Canções que dialogam sobre a maternidade e exaltam figuras complexas, imensas e amadas
Olá, viajante! Nesta coluna sugiro um mergulho nas mães da música brasileira. Mães cantadas, cantoras, compositoras. Começo com “Mamãe, Coragem”. Essa canção de Torquato Neto e Caetano Veloso não é emblemática por acaso. “Mamãe, não chore, a vida é assim mesmo, eu quero mesmo é isso aqui…” Deixar a casa da mãe para cair no mundo. Ritual necessário, mas não raramente doloroso. A música virou um clássico na voz de Gal Costa no disco “Tropicália” e foi gravada no mesmo ano pela incomparável Nara Leão. Quero lembrar aqui deste trecho da letra:
“Pegue uns panos pra lavar, leia um romance
Veja as contas do mercado, pague as prestações
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos
Seja feliz, seja feliz”
Só não é mais dramática do que a letra de “Coração Materno” de Vicente Celestino, que Caetano gravou em 1968 no mesmo “Tropicalia” e, em 1999, no belíssimo “Omaggio a Federico e Giulietta”. Vale lembrar que as duas canções são antigas, do século passado. Anos 1950 e 1660. Vamos falar também da maternidade de hoje, retratada em canções contemporâneas. Em seu primeiro disco, a baiana Josyara gravou “Nanã”, escrita por ela mesma. A cantora conversa com a mãe por meio de conselhos. Uma mãe mais próxima, mais amiga, indicando caminhos. Nada de corações sangrando pela estrada. Nada de tristeza pelo ninho vazio. É musicalmente deliciosa com aquele acento Moacir Santos e João Gilberto ao mesmo tempo:
Josyara – Foto Julia Rodrigues | divulgação
“Persigo meu destino
Ouço a voz, ouço a voz de minha mãe (nanã)
Dizendo: Filha, olha ao seu redor, entenda
Tudo é como deve ser
Tenha coragem, cresça, procure um abrigo
Quando a tristeza canta, desobedeça a dor”
Quando a compositora é mãe, a história também é muito interessante. Vide “Clara e Ana”, de Joyce Moreno, talvez um dos maiores sucessos dessa grande compositora, violinista e cantora. E Anelis Assumpção gravou “Receita Rápida”, que fala da maternidade de uma forma mais fluída, mais cotidiana, ampla:
“Quem é farinha no bolo, não sola
Quem centeio integra o pão
Quem liga os ovos a todos, consola
Quem é o calor do fogão
Quem que dá gosto e recheia, põe fruta
Quem na massa põe a mão
Quem é o forno ou a forma, quenta
Quem dá forma de coração”
Mães e filhas. Maternidade. Tema complexo, imenso e realmente maravilhoso. Vamos ouvir música e pensar sobre isso?
Mais um grande nome da música brasileira completa 80 anos em março: Jards Macalé. Carioca da Tijuca, morador de Ipanema, ele foi copista de partituras para o grande Severino Araujo da Orquestra Tabajara, aprendeu a tocar em um violão de Turíbio Santos – instrumento em que compõe até hoje –, trocou ideias sobre samba e bossa nova com João Gilberto, foi fundamental na obra pós tropicalista de Gal Costa – dirigiu o histórico show “Fatal” com Waly Salomão –, é compositor de clássicos como “Movimento dos Barcos” (com o poeta Capinam) e “Vapor Barato” (com Waly). Isso só para começar!
Macalé é um imenso compositor. Em agosto de 2013, estivemos juntos no Jardim Botânico para uma longa entrevista para o livro “Vozes do Brasil” (edições Sesc). Ele me contou do “tempo do desbunde”, o final dos anos 1960 quando se reuniam nas areias do Posto 9, nas dunas da Gal, a turma da música, do cinema novo, de tudo que era novo naquela época. O músico me falou também dos anos 1980 quando parou de ouvir rádio porque “o jabá encaretou a programação” e ele se voltou para os sambas dos anos 1940, para as canções dos anos 1950. Macalé sempre misturou o jazz, o blues, o pop e o rock com a música feita no Brasil. Debussy, Ciro Monteiro, Clementina e Nora Ney são todos parte de uma mesma história.
