Após sucesso no Brasil, a atriz Maria Fernanda Cândido conquista o mundo com papéis em filmes de Hollywood e da Europa

Após sucesso no Brasil, a atriz Maria Fernanda Cândido conquista o mundo com papéis em filmes de Hollywood e da Europa

A atriz vive grande fase no cinema e no streaming internacional, não abre mão de projetos no Brasil e faz parte de reflexões sobre desejo, movimento, mudanças e a vida contemporânea

O desejo é desorganizador e faz as coisas saírem do controle. É como o movimento, nos tira de um lugar, nos joga em outro. Caminha à procura de um objeto – aquilo ou alguém que sabemos o que é, e não sabemos mais logo depois. A curiosidade e a sensibilidade de entender quem se é e o que se quer, é um pouco o que a atriz Maria Fernanda Cândido, natural de Londrina, no Paraná – mas cidadã de muitos lugares – tem mostrado em cada projeto a que se propõe.

Essa busca subjetiva se materializa no documentário “O Incerto Lugar do Desejo”, de Paula Trabulsi, que conta com narração e atuação de Maria Fernanda – e agora está disponível no streaming do Petra Belas Artes. A produção traz a atriz no papel de Ana Thereza, que é o ponto de partida para que os entrevistados abordem o objeto principal: o desejo, e suas formas e possibilidades de crescimento, ascensão e, além disso, de que maneira ele pulsa em todos nós.

 

Foto | Lucas Seixas

 

Desejo é assunto de muitos. Filósofos, psicanalistas, neurocientistas, atores, antropólogos, linguistas. Assim como muitos outros temas, que atravessam a vida contemporânea. É preciso ter um espaço para discutir e debater tudo isso. Com esse propósito surgiu a Casa do Saber, em 2004, – instituição da qual Maria Fernanda é sócia e curadora do ciclo de Leituras Dramáticas. “Fiz faculdade de Terapia Ocupacional, mas lá sentia a necessidade de me aprofundar em temas como filosofia, então junto a amigos pagávamos por aulas e leituras com um professor”, conta.

Desse grupo, vieram outros amigos, parceiros e professores. “A Casa do Saber, hoje, é um espaço de disseminação de conhecimentos, e busca se aprofundar no diálogo acessível e plural que envolve as diferentes formas de se pensar a vida e a sociedade”. Com a pandemia, os cursos e as produções digitais foram ampliados, na Casa do Saber +, a plataforma de streaming do espaço. Entre aulas sobre neurociência e arte brasileira, por exemplo, também aparecem conteúdos muito especiais, como a minissérie “Infinito Brasileiro”, com Gilberto Gil. Agora, a Casa do Saber já chega a quase meio milhão de seguidores no Instagram.

 

Foto Lucas Seixas

Foto Lucas Seixas

 

Abismo de si

Maria Fernanda Cândido faz muitos mergulhos. “Escolho papéis que falam de alguma forma comigo, o que me norteia nessas escolhas são as personagens, os projetos”, reflete. Ler “Paixão Segundo GH”, livro de Clarice Lispector, de 1964, é, sem dúvida, uma imersão, ficar submerso. É se deparar com um enredo aparentemente banal, à primeira vista. Depois entender que é uma história sobre o pensar e o sentir, uma viagem por dentro da subjetividade da protagonista-narradora, GH, que decide fazer uma limpeza geral no quarto de serviço de seu apartamento, depois da demissão da empregada doméstica, Janair.

Com estreia prevista para este ano, o longa “A Paixão Segundo GH”, inspirado no clássico homônimo e dirigido por Luiz Fernando Carvalho, propõe um retorno à obra, com a atriz no papel principal – na verdade, ela é o elenco. “Foi abismal, uma experiência marcante, mas é importante destacar a relação com a empregada, a Janair, que me parece crucial nesse livro, uma verdadeira ponte para a imersão de GH em si”, enfatiza.

Isso porque, ao adentrar o desconhecido, a patroa desenrola o enredo. “O quarto da empregada é o lugar que ela desconhecia no universo de sua própria casa, isso diz muito. Clarice propõe um mergulho nos aspectos sociais, tradicionais na formação da nossa sociedade… isso nos anos 60, e é muito atual. Ainda há espaço para as reflexões da autora hoje, por isso esse filme é tão importante.”

E ainda virão outros. 2022 é período de muitas estreias, como o longa italiano “Bastardos a Mão Armada”, de Gabriele Albanesi, e “Vermelho Monet”, de Halder Gomes, rodado em Lisboa, Paris e Londres, que também estão entre os projetos com a atriz que chegam ao público neste ano.

 

Em “Bastardos a mão armada” | FOTO FRANCESCO MARINO

 

Embarque certo

Entre filmes produzidos em diferentes partes do mundo, Maria Fernanda reforça seu lugar incerto, do movimento, ao mesmo tempo que se coloca como corpo e voz do Brasil, de suas raízes. “Tenho uma mala de mão sempre pronta”, conta. Na prática, são duas residências, em Paris e em São Paulo – para os testes e filmagens na Europa e aqui. “Mas nos últimos tempos, por causa de todos esses projetos, tenho ficado pouco em cada uma delas.” O grande momento internacional da atriz talvez tenha se evidenciado em “O Traidor”, longa italiano dirigido por Marco Bellocchio, lançado ao público em 2021 e muito visto e aplaudido mundo afora. O filme foi indicado à Palma de Ouro de Cannes. Por sua interpretação de Maria Cristina, Maria Fernanda Cândido recebeu o prêmio de melhor atriz no Kineo Awards, em Veneza, e no Prêmio das Nações, do Festival de Taormina, na Sicília, além de ter sido uma das atrizes elegíveis ao Bafta, uma das mais importantes premiações do entretenimento mundial.

