Com uma carreira repleta de novelas, filmes e peças teatrais de sucesso, o ator Paulo Betti filosofa sobre fofocas e fake news, fala do papel fundamental das artes nesses dias sombrios e rememora a sua infância e a sua juventude entre Rafard, Sorocaba, Piracicaba e Campinas.
Toda noite, Paulo Betti invade milhões de lares brasileiros para espalhar fofocas, maledicências, boatos e futricas. E as pessoas adoram. No papel do blogueiro impiedoso Téo Pereira, o ator brilha na reexibição da novela “Império”. E há mais de quatro décadas tem sido assim. Em 1980, ele estreou na TV, na novela “Como Salvar Meu Casamento”, na extinta TV Tupi. De lá para cá, atuou em dezenas de novelas, filmes e peças teatrais. Conquistou dois prêmios Molière e três troféus Mambembe. Já foi galã, vilão e bufão.
Hoje com 68 anos, ele é um apaixonado pelo universo caipira do interior de São Paulo: nasceu em Rafard, foi batizado em Piracicaba, cresceu em Sorocaba e ainda viveu por um período em Campinas. Há anos, trocou essa paisagem (cada vez menos) bucólica pelos contornos sensuais do Rio de Janeiro. Mas ainda se orgulha de suas origens e cultiva seu lado tabaréu.
Na entrevista a seguir, ele fala à 29HORAS da praga das fake news, dos baques sofridos pelo setor cultural e do papel fundamental desempenhado pela arte na missão de trazer um pouco de luz a esses dias sinistros.
Você nasceu em Rafard, cresceu em Sorocaba e ainda passou alguns anos dando aulas de artes dramáticas na Universidade de Campinas. Que recordações guarda do Interior de São Paulo?
De fato nasci em Rafard e, com 3 anos, fui para Sorocaba. E parte da minha família foi para Piracicaba e para Campinas. Por causa disso, eu sempre ia com a minha mãe a essas cidades. Tenho um carinho imenso pelo Interior de São Paulo. É a minha praia. Sinto saudades das pessoas, das comidas e da música – adoro o cururu, o repente paulista. Tinha uma paixão muito grande pelos clubes de futebol da região: o São Bento de Sorocaba, o Nhô Quim (XV de Piracicaba) e os campineiros Guarani e Ponte Preta, a lendária. Guardo ótimas lembranças de todos esses lugares. Fui batizado em Piracicaba e, em Campinas, dava aulas sob as árvores no jardim da Unicamp.
Nos anos 1980, você participou da concepção do espetáculo “Na Carreira do Divino”, que exaltava a cultura caipira. Você acha que o Brasil precisa valorizar mais esse patrimônio?
Essa peça foi um marco na minha carreira. A montagem estreou em 1979, livremente inspirada em um livro escrito pelo professor Antonio Candido (1918-2017), “Os Parceiros do Rio Bonito”, que mostrava um estilo de vida baseado no compartilhamento. Os caipiras sempre tiveram uma tradição de ajudarem uns aos outros. Essa cultura deveria ser valorizada e incentivada. Essa forma solidária de viver é um bom exemplo, nesses tempos de individualismo exacerbado, de cada um por si. É algo que o nosso país está precisando muito neste momento.
A sua mãe, dona Adelaide, foi empregada doméstica. Até pouco tempo, essa profissão era estigmatizada e desprezada, mas agora as domésticas até protagonizam novelas e filmes no cinema. Como você vê essa mudança?
Minha mãe trabalhou por muito tempo como doméstica. E isso foi decisivo na minha formação. A família para a qual ela trabalhava me arranjou uma vaga em uma ótima escola pública para que eu pudesse estudar. Fui educado em uma escola experimental, criada para filhos de professores de outras escolas da cidade. Eu tive muita sorte. O ensino era excelente. O triste é que, naquela época, as domésticas não tinham carteira profissional, não tinham nenhum direito trabalhista e nenhuma proteção social. O que elas fazem é um trabalho muito delicado, que acontece dentro das casas das famílias. Por isso mesmo, a categoria é enorme, mas pouco articulada. Cada uma fica isolada em seu trabalho. Que bom que tudo mudou, que a profissão hoje é totalmente regulamentada e que essas bravas mulheres deixaram de ser “invisíveis”.
Você já interpretou dezenas de personagens. Quais são os seus prediletos?
Acho que os meus prediletos são aqueles que ficaram mais marcados no imaginário do público. Gosto quando um personagem se torna popular e cai na boca do povo. Foi assim com o Timóteo (de “Tieta”), com o Ypiranga Pitiguary (de “A Indomada”), com o Carlão Batista (de “Pedra Sobre Pedra”) e com o Téo Pereira (de “Império”). No cinema, com o Lamarca e com o Ed Mort.
O blogueiro Téo Pereira, criado em 2014 para a novela “Império” e agora de volta ao horário nobre, tinha tudo a ver com aquela época, quando o culto às celebridades e as fofocas estavam no auge. Atualmente nem existem mais blogueiros! Como seria o trabalho do Téo Pereira hoje?
