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Letícia Colin encara personagens mais sensíveis no streaming e no cinema
Vivenciando um momento de criação intensa em sua carreira, a atriz Letícia Colin mergulha sem medo nas próprias vulnerabilidades e encara personagens sensíveis no streaming e no cinema.
Letícia fica à vontade para falar sobre tudo. A respeito de assuntos ainda tabus ou sobre o que precisa ser gritado e escancarado. E também para dar voz a uma personagem nova, com questões que não são só dela. Mas engana-se quem pensa que a fala é o único ou mais importante recurso de uma atriz e de um ator. A escuta é essencial, por meio dela a sensibilidade entra, chega às extremidades do corpo, à mente e ao coração. Um trabalho que se assemelha ao de um terapeuta ou cientista, de verdadeira pesquisa humana com afeto. “É revolucionário enxergar um personagem assim, como olhar para um paciente”, diz.
A saúde mental é tema, inclusive, das mais recentes produções que a atriz protagoniza. No papel da estilista Manu, em “Sessão de Terapia”, no GloboPlay, Letícia interpreta uma mulher que está se tornando mãe, com as dores e delícias desse caminho. Na mesma plataforma de streaming, em “Onde Está Meu Coração”, a atriz, nascida em Santo André, vive Amanda, médica e dependente química, personagem que é a grande heroína da carreira de Letícia.
Com 20 anos de carreira, a atriz também encarnou outros personagens marcantes na TV, como a princesa Leopoldina na novela “Novo Mundo”, a baiana Rosa de “Segundo Sol” e a Marylin, de “Cine Holliúdy”, todos na Globo. Também cantora, brilhou em musicais como “O Grande Circo Místico” e “Hair”. A seguir, os principais trechos da conversa com a reportagem da 29HORAS.
Suas mais recentes personagens, a Amanda de “Onde Está Meu Coração” e a Manuela de “Sessão de Terapia”, são atravessadas pela depressão e pela dependência química, que as paralisam e as desconectam das relações. Como a saúde mental se relaciona com o seu trabalho?
O sofrimento psíquico é um sofrimento na carne. Tendemos a separar a mente do corpo, mas na verdade somos um só ser. Se acolhemos as nossas dores emocionais, que são comuns, democraticamente de todos nós, isso nos convoca para outro nível de diálogo. Quando olhamos para essas personagens com respeito e amor, alteramos nosso ambiente. É como diria Nise da Silveira (psiquiatra e pioneira na terapia ocupacional) – que é uma das minhas mentoras artísticas, não separo arte da vida – somos seres criativos e políticos. Falando sobre saúde mental, ela valorizou a singularidade do outro. Com seu sofrimento, teve um olhar de dedicação e muita escuta. É revolucionário olhar para um personagem assim, como olhar um paciente. Artistas e cientistas têm muito em comum, é sobre praticar a pesquisa humana com afeto. A doença expressa algo, a dor tem um imenso aprendizado e é uma manifestação da alma. Acho que as pessoas gostam dessas duas séries por isso se interessam e acompanham. Eu sempre me investiguei desde pequena e sou atriz desde muito nova. Ter o teatro e a poesia na minha vida são possibilidades de dar conta do que sinto, é abraçar o desamparo, que também é meu lugar de criação.
Como o público recebe essas temáticas hoje, em meio à pandemia?
Vivemos um abismo como nação, enfrentamos um vírus mortal, é muito violento para nossos corpos e nossa alma. Somos verdadeiramente torturados pelo governo federal. Precisaríamos ter uma sensação de segurança e não temos. É um momento coletivo de muita dor. “Sessão de Terapia” traz uma diversidade incrível de sofrimento, são diferentes personagens que representam camadas da população brasileira, e mostra histórias de superação dessas dores. Quando vemos esses arquétipos no divã do analista Caio (personagem de Selton Mello), nos emocionamos e nos curamos também. É um estímulo para cada um buscar ajuda, nunca se procurou tanto por terapia. O audiovisual encoraja as pessoas a falarem sobre si. O trabalho do ator é pela palavra e eu acredito muito na cura pela linguagem. Na pandemia, o brilho desses dois trabalhos é mostrar o sofrimento de forma muito humana, mostrando exemplos sem moralismos, com profundidade e cheios de facetas.
