Revista Online: Edição 140 – SP
Restaurantes que apostam em pescados comandam a retomada gastronômica do Rio de Janeiro
O estrelado Oteque, do chef Alberto Landgraf, detentor de duas estrelas MIchelin pelos deliciosos pescados, é um dos próceres dessa “onda”, assim como o recém-inaugurado Spicy Fish, restaurante que consumiu investimentos de R$ 4 milhões.
Como um restaurante de três anos de idade continua tido como novidade? Por persistir singular e moderno? Por ser seletíssimo, superlativo também no ticket médio (bem acima de R$ 1.000) e objeto de desejo gourmand? Sim, sim e sim. São várias as respostas corretas no que se refere ao Oteque, em Botafogo. Contudo, nenhuma é mais sagaz do que o fato dele ter evidenciado o valor do peixe fresco para quem vive tête-à-tête com as ondas.
Foi preciso um paranaense marrento, com experiências na Europa, fama em São Paulo e talento reconhecido por chefs do mundo todo para revelar o óbvio à Cidade Maravilhosa. Enquanto digeria o encerramento de seu paulistano Épice, Alberto Landgraf voltou-se ao elementar – a geografia e o lifestyle de sua nova morada. Resultado: elegeu frutos do mar de excelência para servi-los com o rigor de sempre e um minimalismo como jamais. Para além de sua emblemática tostada de brioche, foie gras e sardinha, Landgraf hoje causa euforia nos foodies com véus de olhete, vinagrete de algas e caviar; com ostras carnudas que deixam seu aquário e são apuradas ao vapor; com ouriços entre declinações de aipim.
“O carioca gosta de natureza, de esporte e de uma comida mais leve. Não dá para servir orelha de porco, nem receitas com tanta acidez como havia no Épice, mas consigo fazer alta gastronomia me divertindo”, confessa o cozinheiro detentor de duas estrelas Michelin. Não que seus menus de oito etapas sejam fit ou cetogênicos, porém, proteínas magras na brasa reinam, ao passo que carboidratos estão mais para figurantes.
“Na maior parte dos lugares, é carne na brasa e pescados e frutos do mar na frigideira. No Oteque, é o inverso, a gente tem como diferencial pescados preparados em uma churrasqueira de tijolo que trouxe de Tóquio até aqui no colo”, explica Alberto. Em suas grelhas, cada item atinge a perfeição em termos de suculência e laqueamento, sem perder a ternura.
Onda saborosa e criativa
Se o premiado restaurante trouxe bons ventos para o Rio não é possível afirmar, já que ele não fez nada sozinho… Seguindo a filosofia de otimizar ingredientes nativos, sazonais e sustentáveis, outros cozinheiros foram atrás de pescadores. Depararam-se com atuns, buris, prejerebas, lulas e lagostins. Botaram a criatividade à prova para surpreender.
Aberto em fevereiro, o Escama é ilustrativo. Em um sobrado charmoso no Jardim Botânico, Ricardo Lapeyre divide-se entre uma cozinha fria, dedicada a ostras, ussuzukuris, saladas e conservas; e outra quente, comandada pela churrasqueira. “Eu sonhava com um bar de ostras, e acabei montando um projeto de vida com cavaquinhas, pargos e garoupas”, conta o chef.
Embora atribua ao duo pesca-do-dia-e-grelha o protagonismo de sua casa, Lapeyre brilha mesmo no flerte de sua ascendência francesa com sua vida de botequim. Vai daí que gourgères de siri e dendê, croquetes de polvo, pirarucu en croûte, guiozas de cavaquinha com caviar ou o mesmo crustáceo em mil-folhas vêm e vão no menu. São sempre a maior curtição para os comensais, que já incluem habitués como Chico Buarque.