 

Maria Fernanda Cândido no filme “O Traidor” | FOTO MARCIO AMARO

 

O longa conta a história de uma guerra generalizada entre os chefes da Máfia Siciliana pelo controle do tráfico de heroína. Tommaso Buscetta, um integrante de alto escalão, foge para se esconder no Brasil e a trama se aprofunda. “Trabalhar com Marco Bellocchio foi algo especialíssimo. Ele é um dos grandes diretores do nosso tempo, do mundo. Sua forma de fazer cinema, de criar é genuína. É até difícil elencar o que foi mais intenso dessa experiência para mim.”

 

Fantástica e latina

Com essência no teatro e no cinema, é inevitável que, hoje, o trabalho de Maria Fernanda também tenha chegado nos streamings. A atriz está confirmada na segunda temporada da série “El Presidente”, um dos grandes sucessos da Amazon, que é inspirada na vida do ex-presidente da FIFA João Havelange. Sua estreia no streaming é interpretando Anna Maria Havelange, esposa de Havelange, que é vivido pelo ator português Albano Jerónimo. As filmagens já foram iniciadas no Uruguai e o brasileiro Du Moscovis também está no elenco.

Os projetos são mesmo diversos, furam as bolhas, chegam a muitas pessoas, a grupos diferentes. E, agora, todo o trabalho da atriz se evidencia na participação em “Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore”, que é um dos longas mais aguardados pelo público para 2022 – com estreia para abril. Maria Fernanda vive a bruxa Vicência Santos. “Foi a primeira vez que meus filhos se despediram de mim alegres, diziam ‘vai lá, mamãe’, felizes”, lembra. Os adolescentes estão empolgados para ver a mãe nas telonas, ao lado de Eddie Redmayne e Jude Law, dentro do universo de Harry Potter e de J.K Rowling, assim como todo o país e os fãs dos bruxos.

 

A atriz no papel de Vicência Santos, no longa “Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore”, produção derivada da saga Harry Potter | FOTO JAAP BUITENDIJK

 

“Não imaginava! Quando fiz o teste, ainda não sabia ao certo como seria o roteiro e o papel, foi uma grande alegria! Os filmes já faziam parte da nossa família, da nossa história, e a Vicência é muito potente, representa os bruxos do mundo latino, fala um pouco com todos nós”, antecipa.

A energia criativa e pulsante de Maria Fernanda Cândido, em tantos trabalhos, inspira um ano mais ativo, para fora, com encontros pelo mundo e novas ideias efervescentes, além de mudanças necessárias que precisam acontecer. “2022 é uma oportunidade para fazermos um estudo, estou confiante de que será um período decisivo para melhor, com eleições no país e mais enfrentamento à pandemia.”

De Elis Regina à Lara de “Um Lugar Ao Sol”, Andréia Horta empresta sua voz e seu corpo a personagens complexas, potentes e genuinamente brasileiras

De Elis Regina à Lara de “Um Lugar Ao Sol”, Andréia Horta empresta sua voz e seu corpo a personagens complexas, potentes e genuinamente brasileiras

Com várias produções biográficas no currículo, a atriz e apresentadora mineira Andréia Horta agora se prepara para dar vida à mãe da dupla Chitãozinho e Xororó em nova série da Globoplay

Para dar vida às suas personagens, Andréia Horta recorre ao silêncio e à escuta. “Eu me calo para ouvir com clareza o que aquela história quer gritar”, explica. Depois, de ouvinte, se faz intérprete. Compartilha sua voz e seu corpo com outro alguém e, através de si, o permite que fale, cante e brade por liberdade. A imersão nesses universos particulares é também um mergulho solitário em si mesma.

Foi seguindo esse método que a atriz construiu Lara, sua mais recente personagem e a heroína da novela global “Um Lugar Ao Sol” – uma gastrônoma que parte de Minas Gerais para o Rio de Janeiro na tentativa de abrir seu próprio restaurante. Antes desse sonho se concretizar, ela vende quitutes nas ruas da metrópole. “O silêncio do estudo me trouxe memórias do início da minha carreira, de quando eu mesma, vinda de Juiz de Fora, fazia e vendia bolo de laranja, torta de carne moída e até poesia nas ruas paulistanas para custear meu sonho de ser atriz.”

 

A atriz em cena na novela “Império” ao lado do ator Alexandre Nero | Foto Alex Carvalho | Globo

 

Andréia já foi muitas. Viveu a revolução na pele, como Joaquina, a filha de Tiradentes na minissérie “Liberdade, Liberdade” (2016); foi filha de comendador em “Império” (2015); denunciou os horrores das internações psiquiátricas no extinto manicômio de Barbacena, na série “Colônia” (2021); e cantou a revolta contra a ditadura militar como Elis Regina, no cinema – papel que lhe rendeu, inclusive, indicação ao Emmy e um Kikito no Festival de Cinema de Gramado.

Em 2022, prestes a completar 39 anos de idade e 22 de carreira, ela se prepara para ampliar a coleção de biografias vividas. Vai encarnar dona Araci, a mãe de Chitãozinho e Xororó, na série “As Aventuras de José e Durval”, que deve chegar ao Globoplay nos próximos meses.

Em entrevista à 29HORAS, a atriz comentou seus trabalhos mais recentes, celebrou os ecos da obra de Elis em sua vida e refletiu sobre o papel transformador da arte. Confira os principais trechos dessa conversa.

