao vivo. Essa catarse coletiva me faz muita falta.

 

Foto - Divulgação

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Kátia Barbosa, jurada do “Mestre do Sabor”, traz em sua culinária o sabor da comida popular e a força da mulher brasileira

Kátia Barbosa, jurada do “Mestre do Sabor”, traz em sua culinária o sabor da comida popular e a força da mulher brasileira

Criadora dos famosos bolinhos de feijoada, dona do botequim Aconchego Carioca e jurada do reality “Mestre do Sabor”, a sempre bem-humorada Kátia Barbosa é a síntese da mulher brasileira, que sabe viver em meio a adversidades e, disso, trazer prosperidade.

Feijão preto, paio, linguiça, carne seca, costelinha, lombo, bacon e alho. Para dar liga, farinha de copioba, que é mais fininha e torradinha do que a farinha de mandioca comum. Para rechear, tirinhas de couve com mais bacon. A arquitetura de uma obra de arte é engenhosa, combina um monte de ingredientes e um bocado de processos. É preciso dessalgar, cozinhar, temperar, refogar, empanar e fritar. Foi preciso também evocar memórias afetivas para se chegar ao bolinho de feijoada. A dona desse feito tem nome: Kátia Barbosa

 

Foto - Divulgação

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Chefs estrelados de diversas partes do mundo, sambistas de cada canto do Rio de Janeiro, foodies do Brasil todo já enfrentaram fila para provar a iguaria. Embora se diga melhor vendedora do que cozinheira, Katita nunca gastou o gogó para levar multidões à Praça da Bandeira, na zona norte carioca. Naturalmente, suas generosas bolinhas de feijão viraram atrações da Grande Tijuca, junto à quadra do Salgueiro e à terceira maior floresta do mundo. Mais: eternizaram o Aconchego Carioca como um dos maiores botequins do país.

Um menu de tesouros fritos e criativos faz, sim, parte do legado. Porém, é o vestir a camisa da comida popular brasileira e o inegável carisma de Kátia que colocaram o bar na história da Gastronomia nacional. Mais do que a jurada mãezona e atual campeã do programa “Mestre do Sabor”, exibido nas noites de quinta-feira na TV Globo, ela é a defensora dos pratos com alma e técnica, do arroz com feijão de excelência, da rabada com habilidade, do escondidinho com perspicácia.
Mais desbocada e espirituosa do que se poderia imaginar para um reality show de culinária da TV, ela trilhou esse caminho como todos os outros de sua vida – espontaneamente. Há coisa de uma década, por exemplo, ela flechou o coração de Claude Troisgros: “Eu vi a Katita começar no primeiro restaurante, bem pequenininho. Vi ela entrar no mercado, crescer e se desenvolver. É uma cozinheira como ninguém, conhece a cozinha da terra, do povo e de família com muita sabedoria. É uma pessoa iluminada”.

 

Kátia Barbosa com os colegas jurados do reality "Mestre do Sabor", Leo Paixão e Rafa Costa e Silva - Foto: Divulgação

Kátia Barbosa com os colegas jurados do reality “Mestre do Sabor”, Leo Paixão e Rafa Costa e Silva – Foto: Divulgação

 

À lista de elogios que o chef francês costuma tecer faz ainda do bolinho de feijoada “uma das maiores maravilhas do mundo” e algo que não se expressa com palavras – foi ao Aconchego que Claude fez questão de levar o pai em sua passagem pelo Brasil. Para quem acha que o filho é que é celebridade, Pierre Troisgros foi um dos pioneiros da Nouvelle Cuisine, movimento que nos anos 1970 revolucionou não somente a trajetória da culinária francesa, mas mundial.

“Primeiro a Clarice, esposa de Claude, disse que ia trazer o namorado dela ao Aconchego. Quase morri quando vi quem era! Depois, no dia seguinte, ele apareceu com o cachorro e, como não tinha lugar, ficou em um degrauzinho tomando cerveja e comendo bolinho. Acabou voltando umas duas ou três vezes até me pedir a receita”, lembra-se Kátia.

Detalhe: mesmo com o passo a passo anotado, o preparo não deu certo. Resultado? Claude arrastou seu fiel escudeiro, Batista, até a cozinha tijucana e, entre a degustação de um quitute e outro, aprendeu o processo, mas não o segredo. “Como o bolinho de arroz com o arroz que sobra, o bolinho de feijoada me pareceu óbvio”, desdenha a autora. Mas ali, naquela massa, tem as lembranças da mãe engrossando o feijão com farinha, uma criatividade nata e a capacidade de sublimar as combinações mais corriqueiras.