Com vibe também descontraída e bistronômica, há outros belos pontos de mergulho na capital fluminense. De Paris para a Barra da Tijuca, o Itacoa, do chef Rafael Gomes, traz a praia em versão comfort food, seja no nhoque de baroa com frutos do mar, seja no polvo com molho romesco e farofa de milho. Já a cozinha aberta do Mäska, inaugurada em junho último, acena com arrozes generosos, coroados por camarões ou peixes chamuscados na grelha, e revisita ícones como o britânico fish and chips e o peruano ceviche.
De certa forma, contemplar pescados e clássicos praianos e buscar mais contemporaneidade é recorrente no efervescente cenário gastronômico da cidade. Um exemplo? O velhusco Satyricon, que há décadas esbanja elegância na hora de servir itens marítimos, investiu em uma seção de peixes crus, com direito a carpaccios, tartares e sashimis. Falando desses, o Mitsuba aproveitou a maré para trocar a Tijuca, na Zona Norte, pelo Leblon. De quebra, ganhou um pseudo glamour e modernizou seu cardápio.
Agora, verdade seja dita, ninguém soube tão bem rever a própria trajetória e a da gastronomia carioca quanto Pedro de Artagão. Não bastasse completar uma década como restaurateur, nos últimos meses, o chef abriu o Boteco Rainha, um bar high-low que celebra a cultura de boteco luso-carioca e já é um dos maiores hotspots do Leblon.
Ao lado dele, desde meados de agosto, abriga sua casa mais autoral, o Irajá. “Cada vez mais quero ter lugares que me deem vontade de frequentar e consumir, daí o Boteco com sugestões como sardinha frita, croquete de lagosta, rissoles de camarão, camarão VG empanado ao catupiry com arroz à grega. Por outro lado, sentia falta de dar um twist a clássicos franceses e é com isso que estou me divertindo no novo Irajá: menu degustação com vichyssoise de ostras, polvo assado com bouillon de jambon, coração de filé com béarnaise de king crab…”, conta o apresentador do programa “Rio de Barriga Cheia”, exibido no canal de TV por assinatura Sabor & Arte.
Sem ressaca
Mas o responsável pela principal novidade deste semestre de retomada do setor de gastronomia e hospitalidade no Rio é Léo Rezende, empresário dono de restaurantes italianos, gregos e franceses que agora decidiu fazer uma incursão pela Ásia. Ele investiu nada menos que R$ 4 milhões em seu mais novo parque de diversões gourmet: o hiperbólico Spicy Fish.
Em uma esquinona de Ipanema, o megaempreendimento ocupa um imóvel de três andares e um rooftop e, apesar de ter capacidade para 200 comensais e de acabar de ser inaugurado, já tem fila na porta. O cardápio apresenta uma versão tropicalizada da cozinha asiática. O dono desse mix é Emerson Kim que, além de ser um exímio sushiman e profundo conhecedor de receitas coreanas, tem ainda o mérito de ser um expert em pesca.
Kim é adepto da ikejime, técnica japonesa que traz os pescados suavemente à superfície da água, evitando o stress e preservando ao máximo a qualidade de sua carne. “Quando trabalhei em Santa Catarina, pescava 80% do que o restaurante consumia. Aqui, recebo peixe fresco do Sul, da Espanha, de Portugal e da costa fluminense, mas a médio prazo minha intenção é aumentar e ser responsável por essa presença”, revela. Tais insumos serão maturados em uma câmara especial e convertidos em sashimis, sushis, robatas etc.
Como o nome dá a entender, os pescados (quase sempre acompanhados de molhos provocantes) são as estrelas no Spicy Fish. Nem por isso eles nadam de braçada – o ambiente sofisticado e cozy de selva, o staff elegantemente trajado e bem treinado, a playlist vibrante e detalhes como louças personalizadas ou vasos e ombrelones trazidos de Bali conduzem igualmente a permanência in loco. “Para mim não há nada como os hotéis asiáticos e tentei trazer um pouco dessa vivência para o Rio”, explica Rezende.