 

Foto – Fotógrafo: Marcus Leoni @marcusleonii | Diretora de arte: Renata Willig @renata_willig | Make/Hair: Cristian Dalle @cristian.dalle | Stylist: Yakini Rodrigues @yakini_kiki

 

 

 

A Lara, de “Um Lugar Ao Sol”, é mineira como você. Interpretá-la é um retorno às suas origens?
Sem dúvida. Embora tenhamos ambições diferentes, nós compartilhamos uma alma muito próxima. Um frescor que vem da nossa origem e extravasa no nosso jeito de falar. Foi uma experiência muito acolhedora e feliz poder compor essa personagem a partir da musicalidade primeira da minha vida, que é o sotaque mineiro. A Lara fala como a Andreia, ri as mesmas gargalhadas e tem uma simplicidade que encanta.

 

Assim como a Lara se aventurou pela metrópole, de Juiz de Fora você veio para São Paulo estudar teatro e, antes de se firmar como atriz, chegou a improvisar como “empreendedora das ruas”. Vendeu bolo, torta e até poesia. Como foi esse período? Quais são as suas principais memórias dessa época?
Foi um momento muito duro financeiramente, mas ainda assim, um dos mais férteis para o meu desenvolvimento artístico. As ruas foram um super laboratório. Vivi momentos de intenso contato humano, estava sempre cercada de gente, e elas viraram parte do meu estudo cênico. Essa experiência também me ensinou muito sobre a necessidade de se acreditar no trabalho que se faz. Eu sempre amei escrever e rabiscava versos há um tempo, mas levar às ruas o meu livro, escrito a próprio punho, me fez mais corajosa com relação a minha arte e mais inspirada a produzir.

 

Andréia Horta como Lara, ao lado da atriz Marieta Severo - Foto Fábio Rocha | Globo

Andréia Horta como Lara, ao lado da atriz Marieta Severo – Foto Fábio Rocha | Globo

 

Você chegou a declarar em entrevistas que a Lara é um desafio diferente, em comparação às personagens que estava acostumada a viver. O que ela traz de novo?
É uma personagem difícil porque combina potência e ingenuidade de uma forma muito ímpar. Ela é uma mulher firme e com muita consciência do que deseja para si, mas, ao mesmo tempo, está atravessada pelo amor que sente e se deixa levar a conflitos éticos que a afastam de seu senso de justiça e honra, muito fortes. Ela é cheia de saudade e mistério, mas muito límpida e simples. É um equilíbrio delicado. Entender essa tônica e construí-la em todas as suas nuances foi desafiador.

 

Seja vivendo Lara, Joaquina ou Elis, sua carreira é marcada por personagens mulheres, fortes, potentes e (por que não?) empoderadas. Qual é o papel da arte na construção e desconstrução do feminino?
Bertold Brecht disse uma vez que “a arte serve para denunciar o velho e anunciar o novo”. Quando estamos em um set ou em um palco, diante de um personagem, assumindo seu lugar, estamos também assinando aquela mensagem, nos posicionando perante o mundo. E é crucial nos posicionarmos avessos a qualquer possibilidade de seguir perpetuando a narrativa da mulher insegura, histérica e submissa. Esse tipo de representação, mais que ultrapassada, é irreal e nos limita. A arte, com todo o seu alcance, pode apontar novos caminhos, em direção a um mundo mais justo e, enquanto artista, fico muito feliz de estar nessa posição e poder dar vida a mulheres de todas as faces e interiores.

 

FOTO GLOBO | SERGIO ZALIS

FOTO GLOBO | SERGIO ZALIS

 

 

Você também está acostumada a encarnar papéis com altíssimo teor dramático, a exemplo da prostituta Valeska, que é internada no Manicômio de Barbacena, na série “Colônia”. Como manter o equilíbrio emocional em trabalhos deste teor, sobretudo em um momento difícil como o que estamos passando desde 2020?
Meu exercício de vida é entender, todos os dias, que esse é o meu ofício, e parte dele consiste em fluir por energias distintas da minha e carregar pesos que, na maioria das vezes, nunca foram meus. Eu busco sempre situar e delimitar muito bem a vivência da personagem e dissociá-la da minha. Assim, quando é necessário me retirar dela, faço isso com a clara consciência de que aquela dor não segue comigo.

 

Aliás, o que fez durante esses dois anos de pandemia para se manter centrada e em sintonia consigo mesma?
Eu estudei muito, principalmente literatura. Li Machado de Assis, Clarice Lispector, Hannah Arendt, Dostoiévski. Foi visceral. Também fiz a energia criativa circular em novos projetos. Um deles, de que me orgulho muito, é o “Cara Palavra”, uma peça desenvolvida 100% à distância, no formato de um “diário de quarentena”, que ficou em cartaz em transmissões virtuais no final de 2020. Éramos eu na minha casa no Rio de Janeiro, Débora Falabella em um palco de teatro, Bianca Comparato em Los Angeles e Mariana Ximenes em São Paulo dividindo com a plateia nossas angústias e descobertas no isolamento. Transformar essas incertezas em arte nos ajudou a ficar de pé.

 

Em 2022, o Brasil completa 40 anos sem Elis, personalidade que você já viveu duas vezes, no cinema e no streaming. O que Elis representa hoje para você? Como você situa essa mulher na sua e na história do nssso país?
Elis ecoa em mim desde muito antes de eu ser convidada a vivê-la no cinema. Eu a escuto desde muito nova e mergulho nela desde então, imergindo em entrevistas, artigos, vídeos, documentos pessoais. Ela foi uma mestra na minha vida e me fascina com a sua coragem de ser o que era. Elis deixa para o Brasil uma obra colossal, um legado de perfeição técnica e uma habilidade própria de ser clara e incisiva nas mensagens que cantava. Eu bebi muito dessa fonte, e o país também. Ela é uma de nossas maiores vozes, que se elevou por nós em um momento tão agudo da nossa história, durante o qual se posicionou e se manteve indignada até o fim.