 

A chef com Claude Troisgros - Foto: Divulgação

A chef com Claude Troisgros – Foto: Divulgação

 

Alma brasileira

Tudo dito até agora poderia ser pura ladainha, não fosse o tal bolinho uma alegoria de sua própria inventora. Cascudinha por fora, Kátia desmancha por dentro. Mais do que a forma, sabe que é o recheio que importa. Entre atender mesas e buscar os pratos na cozinha liderada pelo irmão, formou-se chef pelo olhar atento, pela sensibilidade. O aprimoramento, todavia, veio com a dedicação.

“Meu repertório era curto e eu não tinha grana, então passava horas em livrarias. Não lia receitas, porque não queria aprender a reproduzir, queria entender o comportamento dos ingredientes, as questões químicas”. Em outras palavras, a carioca devorou enciclopédias e livros de hoje colegas como Ferran Adrià e Alex Atala. Viajou o quanto pode e, por tentativa e erro, deu forma a uma metodologia instintiva, empreendedora por necessidade, brasileira até dizer chega.

Sua comida traduz sua história, nasce da vulnerabilidade e transborda abundância. Afinal, ao pé do primeiro fogão, além do irmão cozinheiro, eram mais sete crianças. Uma mãe lavadeira e um pai camelô. “Imagina fazer comida para nove filhos todo santo dia? A cozinha da minha mãe era sobrevivência. Era usar o aipim quando não tinha dinheiro para o pão, misturar o fubá com leite de coco e açúcar pra dar sustância. E quando não tinha nada, pegar o mamão verde no quintal para fazer picadinho”, conta Kátia.

O pai, por sua vez, cozinhava quando a esposa saía: “Aí todo mundo podia entrar na cozinha. Ele também levava a gente à Feira de São Cristóvão para comer rabada, mocotó e carne de sol. Para ele, comer era muito importante, porque ele passou fome, mas o mais importante era mostrar que comer aquelas coisas era um jeito de preservar a cultura nordestina”.

 

A cozinheira com sua filha, a também chef Bianca Barbosa - Foto: Berg Silva

A cozinheira com sua filha, a também chef Bianca Barbosa – Foto: Berg Silva

 

Valorizar o simples

Em vez de panelas, fuets e facas, a herança paraibana, o orgulho das origens e a infância nas vizinhanças do Complexo do Alemão são suas tatuagens. São traços sentidos no corpo, como ter doado o rim à sobrinha ou dado luz às filhas. A primogênita, Bianca, por sinal, além de cozinheira talentosa, comandará o novo restaurante da mãe, o Kalango, que abre este mês em Botafogo. Copa lombo com cuscuz nordestino, rubacão, sonho de bobó de camarão e vaca atolada estão entre os destaques do menu criado a quatro mãos.

A par da novidade, David Hertz, fundador da Gastromotiva, parceiro de Jamie Oliver e um dos maiores empreendedores da gastronomia social do mundo, repete a torto e a direito que “não bastasse fazer a melhor comida brasileira, a Kátia representa a mulher brasileira, sabe o que é viver em meio a adversidades e disso trazer prosperidade”.

Não à toa, sempre que pode ela leva essa trajetória consigo. Nessas, o percurso da chef já foi base de aulas emocionantes e jantares em Londres, Nova York e Copenhague. “Às vezes a gente precisa ir longe para ver o que está na nossa cara. Anos atrás, na Inglaterra, o Daniel Boulud serviu uma sobremesa bem cremosa, com tapioca e leite de coco, uns cubinhos bem pequenininhos de manga e um praliné de castanha de caju. Pensei: como é que um francês que mora em Nova York fez isso aqui melhor do que brasileiro? Na hora saquei que a questão era valorizar o simples, porque não adianta nada viajar o mundo inteiro e não saber fazer uma carne de panela”. Misto de reflexão e desabafo, a recordação é cotidiana durante as gravações do “Mestre do Sabor”.