E já que o assunto é hotelaria de alto padrão, difícil não citar o Fairmont, grife da Rede Accor. Seu restaurante, o Marine, vai de vento em popa. OK, ter Copacabana a seus pés e uma bela piscina de borda infinita ao lado valoriza qualquer refeição, todavia, o menu de Jérôme Dardillac faz jus à paisagem.
Ali, o chef francês brinda o Brasil com ingredientes de terroires distintos. Dos tempos que passou em Manaus, por exemplo, resgatou o tucupi que banha com delicadeza o mer et terre de vieiras, chorizo e ovas de salmão, assim como o cumaru que perfuma o chantili da vacherin de coco com maracujá.
Em contrapartida, junto à comunidade de pescadores à frente do hotel, Jérôme seleciona o poisson du jour, peixe fresquinho que junto à batata baroa vai parar no Josper, equipamento espanhol que sintetiza como nenhum outro o poder de assar, grelhar e defumar. Vez por outra, ele ainda consegue mexilhões ou camarões de altíssimo padrão para povoar sua amável vinaigrette de frutos do mar.
Por ora, para alegria de Yemanjá – divindade que é considerada a mãe dos peixes e a padroeira dos pescadores – a maré alta da gastronomia carioca não indica ressaca. Mais: com homenagens do Botafogo à Barra, do Jardim Botânico ao Leblon e mais um monte de oferendas deliciosas em Ipanema e Copacabana, a orixá só pode estar em festa!
Atriz Thaila Ayala estreia como roteirista, produtora, empreendedora e mãe
Nascida em Presidente Prudente, a atriz e modelo Thaila Ayala se prepara para gestar um filho e muitos outros projetos no cinema e na moda.
Thaila Ayala é plural. Aos 35 anos, ela divide seu tempo entre as funções de atriz, modelo, produtora, empreendedora e ativista. Dona de uma inquietude que, hoje, se transformou em uma agenda cheia. “O mergulho forçado da pandemia me fez desengavetar sonhos até então adormecidos, e desde então não parei de trabalhar.”
Atualmente em “Ti Ti Ti”, novela de Maria Adelaide Amaral em reexibição na programação vespertina da TV Globo, a atriz interpreta a mimada e ambiciosa Amanda, “uma modelo como muitas que conheci no meu tempo de passarela”, comenta. Das telinhas para as telonas, Thaila comemora o lançamento do longa “Lamento”, com direção de Claudio Bittencourt e Diego Lopes, que chegou aos cinemas no final de agosto e foi indicado a melhor filme estrangeiro no Festival de Burbank, na Califórnia, e vencedor do prêmio do Público de melhor filme no Festival Katra Film Series, em Nova York.
A trama de suspense traz Marco Ricca vivendo o proprietário de um hotel que já viu seus dias de glória e muito luxo. Herdado por ele, agora o lugar não é mais o mesmo, abrigando o submundo e clientes, no mínimo, duvidosos. Thaila Ayala encarna uma prostituta que chega ao local e, após algumas horas, simplesmente desaparece, levantando suspeitas de um possível crime.
“Lamento é um filme de gênero. Nem sempre foi assim, mas hoje podemos encher a boca para falar que o nosso cinema tem de tudo. Existe uma qualidade de roteiro, de direção, um super cuidado. O longa teve uma contribuição incrível de Marco Ricca, que é um dos maiores atores que temos no Brasil. Respeitando todos os parceiros que já tive, ele foi um dos mais incríveis com que atuei.”
Com cenas fortes, que misturam violência, sexo e drama psicológico, Thaila conta que construir a personagem foi um desafio. “É um combo que o filme traz, de direção e roteiro densos. A Leticia, minha personagem, tem um mistério. É fluida, enigmática e pode ser tudo. Meu desafio foi fugir dos estereótipos e romper os estigmas que ainda costumam orbitar sobre uma garota de programa.”