A fofoca sempre existiu. Segundo o psicanalista José Ângelo Gaiarsa, que escreveu o “Tratado Geral Sobre a Fofoca”, muita gente respira e se alimenta de fofoca. Gaiarsa observa que, quando fazemos fofoca sobre alguém, colocamos nessa pessoa tudo o que temos de pior dentro da gente. E, ao fazermos isso, nos livramos de qualquer defeito, nos tornamos modelos de perfeição. Consequentemente, além de fazer mal ao outro, frustramos toda e qualquer possibilidade de mudança interna que possa nos ajudar a evoluir, a melhorar, a nos corrigirmos. E é assim mesmo!
O Téo ocupava um espaço que hoje é o da fake news, do jornalismo sem ética. Ele inventava notícias, distorcia fatos, destruía reputações, era maldoso. De certa forma, foi um precursor desse Gabinete do Ódio que funciona em Brasília.
Nas novelas do Aguinaldo Silva, os gays são sempre tipos exagerados, grotescos e bizarros. O que você tem a dizer àqueles que consideram que esse tipo de atuação caricata só serve para reforçar os preconceitos usualmente associados aos homossexuais?
O Aguinaldo faz novelas, ele vive de altos índices de audiência. Ele carrega nas tintas e nas características de cada personagem mesmo. E é muito bem-sucedido nisso, é um craque. E não é só ele que faz isso, o Brasil tem uma tradição nessa composição cheia de trejeitos, desde os tempos de Oscarito e Ronald Golias. Eu mesmo me considero adepto desse tipo de atuação, quando cabe. Nesse caso específico, me preocupei com a interpretação histriônica, mas foi libertador quando um parente meu gay, que mora em Votorantim, me ligou dizendo que estava adorando o personagem e que o Téo estava até ajudando na aceitação desse jeito de ser mais extravagante e carnavalesco. O Téo Pereira é a chamada “bicha louca”, e tem muita gente que é assim, ele não é uma invenção do além.
Por falar em atuações anedóticas, como você avalia a performance da Regina Duarte no papel que ela escolheu recentemente para interpretar?
A trajetória da Regina foi uma coisa trágica, sem dúvida, não tem nada de cômico. Ela vem de uma consciência política, lá do tempo do seriado “Malu Mulher”, mas foi decaindo e se metamorfoseando até se converter nesse ser amargurado que tentou justificar a Ditadura Militar e apoiou o governante que conduz o nosso país de forma desastrosa. É muito triste.
Como é que você acha que o setor cultural vai se reerguer após esse desmanche?
O setor cultural está sofrendo um grande retrocesso, um verdadeiro desmonte executado de forma absolutamente irracional. Eu acredito e luto para que consigamos reconstruir tudo o que está sendo desmantelado. Em 2022, com certeza, vamos limpar a área e as plantas voltarão a florescer.
A quarentena foi um período produtivo para você? Você gostou de encenar virtualmente seu monólogo “Biografia Autorizada”?
Logo no início da quarentena, tive a oportunidade de fazer apresentações virtuais da peça. Foi um teatro possível, uma forma de arte respirando por aparelhos. O espetáculo foi criado para narrar a minha trajetória, a minha existência, mas acabou sendo importante para a minha sobrevivência. É fundamental nos mantermos na ativa, seja do jeito que for. A arte é sempre necessária, ela é fundamental – ainda mais em tempos sombrios como este que vivemos. Oferecemos instantes de respiro e de trégua no meio dessa loucura toda. Nós vamos resistir. O belo sempre vence no final.
Como foi o confinamento com a sua esposa, a atriz e comediante Dadá Coelho, durante a quarentena? Vocês têm projetos de atuar juntos?
A nossa troca ficou ainda mais intensa, com essa convivência forçada. Como ela é comediante, eu me considero um felizardo: por causa dela, consegui rir muito durante a quarentena. Estamos pensando em fazer algo juntos, sim. Temos várias ideias na cabeça, desde peças de teatro a podcasts. Uma das possibilidades é criar algo inspirado em Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, tentando adivinhar como seria a vida desse casal de filósofos franceses nos dias de hoje.
Voltando à TV, é verdade que você vai encarnar mais uma vez o Visconde de Mauá, agora na novela global “Nos Tempos do Imperador”?
Não tem nada confirmado sobre essa participação em “Nos Tempos do imperador”, que conta a história de Dom Pedro II – contemporâneo do visconde. O que é certo é que estou escalado para a novela das 18h que virá depois dessa trama histórica. Chama-se “Além da Ilusão”, está sendo escrita por Alessandra Poggi e vai marcar a estreia da Larissa Manoela na Globo. Eu vou interpretar o dono de um cassino, casado com a Zezé Polessa.
Por fim, agora vacinado, o que você mais quer voltar a fazer? Do que mais sente saudades lá dos tempos do “velho normal”?
O que eu mais sinto falta é do teatro, do palco, dos artistas se reunindo presencialmente, com o corpo e a alma. Não vejo a hora de poder voltar com tranquilidade ao cinema, a apresentações musicais e aos estádios, claro! É tão bacana assistir a tudo isso ao vivo. Essa catarse coletiva me faz muita falta.
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