A Manuela é uma estilista, que acaba de se tornar mãe, e você também é mãe. Como foi o processo de imersão para viver essa personagem? Em que ela mais te tocou?
“Sessão de Terapia” é uma série feita por muitas mulheres, a roteirista Jaqueline Vargas, a autora Ana Reber, a assistente de direção Vera Haddad, a figurinista Tica Bertani, então todas nós colocamos um pouco de nossas histórias na produção. Todas tínhamos um carinho especial pela Manu. Há um aspecto muito dolorido em tornar-se mãe, e é importante falar. Existem muitas mentiras sobre a maternidade. Nós nos questionamos sim, temos medo dessa tarefa de ser mãe. E parte importante também dessa personagem foi o figurino, que sempre conta uma história. A Manu é uma estilista que faz roupas para durarem mais tempo, que pensa sobre peças e suas texturas e cores, um jeito próprio de olhar o mundo. E agora ela tenta vestir essa roupa de ser mãe, acho que costuramos muito bem tudo isso.
A depressão pós-parto, apesar de afetar muitas mulheres, não costumava ser tema de discussões até pouco tempo. O que mudou?
Nós começamos a falar e percebemos que não estamos sozinhas. Sem medo de nos mostrar vulneráveis e mergulhar nisso. É a partir do momento que sentimos a vulnerabilidade que criamos e encontramos soluções. A internet ajudou muito na união e no compartilhamento de relatos de diferentes mulheres. Antes, o audiovisual se restringia às narrativas de quem estava sob os holofotes, mas nos últimos tempos houve uma democratização do palco. Todos nós colocamos nossas questões para o mundo e para fora. Quando só os homens estavam no protagonismo, o tema não aparecia. As mulheres começaram a falar mais, isso é o feminismo, que avança.
Não sei se é porque sou paulistana, mas gostei muito de “Onde Está Meu Coração” também pela ambientação. O que você mais gosta em São Paulo? A nossa revista está na ponte-Aérea, qual é a sua relação com o Rio de Janeiro?
Gosto muito de São Paulo e tenho muita saudade. A vida faz com que a gente se desloque, e é bom isso, poder ir e vir. Essa, inclusive, é uma das maiores dores da pandemia. Tenho vontade de voltar a morar na cidade. Na série, São Paulo é uma verdadeira personagem, onde tudo é possível, mas também o lugar que te engole, de frustrações. A cidade mimetiza a Amanda, ela se perde, quase se torna invisível na imensidão urbana. Onde estão as pessoas que sofrem? Nasci em Santo André, e vivi por lá até meus 8 anos, torço para que a região tenha mais projetos de arte e fomento à cultura, tenho orgulho da cidade, ela me constitui. Hoje vivo no Rio de Janeiro, uma cidade bonita, mas que vive um momento difícil com a contaminação das milícias na política.
Ainda sobre a série, surpreende que Amanda é uma médica que acaba se viciando em crack. A dependência química atravessa todas as classes sociais, mas por que falamos pouco sobre isso?
Esse estigma é real. Quando a série coloca em primeiro plano uma protagonista que é médica, branca, rica, mas está no fundo do poço, isso causa uma inversão na cabeça das pessoas. Como essa menina chegou até ali? A resposta é simples: as drogas e a dependência química são questões de saúde, de médico, terapeutas, e não de polícia. Acontece em qualquer lugar e o tempo todo. Tem a ver com o ser humano. Temos que tratar com respeito e paciência todos de maneira igual. É sobre isso que o Estado deveria se interessar.
Como foi interpretar Amanda? Em que a personagem te mudou?