Filha da terra
Nascida em Presidente Prudente, a distantes 558 km da capital paulista, Thaila é cidadã do mundo. Saiu de casa aos 14 anos, sem se despedir, em um ônibus com destino à metrópole. Na mala, R$ 300 e o sonho de trabalhar como modelo para contribuir com a renda familiar. Em pouco tempo, a carreira na moda deslanchou. Depois de São Paulo, foi para o Rio de Janeiro, Los Angeles e Nova York – lugares que revisitou anos depois, como atriz.
Apesar das muitas recordações cosmopolitas, a atriz ainda se sente uma menina do interior. “Prudente é minha raiz, minha base e minha tradição. Confesso que adoro a bagunça de uma cidade grande, mas sou filha da terra e preciso dela para me sentir completa”, conta. As memórias dos ares prudentinos são de muito afeto e simplicidade. “Lembro de andar de carrinho de rolimã e brincar de casinha em um terreno baldio do lado de casa. Era tudo muito genuíno e mágico.”
Hoje, 20 anos depois, a casa que compartilha com o marido, o também ator Renato Góes, no bairro carioca de Itanhangá, é retrato dos paraísos bucólicos que descobriu quando criança. “Escolhemos um lugar grande e arborizado, com cachoeira por perto e frutas no pé”. Nos muitos meses de isolamento social, foi no contato com essa natureza particular, em meio às lagoas da Barra da Tijuca, que se permitiu reenergizar. “Tive algumas crises de ansiedade nesse período, e estar em meio ao verde me reconectava à tranquilidade dos meus dias no interior. Era como voltar no tempo.”
E é nos veios e no ventre da terra que Thaila pretende dar à luz seu primeiro filho, Francisco. Grávida de quatro meses, a atriz sonha em deixar ao primogênito a herança do contato com a natureza e amor ao verde. “Quero que meu filho tenha o privilégio de aproveitar uma infância que seja o mais próxima possível da que eu tive em Prudente, com toda a liberdade de brincar na grama, de pés descalços e vento no rosto.”
Cachoeira criativa
É com esse mesmo carinho maternal que Thaila se refere a seus trabalhos. Além de gestar um filho, a atriz alimenta ideias e projetos há muito tempo. “Eles também são meus bebês”, comenta, entre risadas. O orgulho não é à toa. Desde sua primeira aparição na TV, como a adolescente Marcela na 14ª temporada de “Malhação”, já são quase 15 anos de carreira e um currículo que inclui inúmeras participações em novelas, filmes nacionais e internacionais, e séries em plataformas de streaming.
O plano para este segundo semestre é aumentar ainda mais essa “família”. “Além de ‘Lamento’, tenho outros quatro filmes para estrear”, diz. Dentre os títulos, estão o lúdico “Moscow”, o romance “O Garoto”, o distópico “Distrito 666” e o suspense “Inverno”. Esse último, protagonizado por ela e Renato – o primeiro do casal juntos em cena –, marca a estreia de Thaila como roteirista. “Eu sempre escrevi. Já fiz alguns cursos de roteiro em Nova York, mas muito mais por exercício e paixão. O impulso veio do isolamento, quando percebi que poderia usar o tempo ‘quarentenada’ para realizar mais esse sonho.”
Foi então que recorreu à ajuda criativa do amigo, roteirista e diretor Paulo Fontenelle. Juntos, eles delinearam a trama de suspense que deve chegar aos cinemas ainda neste ano. “A história foi 100% inspirada no momento que estamos vivendo e retrata a vida de um casal em quarentena, depois de serem atravessados por uma fatalidade misteriosa e sombria”, conta. De fato, não havia como fugir da temática pandêmica. Com a indústria cinematográfica ainda sob as restrições dos protocolos de saúde, o jeito foi rodar o filme inteiro dentro de casa. “Transformamos nossos cômodos em set de filmagem. Nós terminávamos de gravar e dormíamos com os equipamentos de iluminação ainda montados, com elementos cênicos na escrivaninha e macas de hospital encostadas no armário. Foi uma aventura.”