 

Andréia no papel de Elis Regina - Foto André e Carioba

Andréia no papel de Elis Regina – Foto André e Carioba

 

O que, durante o processo de imersão e estudo de Elis, mais te marcou?
A relação dela com o canto. Elis dizia que cantar é um ato que se comete absolutamente sozinho, e ela adorava isso. Naquele momento em que estava dentro de uma canção, ela estava também viajando por dentro de si, e toda essa verdade visceral nos atingia como público. Também me fascinou a maneira como ela sabia escrever cartas de amor para as pessoas que amava. Ela tinha um lirismo tão potente, que emociona tanto quanto sua música. No fundo, acho que tudo nela me marcou.

 

Este ano você se prepara para viver outra biografia, agora na pele de dona Araci, mãe da dupla Chitãozinho e Xororó. É mais difícil encarar um personagem real?
Não sei se é mais difícil, mas é diferente. Para dar vida a alguém que já existiu, temos acesso a registros e relatos que nos oferecem todas as nuances que uma existência pode ter. Mas isso não impede nosso exercício de criação. Aliás, nessa série, eu não me ocupei em perseguir e reproduzir à risca o modo como a Dona Araci falava ou se movimentava. Recorri à imaginação. Imaginei o que uma figura materna representaria naquela história e construí essa persona a partir desse estalo.

 

E o que ela representa?
Força. Dona Araci teve oito filhos, driblou a fome e a falta de amparo com amor e delicadeza. Ela representa a maternidade em sua mais pura essência.

 

Andréia Horta no cenário do programa "O País do Cinema", do Canal Brasil - foto Ana Paula Amorim | Canal Brasil | divulgação

Andréia Horta no cenário do programa “O País do Cinema”, do Canal Brasil – foto Ana Paula Amorim | Canal Brasil | divulgação

 

Você também é a apresentadora do programa “O País do Cinema”, no Canal Brasil. Hoje esse título chega a ser quase irônico… Como você avalia o atual momento do cinema brasileiro?
Mais do que irônico, é trágico. Presenciamos um desmonte brutal da nossa Cultura que, apesar de não receber incentivos, é o que nós temos de mais rico. Antes de ser atacado, o cinema nacional vivia um período de efervescência, em todos os gêneros, da comédia ao terror. Com esses cortes, fica claro o esforço que o governo faz para atrapalhar os artistas e impedir que eles coloquem seus depoimentos e denúncias no mundo.

 

Há saída?
Com certeza, e ela depende de nós e da nossa luta. Toda sociedade precisa de seus artistas, pensando o mundo à frente e mostrando ao ser humano o próprio ser humano. Nosso trabalho é muito importante e esses caras sabem disso, é por isso que tentam destruí-lo. Mas não vão conseguir. Somos muito mais numerosos, temos coração e estamos vivos. Um dia, até essa treva em que nos encontramos, nas nossas mãos, há de virar arte.

 

Para além da comédia, Monica Iozzi fala sobre militância, política e assédio

Para além da comédia, Monica Iozzi fala sobre militância, política e assédio

Dona de um humor mordaz, Monica Iozzi tem opinião formada sobre quase tudo. E sempre foi assim. Nascida em Ribeirão Preto, tinha apenas oito anos quando liderou sua primeira “revolução feminista”. “Fui a primeira coroinha menina da igreja que a minha família frequentava. Nunca fui religiosa, mas queria me exibir no altar, e só via meninos ali. Então eu chamei o padre em um cantinho, argumentei indignada e ele cedeu”, lembra. Foi essa personalidade embativa que, anos depois, usou para enquadrar políticos no Congresso, na época em que foi a única repórter mulher do “CQC” – programa da Rede Bandeirantes que trazia luz à tragicomédia da política nacional.

Sempre envolvida em assuntos que, para muitos, podem parecer espinhosos, Monica Iozzi sabe muito bem aliar delicadeza e intensidade – e faz questão de mostrar isso em seus muitos e diversos projetos. Fez o Brasil rir como apresentadora do “Vídeo Show”, tornou-se ícone de empoderamento em “Dona do Pedaço” (2019), na pele da blogueira Kim Ventura, e, em dezembro, invade as telonas como Dona Luísa, mãe da dona do Limoeiro, bairro de “Turma da Mônica – Lições”.

 

Foto Carlos Sales | Styling Bruno Uchôa | Make Edu Hyde

Foto Carlos Sales | Styling Bruno Uchôa | Make Edu Hyde

 

Para 2022, ela prepara sua estreia no streaming em “Novela”, série de humor da Amazon Prime Video com produção do Porta dos Fundos, na qual interpreta uma roteirista que sonha emplacar um folhetim no horário nobre. Em seguida, chega aos cinemas como uma workaholic que tem que lidar com as delícias e as dores da maternidade, no filme de Dainara Toffoli, “Mar de Dentro”. Para completar, em janeiro do próximo ano estreia “Fala Mais Sobre Isso, Iozzi”, programa do Canal Brasil idealizado e apresentado por ela, que promete combinar política e descontração em episódios semanais com convidados ilustres. Em entrevista à 29HORAS, Monica Iozzi falou sobre militância, posicionamento político, assédio, e refletiu sobre sua carreira e os rumos do país – sem renunciar ao bom-humor de sempre.