Jards Macalé – Foto Felipe Giubilei | divulgação
Minha proposta é um mergulho na obra deste artista. Vamos começar com o disco de 1972, que Macalé gravou com Lanny Gordin (guitarra, violão e baixo) e Tutty Moreno (bateria). Produzido por Guilherme Araujo, o álbum tem um repertório maravilhoso: “Mal Secreto”, “Movimento dos Barcos”, “Hotel das Estrelas”, “Farrapo Humano” (de Luiz Melodia) e “Let’s Play That” – parceria de Macalé com Torquato Neto. Aliás, ler o poeta é um ótimo caminho para entender essa obra. Recomendo o livro “Torquatália”, que reúne as colunas escritas por ele e que falam muito da música feita nesse tempo.
Seguindo nos discos, vamos para 1987: “Quatro Batutas e Um Coringa”. Macalé gravou composições de Paulinho da Viola, Geraldo Pereira, Lupicínio Rodrigues e Nelson Cavaquinho. Um luxo. Anos depois, em 2011, pela Biscoito Fino , saiu o disco “Jards” – uma belíssima compilação de composições de Macalé e seus parceiros, com participações maravilhosas de Elza Soares, Elton Medeiros, Luiz Melodia, Ava Rocha, Cristovão Bastos, Jorge Helder – um timaço!
Em 2019, o professor Macalé se encontrou com os paulistas Rômulo Fróes, Kiko Dinucci, Thiago França, Tim Bernardes, Rodrigo Campos e mais uma turma de talentos dessa geração para compor, arranjar e tocar em “Besta Fera” – disco que concorreu ao Grammy Latino. Em 2021, ele se juntou ao também fundamental João Donato, e os dois mestres lançaram “Síntese do Lance”.
Todas as loas para o mais novo oitentão da música pop do Brasil. Salve Macalé! Ouça e caia no feitiço. Perceba a sofisticação das melodias, do ritmo, da intenção em cada parceiro, em cada verso. A história do Brasil passa por ali!
Que a Bahia tem um jeito, a gente sabe faz tempo. Mas neste verão o destino mais cobiçado de todo o Brasil ganha ainda mais destaque com a nomeação de Margareth Menezes como Ministra da Cultura do novo governo que se inicia. Uma mulher preta, baiana, pioneira na mistura e no lançamento do que se chama pelo mundo de “afro pop brasileiro”. No começo dos anos 1990, Margareth abriu shows de David Byrne com seu samba reggae e incluiu o Brasil no “african pop” de Salif Keita e Angelique Kidjio.
Em uma entrevista que fiz com ela, em 2019, falamos sobre isso. Margareth perguntava “se tem pop rock, por que não tem afro pop?” E contou do encontro das claves afrobrasileiras com a sonoridade da música pop e da canção no país. Estética que encontramos em todos os seus discos, e nos trabalhos de Carlinhos Brown, na proposta de Letieres Leite e sua Rumpilezz, em Bayana System, em Josyara e em Rachel Reis. Cada um com sua personalidade, mas com essa base do ritmo, da malemolência das ladeiras de Salvador, da aridez poética do sertão, do calor da beira mar.
Margareth Menezes | Foto Divulgação
Por falar nisso, Josyara é baiana de Juazeiro e lançou agora seu segundo disco solo chamado “ÀdeusdarÁ”. A faixa que abre é “ladoAlado” e tem a participação de Margareth Menezes. Josyara conta que ouviu os discos dessa artista referência durante a pandemia, com saudades de casa. O já citado aqui “Afropopbrasileiro”, “Autêntica” e, especialmente, “Kindala”, de 1991. O repertório que encantou o mundo fez a cabeça também dessa jovem compositora baiana. Cantar é político, compor, fazer música, apresentar seus pensamentos num show, num disco, tudo isso muda o mundo. Josyara tem um violão muito forte, comparado ao de Catia de França outra grande referência, mas nesse trabalho, começou a compor a partir de beats eletrônicos, samples, bases rítmicas. Um disco lindo!