“Inverno” também é o primeiro projeto da Cachoeira Filmes, produtora audiovisual inaugurada por Thaila e o marido em 2020 – outro “filho” do casal gerado durante os meses de pandemia. Ainda sem previsão para novas produções da empresa, o próximo sonho é transformar a produtora em projeto social. “Temos essa ideia, ainda embrionária, de fazer da Cachoeira um espaço de incentivo a novos roteiristas, diretores e atores, que seja um suporte para jovens nomes da área.”
Ativismo está na moda
Na sua conta no Instagram – onde acumula mais de 6 milhões de seguidores –, a prudentina se autodescreve “atriz, ativista, feminista e espiritualista”. Dedicada a causas socioambientais, seu ativismo, ela explica, é mais uma herança das raízes interioranas. “A minha terra me fez militante. Foi naquele ambiente que percebi a necessidade de preservar e lutar pela natureza que ainda nos resta”, pontua.
Em agosto de 2020, a preocupação ambiental virou modelo de negócio. Ao lado das amigas e sócias – a produtora Maria Cláudia Luquet e a empreendedora Fernanda Cardamone -, lançou Amar.ca, grife com peças versáteis e 100% ecológicas. Da idealização à embalagem, Thaila acompanha de perto todas as etapas da confecção. “Quero ter certeza de que todo o processo vai refletir os valores em que acredito”. No catálogo da loja, que funciona exclusivamente online, todos os produtos possuem os selos “Eu Reciclo” e “Carbon Free”, de certificação sustentável. “Mais do que referência em estilo, queremos ser agentes de um movimento cada vez mais consciente na moda.”
Bem-informada e politizada, a atriz e empresária acredita que arte e o ativismo não só são um match possível, mas necessário. “Para nós, figuras públicas, que temos o privilégio desse espaço de fala e atuação, a omissão não pode ser uma opção”.
E é por isso que ela age e se movimenta. Thaila promove bazares beneficentes com lucro revertido a iniciativas sociais, faz coleta seletiva em casa, tem preferência absoluta por alimentos orgânicos e de pequenos produtores, e é madrinha do “Cidades Invisíveis”, projeto com sede em Florianópolis que, desde 2012, fomenta a capacitação e o empoderamento em comunidades vulneráveis, por meio do incentivo à produção artística.
“No fim, militância e arte se entrelaçam. Na atuação, a gente já empresta a pele e a voz a histórias que não são nossas. É, com toda certeza, um exercício poderoso e frequente de empatia, que quero sempre transbordar para a minha vida.”
Aos 75 anos, Alceu Valença celebra sucesso planetário com quatro novos álbuns
Nascido em julho de 1946, o cantor, compositor, advogado, cineasta, poeta e jornalista Alceu Valença celebra seus 75 anos agora em 2021. Confinado em seu apartamento no Leblon desde o início da pandemia, aproveitou para rever toda sua obra e compor canções inéditas. Enquanto isso, o mundo todo também mergulhou nos velhos sucessos desse trovador natural de São Bento do Una, no Agreste pernambucano. Na bruma leve das paixões que vêm de dentro, mais e mais pessoas dos quatro cantos do planeta – da Suécia à Argentina, do Canadá aos Emirados Árabes – se juntaram aos fãs de Alceu após “descobrirem” e se apaixonarem por alguns de seus clássicos, como “Belle de Jour” e “Anunciação”.
Agora, com o avanço da vacinação e a flexibilização das restrições sanitárias, o músico volta aos palcos, para shows no dia 25 de setembro em São Paulo (no Espaço das Américas) e nos dias 22 e 23 de outubro na capital fluminense (na casa de espetáculos Vivo Rio).