Por incrível que pareça, o amigo Claude deu o maior apoio, mas foi Boninho quem escolheu a cozinheira como jurada. Desde então, há três anos, ao longo de pelo menos duas semanas, dez horas por dia, Katita se esforça para combater o “complexo tupiniquim” que pesa sobre a comida popular brasileira, para afirmar-se enquanto mulher preta e periférica e para inspirar em rede nacional: “Mais do que criar bolinho e ser copiada, o legal é motivar os botequins a melhorarem. O Aconchego foi um divisor de águas, hoje todo bar tem uma linha de bolinhos e isso me enche de orgulho. Quero passar isso também para os candidatos e para quem assiste ao programa”.

Kátia chora, briga, brinca e se emociona. Na frente e detrás das câmeras. Em casa, evita miúdos, ama vegetais, come tudo com pimenta e abre mão de qualquer coisa para ficar com Madá, a netinha de quatro anos. Nas redes sociais, esquece de postar a linha de congelados “Kátia Barbosa em Casa“, mas jamais o produto de um colega de profissão. Na cozinha, faz questão de trabalhar com jovens para remoçar e de se embrenhar no próprio DNA. E, no fim do dia, a conclusão é sempre a mesma: “Não é que essa merda de fazer bobó direitinho deu certo?”.

 

Os famosos bolinhos de feijoada, criação de Kátia. - Foto: Eduardo Almeida | Estudio Semente

Os famosos bolinhos de feijoada, criação de Kátia. – Foto: Eduardo Almeida | Estudio Semente

Alessandra Negrini, estrela de “Cidade Invisível”, aponta a necessidade de preservar a cultura e o meio ambiente

Alessandra Negrini, estrela de “Cidade Invisível”, aponta a necessidade de preservar a cultura e o meio ambiente

Alessandra Negrini segue atuando em trabalhos no streaming e em formatos online com resiliência e intenso dinamismo.

Na vida virtual e on demand que levamos, Alessandra Negrini está em todas. A atriz paulistana está no elenco de “Cidade Invisível”, série da Netflix que estreou este ano e narra as investigações de um assassinato, que se desenrola em uma batalha entre o mundo real e um reino habitado por criaturas folclóricas brasileiras, que vivem entre as pessoas comuns. Sua personagem, Inês, é dona de um bar em um bairro boêmio do Rio de Janeiro. A empresária se revela meio bruxa, até que mostra sua identidade folclórica – ela é a Cuca. “Nana neném/Que a Cuca vem pegar/ Papai foi na roça/ Mamãe foi trabalhar”, Inês cantarola nas cenas.

Além da bruxa, que não tem cabeça de jacaré na série – diferente das histórias de Monteiro Lobato – “Cidade Invisível” traz a sereia Iara, o saci, o curupira, entre outros personagens da cultura popular do Brasil. E se engana quem pensa que a produção foi assistida apenas por quem ouviu essas lendas desde cedo. A série foi distribuída para 190 países e esteve entre os conteúdos mais visto da plataforma em 40. “É muito lindo levar nossas histórias e as raízes brasileiras para fora. Uma aventura fascinante e eu me sinto muito honrada em fazer parte desse projeto”, conta. A segunda temporada já foi confirmada pela Netflix.

Desde que a pandemia restringiu as atividades culturais, grupos teatrais criaram peças encenadas virtualmente. Espetáculos online assumiram uma linguagem cinematográfica, criando um híbrido entre cinema e teatro. Foi o caso da peça “A Árvore”, protagonizada e produzida por Alessandra, que esteve em cartaz de fevereiro a abril no teatro Faap. A atriz interpretou uma escritora que, ao ser enredada por uma planta, começa a se transformar em uma árvore. A personagem passa a maior parte da trama dentro de seu apartamento — instalação que foi montada no teatro –, mas cenas gravadas em que ela aparece em uma floresta também atravessam a narrativa. “Tentamos fazer esse diálogo da palavra com a imagem”, explica.

 

Foto: Pablo Saborido | Amaro

Foto: Pablo Saborido | Amaro

 

Entre saudades da rua, do Carnaval de São Paulo, de estar com amigos e família, Alessandra segue encarando a realidade com sua conhecida naturalidade, mas com muito trabalho. Neste mês, estreia nos cinemas o filme “Acqua Movie”, o sexto longa do diretor pernambucano Lírio Ferreira, em que Alessandra interpreta uma mãe que viaja de carro com seu filho, saindo de São Paulo até Pernambuco em uma travessia para resgatar o afeto mútuo. Veja a seguir os principais trechos da entrevista que ela concedeu à reportagem da 29HORAS.

Sua relação com a cidade de São Paulo sempre foi intensa, como rainha do bloco Baixo Augusta e moradora. O que mudou com a pandemia? Você vê a cidade de outra forma agora?

