Kátia Barbosa, jurada do “Mestre do Sabor”, traz em sua culinária o sabor da comida popular e a força da mulher brasileira

por | maio 31, 2021 | Entrevista, Pessoas & Ideias | 0 Comentários

Criadora dos famosos bolinhos de feijoada, dona do botequim Aconchego Carioca e jurada do reality “Mestre do Sabor”, a sempre bem-humorada Kátia Barbosa é a síntese da mulher brasileira, que sabe viver em meio a adversidades e, disso, trazer prosperidade.

Feijão preto, paio, linguiça, carne seca, costelinha, lombo, bacon e alho. Para dar liga, farinha de copioba, que é mais fininha e torradinha do que a farinha de mandioca comum. Para rechear, tirinhas de couve com mais bacon. A arquitetura de uma obra de arte é engenhosa, combina um monte de ingredientes e um bocado de processos. É preciso dessalgar, cozinhar, temperar, refogar, empanar e fritar. Foi preciso também evocar memórias afetivas para se chegar ao bolinho de feijoada. A dona desse feito tem nome: Kátia Barbosa

 

Foto - Divulgação

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Chefs estrelados de diversas partes do mundo, sambistas de cada canto do Rio de Janeiro, foodies do Brasil todo já enfrentaram fila para provar a iguaria. Embora se diga melhor vendedora do que cozinheira, Katita nunca gastou o gogó para levar multidões à Praça da Bandeira, na zona norte carioca. Naturalmente, suas generosas bolinhas de feijão viraram atrações da Grande Tijuca, junto à quadra do Salgueiro e à terceira maior floresta do mundo. Mais: eternizaram o Aconchego Carioca como um dos maiores botequins do país.

Um menu de tesouros fritos e criativos faz, sim, parte do legado. Porém, é o vestir a camisa da comida popular brasileira e o inegável carisma de Kátia que colocaram o bar na história da Gastronomia nacional. Mais do que a jurada mãezona e atual campeã do programa “Mestre do Sabor”, exibido nas noites de quinta-feira na TV Globo, ela é a defensora dos pratos com alma e técnica, do arroz com feijão de excelência, da rabada com habilidade, do escondidinho com perspicácia.
Mais desbocada e espirituosa do que se poderia imaginar para um reality show de culinária da TV, ela trilhou esse caminho como todos os outros de sua vida – espontaneamente. Há coisa de uma década, por exemplo, ela flechou o coração de Claude Troisgros: “Eu vi a Katita começar no primeiro restaurante, bem pequenininho. Vi ela entrar no mercado, crescer e se desenvolver. É uma cozinheira como ninguém, conhece a cozinha da terra, do povo e de família com muita sabedoria. É uma pessoa iluminada”.

 

Kátia Barbosa com os colegas jurados do reality "Mestre do Sabor", Leo Paixão e Rafa Costa e Silva - Foto: Divulgação

Kátia Barbosa com os colegas jurados do reality “Mestre do Sabor”, Leo Paixão e Rafa Costa e Silva – Foto: Divulgação

 

À lista de elogios que o chef francês costuma tecer faz ainda do bolinho de feijoada “uma das maiores maravilhas do mundo” e algo que não se expressa com palavras – foi ao Aconchego que Claude fez questão de levar o pai em sua passagem pelo Brasil. Para quem acha que o filho é que é celebridade, Pierre Troisgros foi um dos pioneiros da Nouvelle Cuisine, movimento que nos anos 1970 revolucionou não somente a trajetória da culinária francesa, mas mundial.

“Primeiro a Clarice, esposa de Claude, disse que ia trazer o namorado dela ao Aconchego. Quase morri quando vi quem era! Depois, no dia seguinte, ele apareceu com o cachorro e, como não tinha lugar, ficou em um degrauzinho tomando cerveja e comendo bolinho. Acabou voltando umas duas ou três vezes até me pedir a receita”, lembra-se Kátia.

Detalhe: mesmo com o passo a passo anotado, o preparo não deu certo. Resultado? Claude arrastou seu fiel escudeiro, Batista, até a cozinha tijucana e, entre a degustação de um quitute e outro, aprendeu o processo, mas não o segredo. “Como o bolinho de arroz com o arroz que sobra, o bolinho de feijoada me pareceu óbvio”, desdenha a autora. Mas ali, naquela massa, tem as lembranças da mãe engrossando o feijão com farinha, uma criatividade nata e a capacidade de sublimar as combinações mais corriqueiras.

 

A chef com Claude Troisgros - Foto: Divulgação

A chef com Claude Troisgros – Foto: Divulgação

 

Alma brasileira

Tudo dito até agora poderia ser pura ladainha, não fosse o tal bolinho uma alegoria de sua própria inventora. Cascudinha por fora, Kátia desmancha por dentro. Mais do que a forma, sabe que é o recheio que importa. Entre atender mesas e buscar os pratos na cozinha liderada pelo irmão, formou-se chef pelo olhar atento, pela sensibilidade. O aprimoramento, todavia, veio com a dedicação.