Na entrevista a seguir, Alceu fala sobre seus novos álbuns, discute o passado e o futuro, filosofa sobre o seu DNA nordestino e tenta explicar a viralização global de seus antigos hits.
Como foi sua quarentena, foi um período produtivo?
Todo mundo aqui se contaminou com esse vírus antes da pandemia se instaurar, logo depois do Carnaval de 2020. Eu, meus dois filhos e minha mulher testamos positivo, mas tivemos sintomas leves. Para mim, esses meses de confinamento foram improdutivos e produtivos. Improdutivos porque tive de cancelar 40 shows pelo Brasil e outros 14 na Europa. Mas foi também uma fase muito produtiva, porque compus cerca de 30 novas canções. Viajo muito e, nessas turnês, nunca sou eu quem cuida do meu violão. Eu só me encontro com ele na passagem de som, pouco antes dos shows. Nesses últimos meses, trancado em casa, tive a oportunidade de me reconectar com o instrumento. Há décadas não tocava tanto violão. Como resultado desse grande encontro nasceram 4 álbuns. Dois que já estão nas plataformas digitais e mais dois que serão lançados em breve.
E como foi a escolha do repertório desses álbuns?
Cada álbum tem um roteiro sentimental, as músicas contam uma história que se formou na minha cabeça, misturando releituras de velhos sucessos, tesouros garimpados nos lados B dos meus discos e composições inéditas. O primeiro, “Sem Pensar no Amanhã”, lançado em março, começa na praia de Boa Viagem com “Belle de Jour”, sobrevoa igrejas de Olinda em “Mensageira dos Anjos”, viaja com “Táxi Lunar” e vai a Itamaracá com “Ciranda da Rosa Vermelha”. A música me levou a lugares que a quarentena me impedia de visitar. Não há vírus capaz de deter a poesia. Já “Saudade”, o segundo álbum, lançado agora em agosto, começa com o samba “Era Verão”, que fala da minha mudança do Recife para o Rio, no começo dos anos 1970. Daí eu encontro uma morena com “Tropicana”, nós nos amamos “Como Dois Animais”, vivemos os conflitos de “Tesoura do Desejo”, mergulhamos em “Solidão” e “Saudade” e, ao final, nos reconciliamos no meu Pernambuco com “Ladeiras” e “Olinda”. Nos próximos dois discos, vou explorar mais a fundo os ritmos do Nordeste profundo, com baiões, xotes, martelos agalopados, toadas e emboladas.
Pelos títulos dos álbuns, parece que você não quer falar sobre o futuro (“Sem Pensar no Amanhã”), mas aceita sem problemas falar de passado (“Saudade”). Você está em um momento nostálgico?
Quando falo de saudade, não estou me referindo a algo distante, estou falando do meu presente, de hoje, de ontem, da falta que sinto de fazer shows, de poder andar na rua, de encontrar os meus amigos. A letra dessa música é bem clara: “Saudade da estrada, saudade da rua / saudade de amigos, como eu confinados / que mesmo distantes estão ao meu lado / Respiro o presente / esqueço o passado, os meses e as horas”.
Também na faixa “Saudade”, você diz que projeta um mundo mais civilizado, com mais saúde e menos miséria. Na sua opinião, o que é que mais está faltando no mundo neste momento?
Falta empatia, falta fraternidade. Quem tem muito deveria dividir mais com quem tem pouco ou nada. A desigualdade é uma doença pior do que a Covid. A riqueza precisa ser distribuída de uma forma mais justa. A solidariedade deveria ser a seta que orienta a nossa vida no “novo normal”. Se isso acontecesse, seria um “legado positivo” da pandemia.
E agora que você vai enfim sair do confinamento, quais são as suas expectativas para os shows de SP (em setembro) e do Rio (em outubro)?