 

Foto Globo | divulgação | Victor Pollak Kim (Monica Iozzi)

 

É impossível desvincular sua carreira do universo político. Quando criança, você já se interessava pelo tema? Na sua casa, a política era muito presente?
Minha família tem origem simples, meu pai era eletricista e minha mãe, dona de casa, então eles não se envolviam tanto nessas questões. Mas me lembro de, ainda muito pequena, começar a gostar de política por conta própria. Aos oito anos de idade, eu era meio obcecada pelo horário eleitoral. Achava aquilo tudo muito esquisito. Eu via todas aquelas figuras histriônicas e quase teatrais – se lembra do Dr. Enéas nos anos 1990? – e sentia como se estivesse acompanhando um roteiro de novela. Mas nunca foi apenas um entretenimento, algo ali já me instigava.

Um de seus trabalhos mais marcantes foi justamente nessa área, como repórter do ‘CQC’. Hoje, o programa não está mais no ar, mas os eventos tragicômicos da política continuam. Conte algum acontecimento recente que você adoraria ter tido a oportunidade de cobrir.
Sinceramente, nós estamos vivendo um momento tão assustador e distópico que todo dia surge alguma pauta absurda. É só fazer plantão no cercadinho do presidente para ter acesso a um estoque interminável de escândalos. Mas, falando de momentos específicos, acho que teria sido muito interessante cobrir os bastidores da CPI da Covid. No “CQC”, a gente adorava colocar contra a parede pessoas que davam declarações divergentes, e nessa comissão isso aconteceu aos montes. Também queria ter tido a oportunidade de acompanhar a onda de manifestações pró-regime militar que tomou o país nas últimas semanas. Essa verve enlouquecida e inacreditável de retrocesso daria um quadro, no mínimo, bizarro.

Neste momento de polarização e extremismos que estamos vivendo no Brasil, ainda é possível extrair humor da política?
Com certeza. O humor é um instrumento político poderosíssimo. Há uma capacidade transformadora e instigante no “rir do absurdo”. O que o Marcelo Adnet faz, por exemplo, com as sátiras, imitações e toda aquela ironia crítica é genial. E eu acredito muito que esse tipo de humor, consciente e ácido, tem o poder de fazer com que as pessoas comecem a prestar mais atenção nas atrocidades que estão acontecendo.

Você já chegou a comentar que se arrepende de ter aberto tanto espaço, no ‘CQC’, para as falas de Jair Bolsonaro. Se pudesse retornar ao ar, sua abordagem seria diferente? Para você, qual é o limite da liberdade de expressão?
Eu sempre me pergunto isso. Naquele momento, as matérias que eu fazia eram muito no intuito de denunciar o visível despreparo daquele, na época, deputado federal. O que não imaginava era que, ao invés disso, eu pudesse estar entregando um megafone na mão dele e dos seus discursos de ódio. Pode parecer uma comparação meio forçada, mas na Alemanha a população é proibida de fazer qualquer apologia ao nazismo. Aqui, talvez tenha chegado a hora de agirmos assim também. Não há mais escolha além de ser intolerante com pessoas intolerantes. Hoje, eu provavelmente teria preferido abafar muitos absurdos que ele disse contra a população LGBTQIA+, as mulheres, e as falas a favor da ditadura…

Na equipe do ‘CQC’, você passou três anos e meio como repórter em Brasília. Como foi a experiência de ser uma das poucas mulheres no ambiente majoritariamente masculino do Congresso?
Foram anos de muito aprendizado pessoal. Até aquele momento, eu nunca tinha trabalhado em um lugar onde o sexismo era tão claro e a misoginia, tão gritante. Para você ter uma noção, na época em que estive em Brasília, não existia nem banheiro feminino no Senado. Toda a estrutura do ambiente político foi construída de maneira a manter as mulheres, e todas as minorias, longe dali. Isso sem contar todos os galanteios desagradáveis, os “presentinhos” e os vários momentos em que me chamaram de “minha filha” e “menina” ao invés de Monica Iozzi. Por tudo isso, eu posso dizer que foi no Congresso que tomei consciência de que o feminismo seria a minha luta para a vida toda.

 

Foto Globo | Divulgação | Tata barret Os novos integrantes do Vídeo Show, Giovanna Ewbank e Joaquim Lopes, com os apresentadores Monica Iozzi e Otaviano Costa

 

Antes da pandemia, você participou da série “Assédio”, com direção de Amora Mautner. Qual é a importância de se falar sobre assédio e abuso?
Eu não conheço nenhuma mulher que nunca foi assediada. Até minha sobrinha de 13 anos já tem algumas histórias assim para contar. É preciso expor essa realidade, e a série faz isso com maestria. Também me deixa grata a forma como a produção conseguiu trazer uma mensagem de força feminina. Apesar de todas as personagens terem sofrido violência, elas estão longe de serem representadas com fragilidade. A série traz essa mensagem de que não podemos nos calar e que, unidas, conseguimos fazer com que as engrenagens comecem a mudar. Acho que muito disso vem da direção feminina, a Amora trouxe esse olhar de dentro para o tema.