Tudo mudou. Primeiro ficou claro que a presença da natureza é importante, vital para a sobrevivência! Comecei a reparar nas árvores, tão generosas, no meio das grandes avenidas, do ar poluído. Como fazem diferença e, às vezes, a gente nem percebe. Passei a andar muito a pé, vejo as pessoas fazendo isso, virou uma questão de saúde mental. E o que é São Paulo sem a cultura? Sem exposições, cinema, teatro, bares? O que sobra? Os parques, a arquitetura, as luzes da cidade. Temos essa beleza também, temos que reeducar o nosso olhar para uma vida do lado de fora. Toda grande cidade tem isso! Nossa cidade pode melhorar muito nesse quesito. Imagina se os rios fossem despoluídos? Que diferença!

A pobreza nas ruas também aumentou muito. São Paulo é incrível, eu amo, mas só vai ser a grande cidade que ela pode ser quando acolher a todos, sem exceção.

Qual é o seu lugar preferido em São Paulo?

É difícil escolher apenas um. Adoro o Parque do Ibirapuera, o Estádio do Pacaembu, o Edifício Copan, a Rua Augusta e o Parque Buenos Aires.

 

Paulistana de corpo e alma, Alessandra é rainha do bloco de rua Baixo Augusta; na foto, ela no carnaval de 2018 - Foto: Frâncio de Holanda

Paulistana de corpo e alma, Alessandra é rainha do bloco de rua Baixo Augusta; na foto, ela no carnaval de 2018 – Foto: Frâncio de Holanda

 

De 2013 até 2020, como foi sua relação com o bloco? O que ele representa para você?

O Baixo Augusta acabou se tornando uma parte importante da minha vida, do meu ano, aconteceu de maneira inesperada, absolutamente espontânea. Aquilo foi crescendo, crescendo e nos últimos carnavais levamos mais de um milhão de pessoas para a rua! É uma explosão de alegria e uma experiência amorosa com a cidade. Ocupamos a rua com respeito, alegria e música! Não é lindo?! Só posso dizer que tenho muito orgulho de fazer parte dessa história que, sem falsa modéstia, se confunde com a própria história do crescimento do carnaval de rua de SP. Hoje é um dos maiores do Brasil. E para aqueles que ainda insistem em falar mal do carnaval, vale a lembrança da importância econômica desse evento para a cidade.

Além do Baixo Augusta, o que mais sente falta no carnaval? Como espera aproveitar os próximos quando as condições sanitárias permitirem?

As pessoas estão com saudade de ocupar as ruas, de estarem juntas sem medo, seja lá quando for, não precisa ser no carnaval! Precisamos estar uns com os outros, senão a vida perde o sentido. Queremos trabalhar e amar, é isso o que a gente quer e é o básico! A pergunta é: se já existe vacina, por que ainda estamos assim? Por que estamos tão longe do fim dessa pandemia? Até quando teremos que ver a vida dos brasileiros devastadas? É inadmissível! Não dá nem para pensar no carnaval do ano que vem!

Por falar em protocolos, quando você for vacinada, qual é a primeira coisa que pretende fazer ou qual lugar pretende ir?

Quando eu estiver vacinada…não sei, talvez encontrar amigos também vacinados e dançar um pouco, dar risada, mas enquanto todos não estiverem vacinados, não vai mudar muita coisa.

 

A atriz em "A Árvore", projeto híbrido de teatro e cinema - Foto: Divulgação

A atriz em “A Árvore”, projeto híbrido de teatro e cinema – Foto: Divulgação

 

O espetáculo “A Árvore” foi adaptado para o formato online neste ano. Como tem sido a experiência híbrida de teatro e cinema? Como é atuar com o intermédio da tecnologia no teatro?

Acabou não sendo uma peça e, sim, um híbrido com o audiovisual. Precisávamos fazer com que existisse uma conversa. No teatro nós temos o texto, as palavras são muitas; e no cinema a imagem é o que importa. Tentamos fazer esse diálogo da palavra com a imagem. Falo muitas vezes para a câmera, o que poderia ser um recurso teatral, mas também nos preocupamos muito com a beleza e a força da imagem. Tem uma viagem na criação das imagens que é, a meu ver, cinematográfica. E a trilha sonora é bem presente e embala tudo isso. Tivemos uma equipe de teatro e de cinema mesmo, atuando e criando de forma conjunta. Uma diretora de teatro, a Ester Lacava, e um de cinema, o João Wainer, isso foi um diferencial. A luz está bem ousada. Foi uma aventura muito interessante para nós, e espero que para o público também. Fiquei muito satisfeita com o resultado.

