Casal Rueda se reconecta com as origens na vida de fazenda em São José do Rio Pardo

Casal Rueda se reconecta com as origens na vida de fazenda em São José do Rio Pardo

É em um sítio em São José do Rio Pardo que começa o trabalho de Jefferson e Janaína Rueda, que conquistam os paladares mais exigentes com suas criações na Casa do Porco e no Bar da Dona Onça

Não, ninguém passou ileso pela pandemia. Jefferson Rueda, o homem por trás do melhor restaurante do país, vulgo a Casa do Porco, teve um burnout, palavra de ares chiquetosos e efeitos nefastos que nomeia a síndrome psíquica provocada pela exaustão profissional extrema. Palavra que sintetizou andanças sem rumo, olhares para o nada, silêncios empedrados e a certeza de que não havia saída.

Janaína Rueda, a mulher à frente, por trás e ao lado desse homem, soltou as garras como nunca. Mais do que manter a soberania da tal Casa, permitiu que do restaurante brotasse uma horta, um frigorífico prestes a abrir as portas, uma padaria na mesma situação, um restaurante-escola e um reality show a ser gravado pelo Sabor & Arte (canal de TV por assinatura sobre culinária recém-lançado pelo Grupo Band), entre mais um bocado de coisa.

Lockdowns, mais de uma centena de colaboradores, inexistência de delivery, mãe com câncer, filhos adolescente e pré-adolescente 100% do tempo em casa. Nenhuma armadilha paralisou a felina chefona. Nem seu Bar da Dona Onça, nem o Hot Pork, nem a Sorveteria do Centro. E nenhuma decisão foi mais afiada do que a de comprar um sítio no interior paulista e convertê-lo no cenário mais fértil da gastronomia nacional.

 

Jefferson e Janaina Rueda - Foto Ricardo D'Angelo - Prazeres da Mesa

Jefferson e Janaina Rueda – Foto Ricardo D’Angelo – Prazeres da Mesa

 

Vida Caipira

Já quase se confundindo com Minas Gerais, São José do Rio Pardo abraça Cerrado e Mata Atlântica, tem a estátua que substituirá o Cristo Redentor carioca em caso de uma tragédia, tem onça-parda e lobo-guará. Bem ali, em um casebre às margens do rio, Euclydes da Cunha refugiou-se três anos para escrever “Os Sertões”. Em outro casebre pertinho dali, há um ano Janaína Rueda prepara licores, enquanto entre ruínas de casarão, galinheiro, horta e floresta intocada, Jefferson planta e colhe. Ingredientes e ideias orgânicos.

A vizinhança é velha conhecida de Jeffim, em contrapartida, o grande laboratório a céu aberto é pura novidade, mesmo para um filho daquelas terras: “O sítio estava abandonado, era só mato. Aí você vai descobrindo que tinha uma casa aqui, uma hortinha ali, uma cozinha sem teto no meio do nada. Começa a plantar girassol para reciclar os nutrientes do solo e ver a vocação da terra. Cultive ervas para não precisar ir à farmácia. Aí já começa: vem lagarta, vem passarinho, aí vem bicho que come passarinho. Aí você compra umas galinhas, porque galinha come tudo o que aparece, mas já vem um mais esperto querendo pegar a galinha. Na roça é assim, tudo tem um sócio”, conta o chef.

Às vezes, o sócio mora sob o mesmo teto. Baunilha, um dos quatro cães do lugar, não resiste a uma penosa: “Ela já matou umas vinte, quase acabou com as galinhas d’angola. Minha mãe queria dar a cachorra, a Janaína finge que quer se livrar, mas sabe que a cachorra é um bebê e que tem espírito caçador”, confessa. E, como pai coruja diante do filho que faz arte, o sorriso sai largo.

O cotidiano do Sítio Rueda é essa mistura de comédia da vida privada, bastante trabalho e muita comida, embalado pela Rádio Imprensa FM, de Vargem Grande Sul, e por todo tipo de música popular brasileira. Logo cedo, Seu Zé, pai do chef e vizinho prestativo, faz uma ronda. Passa pelo galinheiro para fazer a contabilidade das aves e recolher os ovos, checa se não há nada para ser reparado e toma um café na mesa sempre posta. Pode ter suco do que houver no pomar ou geleia do que já houve, vai ter pão de queijo com um queijo curado por ali, presunto caseiro e um bolo, quiçá feito por sua esposa, dona Carminha, que, mais do que ninguém, adoça o sítio com fornadas de biscoitinhos, bolos e pudins.

Janaína já vai estar preocupada com o almoço, com as aulas dos filhos, com a enxurrada de mensagens nas redes sociais, com o noticiário. Mas não abrirá mão de compartilhar uma xícara com o sogro, nem de saber o que ele viu de novo, muito menos de inquirir o marido sobre os planos do dia.

 

Jefferson e Janaína Rueda - Foto Maria Vargas

Jefferson e Janaína Rueda – Foto Maria Vargas

 

Há que ver se tem tomate para ser apanhado, pegar um pouco de couve, checar se sobrou um quiabinho. Já está na hora de abrir mais canteiros, mas também é preciso passar para ver os porcos. Afinal, embora o rancho Rueda ainda não tenha seus próprios chiqueiros, eles estão na gênese de tamanha metamorfose. Protagonistas dos banquetes servidos no Centro de São Paulo, piaus, canastras, carunchos e pirapitingas passam a vida no Sítio São Francisco, sob o zelo de José Luís Bertoletti.

