O estilista mineiro Ronaldo Fraga, que acaba de lançar na SPFW uma coleção inspirada nas cores e na cultura do Sertão do Cariri, fala sobre a impressionante potência inspiradora desse e de outros magníficos tesouros de um Brasil que ainda existe, insiste, resiste e encanta
O azul do céu, a brancura da batina de Padre Cícero, o colorido dos pássaros do Sítio Pau Preto do Potengi, as surpreendentes formas dos aviões de lata do mestre Françuli, os arabescos de Espedito Seleiro, os tambores do reisado e as rezas de dona Zulene: toda essa riqueza de tradições, sons e cores do Cariri Cearense inspiraram Ronaldo Fraga, de 53 anos, na concepção de “Terra de Gigantes”, sua mais recente coleção, lançada com um vídeo na edição online da SPFW, em junho.
O estilista mineiro sabe como ninguém explorar a potência inspiradora desse Brasil que nem todo mundo sabe que existe, mas que resiste, insiste e encanta. Não à toa, ele foi o primeiro representante da moda brasileira a receber a medalha da Ordem do Mérito Cultural, em 2007, concedida pelo então ministro da cultura Gilberto Gil. A comenda se destina a personalidades que dão corpo à cultura brasileira com seu trabalho.
As criações de Ronaldo já foram apresentadas no Japão, na Europa e em vários países da América Latina. Ele já escreveu e ilustrou livros, já criou figurinos para peças teatrais, já desenvolveu produtos para marcas como L’Occitane, Tok&Stok e Chilli Beans, e foi selecionado pelo Design Museum, de Londres, como um dos sete estilistas mais inovadores do mundo.
Na entrevista a seguir, Ronaldo Fraga fala um pouco de seus projetos e ações que buscam reduzir a distância que existe entre o Brasil feito à mão e o Brasil industrial, fala também dos rumos da moda brasileira e mundial e ainda exalta a importância fundamental da liberdade na criação e na vida.
Você acaba de abrir a edição 2021 da SPFW com um lindo vídeo rodado no Sertão do Cariri, que foi a região que inspirou toda a sua nova coleção. Por que o Cariri? E por que agora?
Para mim, o Nordeste é o grande amálgama da cultura brasileira, e o Sertão do Cariri é o epicentro disso. Muito da formação da nossa face mestiça tem esse lugar como referência. O caldeirão étnico da região mistura índios Kariris com escravizados malês muçulmanos trazidos do Norte da África e judeus e cristãos novos que fugiram da Europa na época da Inquisição. Essa riqueza explica a potência da cultura desse lugar. Falar disso agora é para não perdermos de vista um Brasil que ainda existe, resiste, insiste e encanta. Nesses tempos duros e cinzentos, quisemos ir ao encontro de algo festivo, fértil e puro. É preciso trazer oxigênio para as pessoas. Acredito que essa é uma das funções de todo designer.
E de onde surgiu a brilhante ideia de centrar todo o “desfile” em uma só modelo, a musa Suyane Moreira?
Nós ainda estamos aprendendo a lidar com essa coisa de ‘fashion film’ para as semanas de moda. A proposta não foi simplesmente adaptar um desfile para o formato de vídeo. Nessa nossa produção, mostramos o que está por trás da roupa, de onde ela nasceu. Tudo – a cor, a luz, a música, a paisagem – exala e exalta a cultura do Cariri. E a Suyane foi uma escolha natural e perfeita para sintetizar tudo isso. Nascida em Juazeiro do Norte, ela é neta de kariris, foi lançada como modelo aos 18 anos e hoje, aos 38 e com dois filhos, está no auge de sua beleza brasileiríssima.
Em 2050, quando você estiver com 83 anos e Mano Brown Jr., recém-empossado como Ministro da Cultura, resolver homenageá-lo com um museu dedicado à sua obra e à sua colaboração para a cultura brasileira, qual coleção você gostaria que ocupasse a sala principal da exposição de abertura da Fundação Ronaldo Fraga?