Como é a sua relação com as redes sociais? Por que ter 50 anos é assunto? Para você, quais são os temas urgentes que precisam ser discutidos por lá?

Fui descobrindo aos poucos. No começo, eu tinha vergonha de ficar postando, fazendo cara de linda, me enaltecendo. Pensava, ‘meu Deus, que coisa ridícula, esse exibicionismo todo!’. Aí eu fui me acostumando, vendo que o jogo é esse e eu tinha que fazer parte dele mesmo. O mundo vai mudando e a gente também muda. Descobri um lado legal, que é a brincadeira, o bom humor e a relação direta com os fãs. É divertido e me sinto querida, me faz bem. Quem não gosta disso? Além de ser um lugar para defender suas ideias e convicções, mostrar um pouco de quem você é. As pessoas gostam. Comecei a enxergar na rede social um espaço eficiente de comunicação e, mesmo que eu enfrente algum dilema diante da relevância de postar uma selfie, ainda assim, quando alguém diz ‘obrigada, você me traz esperança, alegrou o meu dia’, é bacana, passa a fazer algum sentido.

Discutir idade é um assunto antigo, fora de moda. O Brasil precisa se atualizar, mas aos poucos as pessoas vão se acostumando e, quem sabe um dia, a gente vire um país adulto, como são os países europeus onde as pessoas aprenderam a desfrutar com prazer e sem culpa as suas diferentes idades. E o público me acompanha não pela minha idade. Pelo menos eu quero acreditar, acho que é mais profundo do que isso, do que essa superficialidade. As pessoas gostam de mim pelo que sou. Eu sou um conjunto de coisas, sou várias coisas, não quero ser reduzida a apenas isso.

 

Alessandra Negrini no papel de Inês, na série "Cidade Invisível", ao lado do ator Marco Pigossi - Foto: Alisson Louback | Netflix

Alessandra Negrini no papel de Inês, na série “Cidade Invisível”, ao lado do ator Marco Pigossi – Foto: Alisson Louback | Netflix

 

“Cidade Invisível”, da Netflix, traz personagens que são entidades do folclore brasileiro. Na sua opinião, como o público do streaming interagiu com essa narrativa? A série foi muito vista fora do Brasil também…

O folclore é algo vivo, são histórias que passam de geração para geração. A receptividade pelo público do streaming foi muito boa, e certamente isso tem a ver com o fato de tantos de nós termos crescido escutando essas histórias. Eu sou muito grata a minha mãe, que me apresentou todos esses personagens desde cedo. Ela era uma grande contadora de história e fez com que eu me apaixonasse por esse universo. Sobre a série, o que tenho a dizer é que é muito lindo levar nossas histórias, as raízes brasileiras, para mais de 190 países. Um orgulho mesmo!

A série também traz um recorte muito atual, da degradação ambiental e do assédio do mercado imobiliário em regiões antes preservadas. Como você vê essas questões hoje no país?

Esse é o ponto central da série e é tratado de uma maneira muito inteligente, porque nos pega pelo coração e nos faz pensar. Não temos um planeta B. Não teremos uma segunda chance, mas temos escolhas. A questão ambiental é uma questão política, social e econômica que precisa ser encarada pelos nossos governantes como algo prioritário. É a vida humana nesse planeta, é o ar que a gente respira, a água que a gente bebe, a comida que a gente come. Como isso pode não ser tratado como algo de extrema importância? Para o Brasil de hoje não é, o que me faz pensar o que será o Brasil de amanhã.

Antes de ser atriz, você estudou Jornalismo e Ciências Sociais, e foi professora de inglês. O que você traz dessas diferentes atuações?

Tudo. Tudo o que estudei e aprendi ao longo da vida me ajuda na hora de conceber um novo projeto, de preparar uma nova personagem. Me abriu a escuta, me treinou o olhar para o mundo, me ajudou a entender que a gente sempre tem algo a aprender e nunca está pronto.

Qual é o seu desejo para 2021? Já tão difícil e intenso, mas que ainda não acabou.

Vacina! Vacina para todos.

 

Foto: Pablo Saborido | Amaro

Foto: Pablo Saborido | Amaro