Estou ansioso para reencontrar a plateia. Apesar de coincidir com o lançamento do álbum “Saudade”, não serão shows de voz & violão. Estarei no palco com Leo Lira (guitarra), Tovinho (teclados), Nando Barreto (baixo), André Julião (sanfona) e Cássio Cunha (bateria). Tenho vários formatos de shows – uns mais intimistas, outros mais festeiros – mas esses agora vão ser do tipo “resumão”. Vamos passear por sucessos de todas as fases da minha carreira – como “Coração Bobo”, “Táxi Lunar”, “Cavalo de Pau”, “Anunciação” e “Papagaio do Futuro” – e por clássicos de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, como “Baião”, “Vem Morena” e “Canto da Ema”.
Como será o Carnaval em 2022? Já enxerga uma volta à normalidade?
Se dependesse de mim, o Carnaval de 2022 seria igual ao de 2020. Celebraríamos a retorno a uma vida bem próxima daquela que podíamos levar antes da pandemia, como muita alegria e muita animação. Festa é sinônimo de encontro, de gente, de confraternização, de toque e de calor humano. Em 2020, meu trio foi seguido por mais de 200 mil pessoas no Parque do Ibirapuera e outras centenas de milhares no Recife e em Olinda. Ainda não temos nada definido, mas acredito que vai ser possível fazermos festa com segurança. Nos Estados Unidos, sobra vacina porque a população parece não estar muito interessada na imunização. Mas aqui a vacinação só não é mais rápida pela falta de imunizante. Todo mundo adora vacina! Até o Carnaval, toda a população brasileira já terá recebido devidamente suas duas doses. O povo quer se proteger para se livrar da tensão causada por essa moléstia. E o Carnaval será o marco dessa “libertação”. A alegria vai ser mais contagiante do que o corona!
Após ouvir “Sem Pensar no Amanhã” e “Saudade”, me pareceu que o timbre da sua voz está ficando mais agudo. Foi só uma impressão minha?
Que curioso, alguns dizem que a minha voz ficou mais grave, enquanto outros – como você – falam que está mais aguda. A verdade é que eu estou cantando diferente nesses álbuns de voz & violão. É um canto mais macio, mais intimista, mais doce, em harmonia com o violão. Não preciso fazer força nem disputar espaço com guitarras, percussão, teclados e naipes de sopros. Imagino que seja isso o que as pessoas estejam estranhando…
Você nasceu em São Bento do Una, cresceu e se formou em Direito no Recife, fez curso de verão na Universidade de Harvard, já morou em Paris e há décadas vive no Rio de Janeiro. Onde você se sente mais à vontade? Hoje você se considera mais carioca ou pernambucano?
Sabe, meu cabra, a verdade é que eu não moro em cidades, eu namoro cidades. Meu relacionamento com elas normalmente é muito breve. Estou sempre viajando, mas em geral eu chego num lugar, vou para o hotel, me apresento de noite, faço um ou outro passeio durante o dia, visito um restaurante ou museu e é só. Quando rola uma paixão, é algo efêmero, fugaz. E, apesar de ter passado mais da metade da minha vida tendo um apartamento no Rio como meu endereço residencial oficial, ainda me sinto um pernambucano. Jamais vou perder as minhas raízes. Esse DNA está presente na minha música e impregnado na minha personalidade.
Você passou por todas – ou quase todas – as grandes gravadoras, como Som Livre, EMI, Sony, Polygram… agora está na Deck. O que piorou e o que melhorou na indústria fonográfica nesses seus 50 anos de carreira?