Que pergunta divertida, adorei! Mas é difícil escolher. Acho que esse espaço nobre deveria ser ocupado pela coleção de 2008, que faz parte da exposição “Rio São Francisco Navegado por Ronaldo Fraga”, que rodou o Brasil entre 2010 e 2013. Foi o primeiro projeto de moda com patrocínio aprovado pela Lei Rouanet, enxergando a moda como cultura. Era um projeto transversal: tinha vídeos realizados pelo Wagner Moura, poemas do Drummond declamados por Maria Bethânia, tinha arte popular e tinha também a moda. Nessa exposição, a moda dialogava maravilhosamente com outros vetores da cultura.
Esses tesouros do Brasil mais autêntico, como a estética do Cariri e outros exemplos dessa cultura que resiste, deveriam estar mais presentes na moda brasileira?
Sim, claro. O Brasil é de uma potencialidade inspiradora impressionante. Precisamos valorizar essa diversidade, esse patrimônio. Estilistas franceses, ingleses e japoneses vêm para cá se inspirar. E só depois que acontece esse reconhecimento estrangeiro, os jovens estilistas brasileiros começam a dar valor ao que temos, ao que somos. As coisas estão melhorando, mas ainda há muito a avançar nesse processo. Até recentemente, as peças brasileiras ficavam só na cozinha e na área de serviço, mas aos poucos vão ganhando mais e mais espaço na sala.
A propósito, você recentemente ajudou os atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão na ressignificação dos produtos artesanais e gastronômicos de Mariana e Barra Longa, já estimulou as artesãs do Vale do Jequitinhonha e, recentemente, revelou para o mundo o magnífico trabalho do Museu Orgânico do Cariri, que reúne mestres da cultura da Chapada do Araripe. E agora, para onde está virado o seu radar?
A moda é poderosa e transita muito bem por várias outras áreas. Ontem à noite ela dormiu com o Teatro, depois tomou café com a História, fez uma reunião com as Artes Plásticas, almoçou com a Economia e, de tarde, tomou chá com a Psicologia. Ela tem o poder de encontrar poesia em terrenos áridos. E eu sou assim também. Adoro tudo que me alumbra e me assombra. Fujo dos cartões-postais, dos lugares onde está tudo lindo. Prefiro a beleza de lugares em que nem todo mundo consegue enxergá-la. Minha bússola sempre me leva para onde tem ruído, tem fantasma, tem vida e morte – ou seja, o Brasil me oferece muuuitas possibilidades. [risos]
O que aconteceu com a moda brasileira, que viveu um grande “boom” nos anos 1990 e no início deste século 21, mas de repente “derreteu”, viu várias grifes encolherem e incontáveis estilistas simplesmente sumirem do mapa? Por que eventos como as semanas de moda perderam grande parte da visibilidade que tiveram no passado?
Bem, se a moda é um documento eficiente do tempo em que vivemos, ela está fazendo muito bem o seu papel. Ela registra e reflete um momento de apatia, de desalento e de incertezas. Mas a moda vai renascer. Nessas últimas duas décadas, vimos a nossa indústria têxtil migrar para os países asiáticos e não fizemos nada para conter esse movimento, mas a sanha criativa dos brasileiros persiste. Acredito que as semanas de moda precisam ser repensadas e readequadas, e vale lembrar que esse ‘flop’ delas não é um fenômeno exclusivo do Brasil, é uma tendência global. Só uma coisa é certa: a janela virtual que se abriu não vai fechar nunca mais.
A moda está fora de moda? Como ela se insere no mundo pós-pandemia, que deve ser um tempo de menos consumismo e mais consciência?