A Amanda é alguém muito próximo de cada um de nós. Cada um tem um amor, um amigo, que está em alguma fase do tratamento de uma dependência química. É muito lindo ver como as rodas de partilha, os acompanhamentos terapêuticos, funcionam e são curativos. É o poder de ouvir cada experiência humana. A Amanda é uma personagem que tem muita coragem, que recomeça muitas vezes. Ela consegue se tratar e lidar com a sua vulnerabilidade. Diante de tudo isso, insiste na vida, no seu trabalho. Para mim, ela é a grande heroína da minha carreira, os personagens ficam como amigos e conhecidos, sou muito fã da Amanda.
Voltando um pouquinho no tempo, me fale de um papel seu bastante marcante na TV, que foi a princesa Leopoldina da novela “Novo Mundo”. É diferente encarnar um personagem histórico?
Se o ponto de partida é o texto, a construção do passado, presente e futuro de um personagem acaba sempre sendo histórico, por mais que ficcional. No caso da Leopoldina, há muito material sobre ela, muitas cartas, pinturas e muitos livros. É incrível, porque foi uma mulher muito importante, mas que eu conhecia pouco. Foi muito interessante, para mim, ler as cartas que ela escrevia para a irmã, ler sobre a saudade que ela sentia da Áustria, essa distância toda que ela viveu. Passei a ter muita admiração pela figura dela, era uma amante das Artes e da Ciência, Leopoldina patrocinou a vinda de cientistas para o Brasil, foi uma das primeiras vezes que isso aconteceu na história do país. Apesar de ser uma princesa, ela tinha um coração feminista, e isso me encanta. Leopoldina deixou um legado de protagonismo. Foi bonito contar essa história.
Você terminou recentemente as gravações do longa “A Porta ao Lado”, da diretora Julia Rezende. O filme aborda diferentes acordos nas relações românticas, os conflitos desses modelos…Estamos em um momento de ruptura das relações como conhecemos?
Trabalhei com a Julia no filme “Ponte Aérea”, e é bacana falar disso justamente numa entrevista para a revista que é distribuída nesses aeroportos. Foi mais uma vez uma experiência linda, um set de muita amizade. É bom trabalhar em um espaço assim, me sinto acolhida. A Júlia é essa diretora! É muito belo sentir segurança para entrar em um personagem, é sempre um processo desafiador e até incômodo para nosso corpo. Também foi muito bom levantar um filme em plena pandemia, colocar o barco para navegar nessa travessia, com todos os cuidados e assistências. O filme é um pensamento sobre as tentativas de se relacionar no mundo contemporâneo. Como desenvolver uma relação duradoura e ter uma família? Os desejos são muitos diversos e o momento é de liberdade. Tudo é dinâmico e fluído, mas ao mesmo tempo precisamos de raiz e apego. São dois polos opostos, e o longa mergulha na tentativa desse equilíbrio.
Você teve covid-19. Como enfrentou a doença? Na sua opinião, como o Brasil está enfrentando o vírus? E como a arte está nessa trincheira?
Até hoje lido com a covid, tive sequelas e o que se chama “covid longa”. Ainda estou em tratamento e investigando as consequências em meu corpo. É um desafio para mim, mas estou me recuperando. O Estado brasileiro matou muita gente, pela insistência em medicamentos sem eficácia e por não ter acolhido as medidas corretas, então o governo federal carrega a responsabilidade dessas mortes todas. Perdemos muito! Vidas, histórias, almas, o Brasil perdeu um pouco a graça com esse descaso todo. Em alguns estados, os governadores conseguiram atuar, legislar sobre máscaras, mas poderíamos estar mais vacinados, tudo isso é uma grande ferida na nossa alma. A arte está resistindo, sobrevivendo. Temos a necessidade de nos manter próximos do pensamento crítico.