Se posicionar e falar sobre política pode parecer espinhoso para muitos, mas você consegue equilibrar leveza e profundidade. Na sua rotina, o que você faz para se desligar um pouco das notícias e do que acontece no país?
É difícil me desconectar de tudo, mas toda noite eu me sento no sofá e devoro as plataformas de streaming. Tenho mergulhado fundo no cinema brasileiro, que é a área em que mais quero trabalhar na vida. Estou assistindo desde Mazzaroppi até Anna Muylaert, Renata Pinheiro e Felipe Bragança, revendo tudo, estudando e me apaixonando de novo pela nossa arte. E eu também jogo muito video-game! Tenho um aparelho que reproduz os jogos dos anos 1980 e 1990, e sou fissurada.

Essa sua dualidade também aparece nas telas. Seus próximos projetos no cinema são muito diferentes entre si. Em qual gênero você se sente mais confortável atuando?
Eu amo a magia da comédia, mas sou grata por, agora, poder explorar outros caminhos. Em “Novela”, minha personagem é leve e engraçada; em “Mar de Dentro”, vivo um drama absoluto; e em “Lições”, me delicio com a doçura maternal da Dona Luísa. Todas elas mostram lados meus que vão além do humor escrachado, que fez muitas pessoas me conhecerem. Antes de comediante, eu sou atriz, e quero experimentar de tudo.

Além da sua estreia nos streamings, um de seus próximos projetos é o “Fala Mais Sobre Isso, Iozzi”, programa sobre política que marca sua volta à TV como apresentadora. Por que esse retorno à política, por que agora e por que em um programa com esse formato?
Eu sinto que, no Brasil, ainda há muita gente que não se interessa por política, seja porque já está completamente descrente dos rumos do governo, ou porque realmente não entende como o mecanismo funciona. Meu desejo é, justamente, trazer a discussão política para mais perto do público, de uma forma didática, simplificada e que faça com que todos se sintam pertencentes a esse espaço, porque todos somos. Quero que o público se sinta em uma mesa de bar discutindo com os amigos. Juntamos uma galera incrível, de Pedro Bial a Djamila Ribeiro, Majur e Jubi do Bairro, para debater temas muito diversos e que dialogam diretamente com o nosso dia a dia, como “qual é a relação entre política e religião?” ou “o que podemos esperar da política no futuro?”.

E, para você, o que podemos esperar da política no futuro?
É difícil demais fazer qualquer tipo de previsão, mas o que eu espero é que as instituições voltem a se fortalecer no Brasil. Sem isso, é impossível começar a cavar uma saída desse buraco. E o primeiro passo para tudo voltar aos eixos é ter a nossa democracia de volta.

 

Atriz consagrada, Ilana Kaplan conquista a internet com vídeos de humor crítico

Atriz consagrada, Ilana Kaplan conquista a internet com vídeos de humor crítico

Engana-se quem pensa que Ilana Kaplan é rosto novo no humor. Já são 36 anos de trajetória e um extenso currículo artístico. A repercussão virtual estrondosa, essa sim, é recente. Em quatro meses, a gaúcha viu sua conta no Instagram saltar de seis para 230 mil seguidores, quando Keila Mellman, uma de suas personagens criada exclusivamente para a internet, viralizou. Nos vídeos que ganharam as redes, a atriz combina ironia e acidez para cutucar feridas sociais.

 

Foto - Iara Morselli

Ilana Kaplan – Foto Iara Morselli

 

“Keila é retrato da minha indignação com o comportamento de algumas pessoas online. Em meio à catástrofe que estamos vivendo, ver tanta gente se vangloriando nas redes era algo que me consumia”, conta a atriz, que decidiu transformar o incômodo em arte. Com a ajuda da irmã, Ana Kaplan, delineou a personagem que se tornou porta-voz de uma catarse coletiva. Socialite especialista em etiqueta das redes, Keila dita o que é ou não de bom tom no universo virtual. “Ela expõe a cafonice da ostentação em tempos de miséria.”

Antes de se jogar no mundo digital, Ilana fez história nos palcos e nas telas. Estrelou novelas em emissoras de peso, como “Carrossel” (SBT) e “I Love Paraisópolis” (Globo); acompanhou, por dois anos, a trupe humorística “Terça Insana” em stand-ups semanais na capital paulista; e, em 2018, chegou a ser agraciada por um Prêmio Shell de Melhor Atriz, pela atuação na renomada comédia “Baixa Terapia”. “É muito raro um comediante receber uma honraria desse porte, então foi uma surpresa muito grata.”

 

Foto - Matheus José Maria

Ilana Kaplan – Foto Matheus José Maria

 

Apaixonada pelos palcos, é para eles que deseja correr assim que todo mundo estiver devidamente vacinado. “Quero conseguir trazer esse público que me conheceu na internet para trocar comigo nas plateias. Teatro é olhar, e isso o online não consegue suprir”. Enquanto espera pelo progresso da imunização, “super-quarentenada”, Ilana pretende continuar brincando de Keila, mas sem compromissos. “Não sou influencer, nem tenho cronogramas ou coisas do tipo. Quero deixar a Mellman falar livremente e agir como uma prova viva de que comédia, responsabilidade social e política podem e devem andar juntas.”

 

Letícia Colin encara personagens mais sensíveis no streaming e no cinema

Letícia Colin encara personagens mais sensíveis no streaming e no cinema

Vivenciando um momento de criação intensa em sua carreira, a atriz Letícia Colin mergulha sem medo nas próprias vulnerabilidades e encara personagens sensíveis no streaming e no cinema.