Durante décadas, a moda reinou absoluta como referência de consumo. Mas, a meu ver, a gastronomia, a decoração e a tecnologia vêm assumindo esse papel nos últimos anos. A moda perdeu força? Sim. Ela morreu? Não, mas precisa urgentemente achar o seu novo lugar no mundo. Ela precisa sair dessa coisa ensimesmada e encontrar um jeito de voltar a ser relevante. Sobre essa mudança para uma vida com menos consumismo e mais consciência, eu sinceramente adoraria ver todo mundo pegar esse caminho, mas acredito que essa transformação será mais individual do que coletiva. Algumas pessoas trarão isso para suas vidas, mas infelizmente nem todos vão embarcar nessa.
Sua coleção de 2020 homenageou a estilista Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel, assassinado por militares durante a ditadura nos anos 1970. No lançamento dessa coleção, você disse que todas suas coleções são políticas e poéticas. Qual é o “statement”, a mensagem que a sua coleção atual quer mandar para quem a vê, a aprecia, a consome?
Para mim, o ato de vestir é sempre um ato político. Falar de povos originários, de ancestralidade e de uma cultura que resiste é uma forma de fazer política. Não estou me referindo à “polititica” – aquela porcaria toda que rola em Brasília –, mas sim a questões que precisam ser discutidas e ganhar destaque neste momento sombrio do país.
Como bom mineiro e como uma pessoa extremamente criativa, você acredita que a Liberdade é tão essencial à vida como o oxigênio?
Sem liberdade não existe criatividade. Direitos conquistados estão seriamente ameaçados. Não podemos regredir, jamais. Chega de atraso. Precisamos fortalecer o que já conquistamos e avançar em novas questões morais, comportamentais e sociais.
Depois de 19 anos casado com a mãe de seus dois filhos, você iniciou seu primeiro romance com outro homem. Agora em junho, no Dia dos Namorados, publicou na revista “Piauí” um bonito depoimento falando de sua relação com o apicultor Hoslany, que foi criado em um circo, é filho de um atirador de facas e se vestia de Monga no trem-fantasma. Como está sendo esta nova experiência?
Sempre tive um cuidado de não criar um descompasso entre o que eu falo e o que eu faço, pessoal e profissionalmente. Sou um homem que desenha a sua vida pelos traços e tintas do amor e da paixão. O meu trabalho é baseado no desejo de liberdade. Não fazia sentido eu tentar aprisionar esse desejo, como um tigre raivoso. É fácil? Nada é fácil. Tudo tem um preço: tem a exposição, o estranhamento, a curiosidade, a pressão e até a agressividade da sociedade. Mas eu não me incomodo em pagar pelo que é justo. Pela paixão, sempre vale a pena. Desde o início, eu dividi essa descoberta com os meus filhos e lhes disse que, mesmo que eles não aceitassem esse meu novo amor, pelo menos os filhos deles já nascerão libertos e encararão isso com naturalidade. Mas o Ludovico e o Graciliano, meus queridos filhos de 15 e 17 anos, me entenderam e me deram todo apoio. O Brasil é um dos países onde há mais violência contra pessoas LGBTQIA+. É muito importante que eu fale sobre esse meu novo amor e que o governador do Rio Grande do Sul resolva sair do armário em rede nacional. Eu acho importantíssimo que todos que tenham condições se posicionem e se manifestem em voz alta sobre questões como a liberdade de colocar o seu coração no lugar onde ele bate. Esse é o nosso compromisso civil. O momento em que vivemos nos cobra posicionamentos.
Por fim, qual é o futuro da moda, a seu ver? Não acha meio extemporâneas essas imposições de “cor do ano” e “peça da estação” nessa época em que individualidade e diversidade são cada vez mais valorizadas?
Cor do ano e peça da estação já não fazem nenhum sentido há muitos anos. A moda não pode querer ditar o tempo. Ela é um reflexo do tempo, do que vemos no retrovisor da história. Para o futuro, vejo uma moda cada vez mais diversa, inclusiva e trazendo discussões de temas muito para além de formas, proporções, tecidos e cores. Porque – vamos combinar – roupa nem é o que nós mais estamos precisando, não é? O mundo está carente de tantas outras coisas.
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