Impressiona o silêncio e o asseio dos suínos. Pretos, marrons, malhados, eles são livres para se espalharem pelos gramados, entre raízes de árvores e, quando o sol escalda, para rolarem na lama. “O Zé Luís tem olho para saber que porca vai ser boa mãe, que porco não está bem, conversa com eles. Tudo parece ser tão fácil… Por isso que eu digo: para fazer cozinha brasileira tem que amar o seu principal ingrediente e conhecer cada passo desse chão, conhecer a criação”, pontua o cozinheiro.

 

Jefferson Rueda - Foto Luis Fernando Pourrat

Jefferson Rueda – Foto Luis Fernando Pourrat

 

Jefferson conhece e se envolve nela: distribui carinho quando passa por ali, sabe quantas toneladas de cenoura e beterraba precisam vir do hortifruti e quantos milhares de litros de soro de leite, vindos de um outro vizinho, o Queijos Roni, alimentam diariamente os mais de mil animais. É quase o mesmo número consumido a cada ano em seu restaurante: 1.200 porcos. Do focinho ao rabicó, nada é desperdiçado. “Eles vivem pelo menos um ano, porque é mais sustentável e mais ‘humano’. A carne pode não ser tão maciazinha e branquinha quanto a de leitão, mas tem personalidade, mostra que eles tiveram uma vida boa. E eu preciso honrar isso, né?”

 

Foto divulgação

Foto divulgação

 

Na volta para a casa, dá sempre tempo de fazer um pit stop no Bar do Carlão, em São Sebastião da Grama. Torresmo, limão caipira e cerveja podem atrasar e diminuir o apetite para o almoço, o que Janaína tenta, em vão, evitar: “Jeffinho, é sério que você se encheu de torresmo? Eu fiz feijoada”. Ela arregala os olhões azuis, menos bravos do que ela gostaria que parecessem. Se em qualquer família feijoada é sinônimo de festa, na vida dos Ruedas ela não faz cerimônia, aparece assim, sem mais nem por que, talvez por sua própria alma festeira ou por ser o prato preferido da matriarca.

A menina urbana deixou-se cativar pelo novo habitat: “Cresci no morro da Vai-Vai, tenho medo de cobra, gosto de gente. Sou da boêmia, de ir dormir às cinco da manhã, e não de acordar a essa hora. Aí vêm a vida e os ensinamentos. E você vê o privilégio que é poder plantar, trabalhar, conversar, colher e cozinhar no lugar mais lindo para mim e, se Deus quiser, permitir que qualquer cozinheiro do Brasil ou do mundo possa ter essa mesma vivência.”

Além de roteirizar o que será a Escola Rueda, em menos de um ano, Jana apagou incêndio não no sentido figurado, viu o renascimento do marido, debulhou muito milho, catou amora e caqui, depenou galinha para reproduzir em casa a célebre galinhada que é um dos carros-chefes de seu Bar da Dona Onça e se deu ao direito de observar as garças no fim do dia. Por essas e por outras, naquele clã não há feijoada que comprometa o arado da tarde ou os planos para o jantar, pois, às margens do Rio Pardo, mesmo que a agenda tenha mais tarefas do que o dia dá conta, tem leveza. Quando dá, tem pescaria de lambari também. Tem propósito por trás dos gestos.

 

Da Roça para o Centro

Os 250 km que separam São José de São Paulo podem ser feitos e refeitos em um mesmo dia. O casal Rueda é capaz de madrugar para colher brotos e flores, levar tudo para a Praça da República, servir almoço e jantar e refazer o caminho da roça.

A bem dizer, Jefferson é afeito às caminhadas, especialmente depois de ter pisado os 380 km que separam sua São José de Aparecida do Norte. “Você vai sem nada, vai com bolha. Só vai. Você se transforma”, diz. O chamado “Caminho da Fé” poderia metaforizar a trajetória do chef na cozinha: estabelecer-se numa zona pouco glamourosa, celebrar uma proteína famigerada, conquistar o posto de 4º melhor restaurante da América Latina, produzir organicamente a maior parte de seus próprios insumos.

 

Quitutes servidos no menu Da Roça para o Centro, servido no restaurante A Casa do Porco - Foto Mauro Holanda | Divulgação

Quitutes servidos no menu Da Roça para o Centro, servido no restaurante A Casa do Porco – Foto Mauro Holanda | Divulgação

 

A marcha da Casa do Porco é um pouco como a de enfrentar tempestade sem guarda-chuva, a de ter o pé em carne viva e seguir. Tem o passo a passo do criar, do plantar, do colher, do cozinhar e do democratizar – o que significa servir menus degustação a menos de US$ 35, acolher vegetarianos e veganos e também colocar em prática uma escola de alta cozinha caipira popular brasileira.

No campo ou no coração da metrópole, as andanças dos Ruedas são e serão sempre sala de aula, porque servem de lição e alimentam os sonhos – de serem autossustentáveis, de colocarem a roça no mapa da gastronomia mundial, de fazerem cada vez mais pessoas felizes à mesa.