Ronaldo Fraga acaba de lançar na SPFW uma coleção inspirada na cultura do Sertão do Cariri
O estilista mineiro Ronaldo Fraga, que acaba de lançar na SPFW uma coleção inspirada nas cores e na cultura do Sertão do Cariri, fala sobre a impressionante potência inspiradora desse e de outros magníficos tesouros de um Brasil que ainda existe, insiste, resiste e encanta
O azul do céu, a brancura da batina de Padre Cícero, o colorido dos pássaros do Sítio Pau Preto do Potengi, as surpreendentes formas dos aviões de lata do mestre Françuli, os arabescos de Espedito Seleiro, os tambores do reisado e as rezas de dona Zulene: toda essa riqueza de tradições, sons e cores do Cariri Cearense inspiraram Ronaldo Fraga, de 53 anos, na concepção de “Terra de Gigantes”, sua mais recente coleção, lançada com um vídeo na edição online da SPFW, em junho.
O estilista mineiro sabe como ninguém explorar a potência inspiradora desse Brasil que nem todo mundo sabe que existe, mas que resiste, insiste e encanta. Não à toa, ele foi o primeiro representante da moda brasileira a receber a medalha da Ordem do Mérito Cultural, em 2007, concedida pelo então ministro da cultura Gilberto Gil. A comenda se destina a personalidades que dão corpo à cultura brasileira com seu trabalho.
As criações de Ronaldo já foram apresentadas no Japão, na Europa e em vários países da América Latina. Ele já escreveu e ilustrou livros, já criou figurinos para peças teatrais, já desenvolveu produtos para marcas como L’Occitane, Tok&Stok e Chilli Beans, e foi selecionado pelo Design Museum, de Londres, como um dos sete estilistas mais inovadores do mundo.
Na entrevista a seguir, Ronaldo Fraga fala um pouco de seus projetos e ações que buscam reduzir a distância que existe entre o Brasil feito à mão e o Brasil industrial, fala também dos rumos da moda brasileira e mundial e ainda exalta a importância fundamental da liberdade na criação e na vida.
Você acaba de abrir a edição 2021 da SPFW com um lindo vídeo rodado no Sertão do Cariri, que foi a região que inspirou toda a sua nova coleção. Por que o Cariri? E por que agora?
Para mim, o Nordeste é o grande amálgama da cultura brasileira, e o Sertão do Cariri é o epicentro disso. Muito da formação da nossa face mestiça tem esse lugar como referência. O caldeirão étnico da região mistura índios Kariris com escravizados malês muçulmanos trazidos do Norte da África e judeus e cristãos novos que fugiram da Europa na época da Inquisição. Essa riqueza explica a potência da cultura desse lugar. Falar disso agora é para não perdermos de vista um Brasil que ainda existe, resiste, insiste e encanta. Nesses tempos duros e cinzentos, quisemos ir ao encontro de algo festivo, fértil e puro. É preciso trazer oxigênio para as pessoas. Acredito que essa é uma das funções de todo designer.
E de onde surgiu a brilhante ideia de centrar todo o “desfile” em uma só modelo, a musa Suyane Moreira?
Nós ainda estamos aprendendo a lidar com essa coisa de ‘fashion film’ para as semanas de moda. A proposta não foi simplesmente adaptar um desfile para o formato de vídeo. Nessa nossa produção, mostramos o que está por trás da roupa, de onde ela nasceu. Tudo – a cor, a luz, a música, a paisagem – exala e exalta a cultura do Cariri. E a Suyane foi uma escolha natural e perfeita para sintetizar tudo isso. Nascida em Juazeiro do Norte, ela é neta de kariris, foi lançada como modelo aos 18 anos e hoje, aos 38 e com dois filhos, está no auge de sua beleza brasileiríssima.
Em 2050, quando você estiver com 83 anos e Mano Brown Jr., recém-empossado como Ministro da Cultura, resolver homenageá-lo com um museu dedicado à sua obra e à sua colaboração para a cultura brasileira, qual coleção você gostaria que ocupasse a sala principal da exposição de abertura da Fundação Ronaldo Fraga?