“Meu repertório era curto e eu não tinha grana, então passava horas em livrarias. Não lia receitas, porque não queria aprender a reproduzir, queria entender o comportamento dos ingredientes, as questões químicas”. Em outras palavras, a carioca devorou enciclopédias e livros de hoje colegas como Ferran Adrià e Alex Atala. Viajou o quanto pode e, por tentativa e erro, deu forma a uma metodologia instintiva, empreendedora por necessidade, brasileira até dizer chega.

Sua comida traduz sua história, nasce da vulnerabilidade e transborda abundância. Afinal, ao pé do primeiro fogão, além do irmão cozinheiro, eram mais sete crianças. Uma mãe lavadeira e um pai camelô. “Imagina fazer comida para nove filhos todo santo dia? A cozinha da minha mãe era sobrevivência. Era usar o aipim quando não tinha dinheiro para o pão, misturar o fubá com leite de coco e açúcar pra dar sustância. E quando não tinha nada, pegar o mamão verde no quintal para fazer picadinho”, conta Kátia.

O pai, por sua vez, cozinhava quando a esposa saía: “Aí todo mundo podia entrar na cozinha. Ele também levava a gente à Feira de São Cristóvão para comer rabada, mocotó e carne de sol. Para ele, comer era muito importante, porque ele passou fome, mas o mais importante era mostrar que comer aquelas coisas era um jeito de preservar a cultura nordestina”.

 

A cozinheira com sua filha, a também chef Bianca Barbosa - Foto: Berg Silva

A cozinheira com sua filha, a também chef Bianca Barbosa – Foto: Berg Silva

 

Valorizar o simples

Em vez de panelas, fuets e facas, a herança paraibana, o orgulho das origens e a infância nas vizinhanças do Complexo do Alemão são suas tatuagens. São traços sentidos no corpo, como ter doado o rim à sobrinha ou dado luz às filhas. A primogênita, Bianca, por sinal, além de cozinheira talentosa, comandará o novo restaurante da mãe, o Kalango, que abre este mês em Botafogo. Copa lombo com cuscuz nordestino, rubacão, sonho de bobó de camarão e vaca atolada estão entre os destaques do menu criado a quatro mãos.

A par da novidade, David Hertz, fundador da Gastromotiva, parceiro de Jamie Oliver e um dos maiores empreendedores da gastronomia social do mundo, repete a torto e a direito que “não bastasse fazer a melhor comida brasileira, a Kátia representa a mulher brasileira, sabe o que é viver em meio a adversidades e disso trazer prosperidade”.

Não à toa, sempre que pode ela leva essa trajetória consigo. Nessas, o percurso da chef já foi base de aulas emocionantes e jantares em Londres, Nova York e Copenhague. “Às vezes a gente precisa ir longe para ver o que está na nossa cara. Anos atrás, na Inglaterra, o Daniel Boulud serviu uma sobremesa bem cremosa, com tapioca e leite de coco, uns cubinhos bem pequenininhos de manga e um praliné de castanha de caju. Pensei: como é que um francês que mora em Nova York fez isso aqui melhor do que brasileiro? Na hora saquei que a questão era valorizar o simples, porque não adianta nada viajar o mundo inteiro e não saber fazer uma carne de panela”. Misto de reflexão e desabafo, a recordação é cotidiana durante as gravações do “Mestre do Sabor”.

Por incrível que pareça, o amigo Claude deu o maior apoio, mas foi Boninho quem escolheu a cozinheira como jurada. Desde então, há três anos, ao longo de pelo menos duas semanas, dez horas por dia, Katita se esforça para combater o “complexo tupiniquim” que pesa sobre a comida popular brasileira, para afirmar-se enquanto mulher preta e periférica e para inspirar em rede nacional: “Mais do que criar bolinho e ser copiada, o legal é motivar os botequins a melhorarem. O Aconchego foi um divisor de águas, hoje todo bar tem uma linha de bolinhos e isso me enche de orgulho. Quero passar isso também para os candidatos e para quem assiste ao programa”.

Kátia chora, briga, brinca e se emociona. Na frente e detrás das câmeras. Em casa, evita miúdos, ama vegetais, come tudo com pimenta e abre mão de qualquer coisa para ficar com Madá, a netinha de quatro anos. Nas redes sociais, esquece de postar a linha de congelados “Kátia Barbosa em Casa“, mas jamais o produto de um colega de profissão. Na cozinha, faz questão de trabalhar com jovens para remoçar e de se embrenhar no próprio DNA. E, no fim do dia, a conclusão é sempre a mesma: “Não é que essa merda de fazer bobó direitinho deu certo?”.

 

Os famosos bolinhos de feijoada, criação de Kátia. - Foto: Eduardo Almeida | Estudio Semente

Os famosos bolinhos de feijoada, criação de Kátia. – Foto: Eduardo Almeida | Estudio Semente

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