Letícia fica à vontade para falar sobre tudo. A respeito de assuntos ainda tabus ou sobre o que precisa ser gritado e escancarado. E também para dar voz a uma personagem nova, com questões que não são só dela. Mas engana-se quem pensa que a fala é o único ou mais importante recurso de uma atriz e de um ator. A escuta é essencial, por meio dela a sensibilidade entra, chega às extremidades do corpo, à mente e ao coração. Um trabalho que se assemelha ao de um terapeuta ou cientista, de verdadeira pesquisa humana com afeto. “É revolucionário enxergar um personagem assim, como olhar para um paciente”, diz.
A saúde mental é tema, inclusive, das mais recentes produções que a atriz protagoniza. No papel da estilista Manu, em “Sessão de Terapia”, no GloboPlay, Letícia interpreta uma mulher que está se tornando mãe, com as dores e delícias desse caminho. Na mesma plataforma de streaming, em “Onde Está Meu Coração”, a atriz, nascida em Santo André, vive Amanda, médica e dependente química, personagem que é a grande heroína da carreira de Letícia.

 

Foto Letícia Colin – Foto Sherolin Santos

 

Com 20 anos de carreira, a atriz também encarnou outros personagens marcantes na TV, como a princesa Leopoldina na novela “Novo Mundo”, a baiana Rosa de “Segundo Sol” e a Marylin, de “Cine Holliúdy”, todos na Globo. Também cantora, brilhou em musicais como “O Grande Circo Místico” e “Hair”. A seguir, os principais trechos da conversa com a reportagem da 29HORAS.

Suas mais recentes personagens, a Amanda de “Onde Está Meu Coração” e a Manuela de “Sessão de Terapia”, são atravessadas pela depressão e pela dependência química, que as paralisam e as desconectam das relações. Como a saúde mental se relaciona com o seu trabalho?
O sofrimento psíquico é um sofrimento na carne. Tendemos a separar a mente do corpo, mas na verdade somos um só ser. Se acolhemos as nossas dores emocionais, que são comuns, democraticamente de todos nós, isso nos convoca para outro nível de diálogo. Quando olhamos para essas personagens com respeito e amor, alteramos nosso ambiente. É como diria Nise da Silveira (psiquiatra e pioneira na terapia ocupacional) – que é uma das minhas mentoras artísticas, não separo arte da vida – somos seres criativos e políticos. Falando sobre saúde mental, ela valorizou a singularidade do outro. Com seu sofrimento, teve um olhar de dedicação e muita escuta. É revolucionário olhar para um personagem assim, como olhar um paciente. Artistas e cientistas têm muito em comum, é sobre praticar a pesquisa humana com afeto. A doença expressa algo, a dor tem um imenso aprendizado e é uma manifestação da alma. Acho que as pessoas gostam dessas duas séries por isso se interessam e acompanham. Eu sempre me investiguei desde pequena e sou atriz desde muito nova. Ter o teatro e a poesia na minha vida são possibilidades de dar conta do que sinto, é abraçar o desamparo, que também é meu lugar de criação.

 

Foto TV Globo – Foto João Miguel Jr.

 

Como o público recebe essas temáticas hoje, em meio à pandemia?
Vivemos um abismo como nação, enfrentamos um vírus mortal, é muito violento para nossos corpos e nossa alma. Somos verdadeiramente torturados pelo governo federal. Precisaríamos ter uma sensação de segurança e não temos. É um momento coletivo de muita dor. “Sessão de Terapia” traz uma diversidade incrível de sofrimento, são diferentes personagens que representam camadas da população brasileira, e mostra histórias de superação dessas dores. Quando vemos esses arquétipos no divã do analista Caio (personagem de Selton Mello), nos emocionamos e nos curamos também. É um estímulo para cada um buscar ajuda, nunca se procurou tanto por terapia. O audiovisual encoraja as pessoas a falarem sobre si. O trabalho do ator é pela palavra e eu acredito muito na cura pela linguagem. Na pandemia, o brilho desses dois trabalhos é mostrar o sofrimento de forma muito humana, mostrando exemplos sem moralismos, com profundidade e cheios de facetas.

 

Foto TV Globo Divulgação

 

A Manuela é uma estilista, que acaba de se tornar mãe, e você também é mãe. Como foi o processo de imersão para viver essa personagem? Em que ela mais te tocou?
“Sessão de Terapia” é uma série feita por muitas mulheres, a roteirista Jaqueline Vargas, a autora Ana Reber, a assistente de direção Vera Haddad, a figurinista Tica Bertani, então todas nós colocamos um pouco de nossas histórias na produção. Todas tínhamos um carinho especial pela Manu. Há um aspecto muito dolorido em tornar-se mãe, e é importante falar. Existem muitas mentiras sobre a maternidade. Nós nos questionamos sim, temos medo dessa tarefa de ser mãe. E parte importante também dessa personagem foi o figurino, que sempre conta uma história. A Manu é uma estilista que faz roupas para durarem mais tempo, que pensa sobre peças e suas texturas e cores, um jeito próprio de olhar o mundo. E agora ela tenta vestir essa roupa de ser mãe, acho que costuramos muito bem tudo isso.

A depressão pós-parto, apesar de afetar muitas mulheres, não costumava ser tema de discussões até pouco tempo. O que mudou?
Nós começamos a falar e percebemos que não estamos sozinhas. Sem medo de nos mostrar vulneráveis e mergulhar nisso. É a partir do momento que sentimos a vulnerabilidade que criamos e encontramos soluções. A internet ajudou muito na união e no compartilhamento de relatos de diferentes mulheres. Antes, o audiovisual se restringia às narrativas de quem estava sob os holofotes, mas nos últimos tempos houve uma democratização do palco. Todos nós colocamos nossas questões para o mundo e para fora. Quando só os homens estavam no protagonismo, o tema não aparecia. As mulheres começaram a falar mais, isso é o feminismo, que avança.