Que pergunta divertida, adorei! Mas é difícil escolher. Acho que esse espaço nobre deveria ser ocupado pela coleção de 2008, que faz parte da exposição “Rio São Francisco Navegado por Ronaldo Fraga”, que rodou o Brasil entre 2010 e 2013. Foi o primeiro projeto de moda com patrocínio aprovado pela Lei Rouanet, enxergando a moda como cultura. Era um projeto transversal: tinha vídeos realizados pelo Wagner Moura, poemas do Drummond declamados por Maria Bethânia, tinha arte popular e tinha também a moda. Nessa exposição, a moda dialogava maravilhosamente com outros vetores da cultura.
Esses tesouros do Brasil mais autêntico, como a estética do Cariri e outros exemplos dessa cultura que resiste, deveriam estar mais presentes na moda brasileira?
Sim, claro. O Brasil é de uma potencialidade inspiradora impressionante. Precisamos valorizar essa diversidade, esse patrimônio. Estilistas franceses, ingleses e japoneses vêm para cá se inspirar. E só depois que acontece esse reconhecimento estrangeiro, os jovens estilistas brasileiros começam a dar valor ao que temos, ao que somos. As coisas estão melhorando, mas ainda há muito a avançar nesse processo. Até recentemente, as peças brasileiras ficavam só na cozinha e na área de serviço, mas aos poucos vão ganhando mais e mais espaço na sala.
A propósito, você recentemente ajudou os atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão na ressignificação dos produtos artesanais e gastronômicos de Mariana e Barra Longa, já estimulou as artesãs do Vale do Jequitinhonha e, recentemente, revelou para o mundo o magnífico trabalho do Museu Orgânico do Cariri, que reúne mestres da cultura da Chapada do Araripe. E agora, para onde está virado o seu radar?
A moda é poderosa e transita muito bem por várias outras áreas. Ontem à noite ela dormiu com o Teatro, depois tomou café com a História, fez uma reunião com as Artes Plásticas, almoçou com a Economia e, de tarde, tomou chá com a Psicologia. Ela tem o poder de encontrar poesia em terrenos áridos. E eu sou assim também. Adoro tudo que me alumbra e me assombra. Fujo dos cartões-postais, dos lugares onde está tudo lindo. Prefiro a beleza de lugares em que nem todo mundo consegue enxergá-la. Minha bússola sempre me leva para onde tem ruído, tem fantasma, tem vida e morte – ou seja, o Brasil me oferece muuuitas possibilidades. [risos]
O que aconteceu com a moda brasileira, que viveu um grande “boom” nos anos 1990 e no início deste século 21, mas de repente “derreteu”, viu várias grifes encolherem e incontáveis estilistas simplesmente sumirem do mapa? Por que eventos como as semanas de moda perderam grande parte da visibilidade que tiveram no passado?
Bem, se a moda é um documento eficiente do tempo em que vivemos, ela está fazendo muito bem o seu papel. Ela registra e reflete um momento de apatia, de desalento e de incertezas. Mas a moda vai renascer. Nessas últimas duas décadas, vimos a nossa indústria têxtil migrar para os países asiáticos e não fizemos nada para conter esse movimento, mas a sanha criativa dos brasileiros persiste. Acredito que as semanas de moda precisam ser repensadas e readequadas, e vale lembrar que esse ‘flop’ delas não é um fenômeno exclusivo do Brasil, é uma tendência global. Só uma coisa é certa: a janela virtual que se abriu não vai fechar nunca mais.
A moda está fora de moda? Como ela se insere no mundo pós-pandemia, que deve ser um tempo de menos consumismo e mais consciência?