Por um lado, hoje é muito, mas muito mais fácil para um artista gravar seu trabalho, produzir um álbum, um clipe, sem interferências de alguém do departamento de marketing. Depois é só publicar em uma das plataformas de streaming e o mundo todo terá acesso à sua obra, sem perrengues de prensagem ou distribuição. Isso é algo que melhorou muito. Por outro lado, a concorrência hoje é imensa e, muitas vezes, seu trabalho fica perdido num mar de canções de todo tipo, dos mais diversos ritmos, gêneros e procedências. Você fica meio que refém de um algoritmo ou de um sei-lá-o-quê que define quem vai te ouvir. Muitas vezes, algo medíocre faz um sucesso enorme e um trabalho da melhor qualidade fica esquecido e escondido nesse oceano virtual de arquivos sonoros. É complicado…
Como você explica esse novo “hype” de “Anunciação”, quase 40 anos depois de seu lançamento? A canção virou trilha do ‘Big Brother Brasil’, hino da seleção brasileira de futebol feminino em Tóquio e ‘bomba’ até nas pistas de dança no Brasil e no mundo, em versão dançante. Você fatura mais com ela hoje do que faturou nos anos 1980?
A música viralizou. Foi isso o que aconteceu. De repente, saltou para 55 milhões de visualizações no YouTube e outras dezenas de milhões no Spotify, na Deezer e na Apple Music. “Belle de Jour” também virou um grande hit planetário, com mais de 175 milhões de views no YouTube. Qual a explicação? Viral não tem explicação. Não existe receita para fazer um vídeo viralizar. Simplesmente acontece. Uma vez, em Portugal, eu, a Elba [Ramalho] e o Geraldo [Azevedo] gravamos um vídeo com o celular num Miradouro com uma vista linda e postamos, certos de que aquilo ia arrebentar na internet. Nada! Outro dia, fui à padaria aqui perto de casa, no Leblon, e vi um turista francês tocando ‘Anunciação’ no clarinete. Me apresentei a ele, disse que era o autor da música e, segundo depois, estávamos fazendo um vídeo, no improviso, acompanhados por uma menina da Argentina e um canadense ao violão. Este vídeo, gravado pela Yanê, minha esposa, teve muito mais repercussão e mais likes do que aquele que produzimos em Lisboa no capricho e com grandes artistas. Vai entender… Quanto à sua pergunta sobre dinheiro, infelizmente não estou um Real mais rico por causa desse ‘boom’. As plataformas digitais remuneram muito mal os artistas. Mas fico feliz com o sucesso, por atingir um público novo e por ter ajudado a elevar o ânimo das meninas do futebol feminino.
A propósito, a que se refere a letra de “Anunciação”? Ela é apenas uma epifania sobre a chegada de uma mulher ou é um hino de esperança pela volta de dias mais felizes?
Eu não sei compor músicas sob encomenda. Para mim, não existe isso de escolher um tema, sentar e escrever uma nova canção. A inspiração vem quando ela quer, do jeito que ela quer. Eu componho como o Chico Xavier, sou tomado por um surto criativo que me leva a lugares que nem o meu inconsciente sabe explicar. “Morena Tropicana”, por exemplo, foi composta num quarto de hotel em São Paulo, numa época em que eu estava namorando uma loira. Ou seja, não tinha nem uma morena e nada tropical por perto! [risos] A inspiração veio porque me lembrei das obras de um artista plástico recifense, Sérgio Diletieri Lemos, famoso por pintar frutas tropicais como mangas, cajus, sapotis, umbus e cajás. No caso de “Anunciação”, eu tinha acabado de comprar uma flauta transversal e saí com meu novo instrumento pelas ruas de Olinda para ver se algo ali me estimularia a compor. Passei pelo sino da catedral, pelo quintal onde a roupa estava estendida no varal, depois uma amiga sussurrou no meu ouvido que a melodia que eu estava executando era muito bonita e assim foi. A música é uma colagem do que vi naquela manhã de domingo. Mas, como eu me envolvi profundamente com a campanha pelas “Diretas Já” e viajei o Brasil todo com Ulysses Guimarães e outras lideranças desse movimento na época do lançamento da música, muita gente associou a letra ao retorno da Democracia. Já falei mil vezes que a letra não tem nenhuma conotação subversiva, mas até hoje tem gente insistindo que ela tem. Não sou político e nem profeta – sou poeta!
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