Não sei se é porque sou paulistana, mas gostei muito de “Onde Está Meu Coração” também pela ambientação. O que você mais gosta em São Paulo? A nossa revista está na ponte-Aérea, qual é a sua relação com o Rio de Janeiro?
Gosto muito de São Paulo e tenho muita saudade. A vida faz com que a gente se desloque, e é bom isso, poder ir e vir. Essa, inclusive, é uma das maiores dores da pandemia. Tenho vontade de voltar a morar na cidade. Na série, São Paulo é uma verdadeira personagem, onde tudo é possível, mas também o lugar que te engole, de frustrações. A cidade mimetiza a Amanda, ela se perde, quase se torna invisível na imensidão urbana. Onde estão as pessoas que sofrem? Nasci em Santo André, e vivi por lá até meus 8 anos, torço para que a região tenha mais projetos de arte e fomento à cultura, tenho orgulho da cidade, ela me constitui. Hoje vivo no Rio de Janeiro, uma cidade bonita, mas que vive um momento difícil com a contaminação das milícias na política.

Ainda sobre a série, surpreende que Amanda é uma médica que acaba se viciando em crack. A dependência química atravessa todas as classes sociais, mas por que falamos pouco sobre isso?
Esse estigma é real. Quando a série coloca em primeiro plano uma protagonista que é médica, branca, rica, mas está no fundo do poço, isso causa uma inversão na cabeça das pessoas. Como essa menina chegou até ali? A resposta é simples: as drogas e a dependência química são questões de saúde, de médico, terapeutas, e não de polícia. Acontece em qualquer lugar e o tempo todo. Tem a ver com o ser humano. Temos que tratar com respeito e paciência todos de maneira igual. É sobre isso que o Estado deveria se interessar.

Como foi interpretar Amanda? Em que a personagem te mudou?
A Amanda é alguém muito próximo de cada um de nós. Cada um tem um amor, um amigo, que está em alguma fase do tratamento de uma dependência química. É muito lindo ver como as rodas de partilha, os acompanhamentos terapêuticos, funcionam e são curativos. É o poder de ouvir cada experiência humana. A Amanda é uma personagem que tem muita coragem, que recomeça muitas vezes. Ela consegue se tratar e lidar com a sua vulnerabilidade. Diante de tudo isso, insiste na vida, no seu trabalho. Para mim, ela é a grande heroína da minha carreira, os personagens ficam como amigos e conhecidos, sou muito fã da Amanda.

Voltando um pouquinho no tempo, me fale de um papel seu bastante marcante na TV, que foi a princesa Leopoldina da novela “Novo Mundo”. É diferente encarnar um personagem histórico?
Se o ponto de partida é o texto, a construção do passado, presente e futuro de um personagem acaba sempre sendo histórico, por mais que ficcional. No caso da Leopoldina, há muito material sobre ela, muitas cartas, pinturas e muitos livros. É incrível, porque foi uma mulher muito importante, mas que eu conhecia pouco. Foi muito interessante, para mim, ler as cartas que ela escrevia para a irmã, ler sobre a saudade que ela sentia da Áustria, essa distância toda que ela viveu. Passei a ter muita admiração pela figura dela, era uma amante das Artes e da Ciência, Leopoldina patrocinou a vinda de cientistas para o Brasil, foi uma das primeiras vezes que isso aconteceu na história do país. Apesar de ser uma princesa, ela tinha um coração feminista, e isso me encanta. Leopoldina deixou um legado de protagonismo. Foi bonito contar essa história.

Você terminou recentemente as gravações do longa “A Porta ao Lado”, da diretora Julia Rezende. O filme aborda diferentes acordos nas relações românticas, os conflitos desses modelos…Estamos em um momento de ruptura das relações como conhecemos?
Trabalhei com a Julia no filme “Ponte Aérea”, e é bacana falar disso justamente numa entrevista para a revista que é distribuída nesses aeroportos. Foi mais uma vez uma experiência linda, um set de muita amizade. É bom trabalhar em um espaço assim, me sinto acolhida. A Júlia é essa diretora! É muito belo sentir segurança para entrar em um personagem, é sempre um processo desafiador e até incômodo para nosso corpo. Também foi muito bom levantar um filme em plena pandemia, colocar o barco para navegar nessa travessia, com todos os cuidados e assistências. O filme é um pensamento sobre as tentativas de se relacionar no mundo contemporâneo. Como desenvolver uma relação duradoura e ter uma família? Os desejos são muitos diversos e o momento é de liberdade. Tudo é dinâmico e fluído, mas ao mesmo tempo precisamos de raiz e apego. São dois polos opostos, e o longa mergulha na tentativa desse equilíbrio.

Você teve covid-19. Como enfrentou a doença? Na sua opinião, como o Brasil está enfrentando o vírus? E como a arte está nessa trincheira?
Até hoje lido com a covid, tive sequelas e o que se chama “covid longa”. Ainda estou em tratamento e investigando as consequências em meu corpo. É um desafio para mim, mas estou me recuperando. O Estado brasileiro matou muita gente, pela insistência em medicamentos sem eficácia e por não ter acolhido as medidas corretas, então o governo federal carrega a responsabilidade dessas mortes todas. Perdemos muito! Vidas, histórias, almas, o Brasil perdeu um pouco a graça com esse descaso todo. Em alguns estados, os governadores conseguiram atuar, legislar sobre máscaras, mas poderíamos estar mais vacinados, tudo isso é uma grande ferida na nossa alma. A arte está resistindo, sobrevivendo. Temos a necessidade de nos manter próximos do pensamento crítico.