Durante décadas, a moda reinou absoluta como referência de consumo. Mas, a meu ver, a gastronomia, a decoração e a tecnologia vêm assumindo esse papel nos últimos anos. A moda perdeu força? Sim. Ela morreu? Não, mas precisa urgentemente achar o seu novo lugar no mundo. Ela precisa sair dessa coisa ensimesmada e encontrar um jeito de voltar a ser relevante. Sobre essa mudança para uma vida com menos consumismo e mais consciência, eu sinceramente adoraria ver todo mundo pegar esse caminho, mas acredito que essa transformação será mais individual do que coletiva. Algumas pessoas trarão isso para suas vidas, mas infelizmente nem todos vão embarcar nessa.
Sua coleção de 2020 homenageou a estilista Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel, assassinado por militares durante a ditadura nos anos 1970. No lançamento dessa coleção, você disse que todas suas coleções são políticas e poéticas. Qual é o “statement”, a mensagem que a sua coleção atual quer mandar para quem a vê, a aprecia, a consome?
Para mim, o ato de vestir é sempre um ato político. Falar de povos originários, de ancestralidade e de uma cultura que resiste é uma forma de fazer política. Não estou me referindo à “polititica” – aquela porcaria toda que rola em Brasília –, mas sim a questões que precisam ser discutidas e ganhar destaque neste momento sombrio do país.
Como bom mineiro e como uma pessoa extremamente criativa, você acredita que a Liberdade é tão essencial à vida como o oxigênio?
Sem liberdade não existe criatividade. Direitos conquistados estão seriamente ameaçados. Não podemos regredir, jamais. Chega de atraso. Precisamos fortalecer o que já conquistamos e avançar em novas questões morais, comportamentais e sociais.
Depois de 19 anos casado com a mãe de seus dois filhos, você iniciou seu primeiro romance com outro homem. Agora em junho, no Dia dos Namorados, publicou na revista “Piauí” um bonito depoimento falando de sua relação com o apicultor Hoslany, que foi criado em um circo, é filho de um atirador de facas e se vestia de Monga no trem-fantasma. Como está sendo esta nova experiência?
Sempre tive um cuidado de não criar um descompasso entre o que eu falo e o que eu faço, pessoal e profissionalmente. Sou um homem que desenha a sua vida pelos traços e tintas do amor e da paixão. O meu trabalho é baseado no desejo de liberdade. Não fazia sentido eu tentar aprisionar esse desejo, como um tigre raivoso. É fácil? Nada é fácil. Tudo tem um preço: tem a exposição, o estranhamento, a curiosidade, a pressão e até a agressividade da sociedade. Mas eu não me incomodo em pagar pelo que é justo. Pela paixão, sempre vale a pena. Desde o início, eu dividi essa descoberta com os meus filhos e lhes disse que, mesmo que eles não aceitassem esse meu novo amor, pelo menos os filhos deles já nascerão libertos e encararão isso com naturalidade. Mas o Ludovico e o Graciliano, meus queridos filhos de 15 e 17 anos, me entenderam e me deram todo apoio. O Brasil é um dos países onde há mais violência contra pessoas LGBTQIA+. É muito importante que eu fale sobre esse meu novo amor e que o governador do Rio Grande do Sul resolva sair do armário em rede nacional. Eu acho importantíssimo que todos que tenham condições se posicionem e se manifestem em voz alta sobre questões como a liberdade de colocar o seu coração no lugar onde ele bate. Esse é o nosso compromisso civil. O momento em que vivemos nos cobra posicionamentos.
Por fim, qual é o futuro da moda, a seu ver? Não acha meio extemporâneas essas imposições de “cor do ano” e “peça da estação” nessa época em que individualidade e diversidade são cada vez mais valorizadas?
Cor do ano e peça da estação já não fazem nenhum sentido há muitos anos. A moda não pode querer ditar o tempo. Ela é um reflexo do tempo, do que vemos no retrovisor da história. Para o futuro, vejo uma moda cada vez mais diversa, inclusiva e trazendo discussões de temas muito para além de formas, proporções, tecidos e cores. Porque – vamos combinar – roupa nem é o que nós mais estamos precisando, não é? O mundo está carente de tantas outras coisas.
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