Rachel Reis é outro fenômeno desses tempos digitais. Mais jovem ainda que Josyara, essa menina de Feira de Santana estourou com a canção “Maresia”, misturando canção com arrocha e pagodão baiano. Música de festa, boa para dançar. E que traz essa tradição de que fala Margareth, o que ela chama de “protagonismo da mistura”, que vem de Raul Seixas, de Gilberto Gil, de Caetano Veloso. Do rock ao tropicalismo, a presença da Bahia se apresenta nas mais diversas manifestações da música feita no Brasil. Até em Adriana Calcanhotto na eletrônica “Ogunte”, do disco “Maré”. Também em Maria Gadú, cantando “Baianidade Nagô” em ritmo ralentado.
Aproveito para convidar você que me lê para ouvir o “Vozes do Brasil”, na Rádio Cultura de São Paulo. Baixe o app, entre no site, há vários caminhos! No ar às sextas feiras, às 17h, e, aos sábados, às 19h. Fiz um programa especial sobre a Bahia, com toda essa história contada por meio da música. Aproveite a Bahia com trilha sonora. Bom verão para nós!
Acesse todas as músicas no 29HORAS Play. Aproveite!
O disco histórico Elis Regina traz composições que ganham balanço e potência na voz da cantora e anunciam uma estação cheia de vida
Em 1970, Elis Regina tinha 25 anos. Já era uma cantora de sucesso e, apesar da pouca idade, estava meio na contramão da juventude rebelde e do movimento da contracultura do final dos 1960. Ela foi uma das mais aguerridas na Marcha Contra as Guitarras, em 1967, imaginem…, mas, inteligente e talentosa como era, não demorou nada para tomar outro rumo.
Como dizem no mar, vento bom é aquele que a gente sabe aproveitar. Com arranjos do grande Erlon Chaves, maestro, pianista e compositor cheio de suíngue, e com produção genial de Nelson Motta, a cantora lançou um disco histórico: “Em Pleno Verão”. Atualizando seu repertório, entraram músicas de seus contemporâneos Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Benjor, Joyce Moreno, Roberto e Erasmo Carlos esses últimos com a gravação de “As Curvas da Estrada de Santos”, que é um clássico atemporal. Elis se mostra “bluezeira” e muito pop. Na canção de Gil, “Fechada pra Balanço”, os versos filosóficos encontram a bateria de Wilson das Neves e o baixo de Luizão Maia. A cantora dá um show de balanço (com perdão do pleonasmo) na divisão das frases.
Foto Reprodução
Esse disco marca também a estreia de Tim Maia dividindo os vocais com Elis, em “These Are the Songs”, com órgão roqueiríssimo tocado por José Roberto Bertrami na introdução. Aliás, a ex-famigerada guitarra está pelo disco todo tocada por Luiz Cláudio Ramos, inclusive na faixa “Vou Deitar e Rolar”, que abre o LP, sucesso imenso do repertório de Elis composta por Paulo César Pinheiro e Baden Powell. Ela improvisa, faz scat singing, solta a voz lindamente.
Em “Comunicação”, de Edson Alencar e Edson Mateus, o arranjo até lembra os tropicalistas, e a letra é totalmente pop. Elis canta Chacrinha e outros ícones da cultura colorida que invadia o país, e até “Meu Nome é Gal” aparece no improviso final. Há quem diga que a cantora baiana foi grande influência para Elis nesse momento. Faz sentido!
Em “Copacabana Velha de Guerra”, ela canta os versos de Joyce “nós estamos por aí sem medo…”, apontando mesmo uma nova direção com “desfilando com a camisa cor do mar”. O nome do LP é muito feliz, muito inspirador e a foto da capa é maravilhosa. Esse disco contraria aquela máxima de que “amor de verão não sobe a serra”. É um clássico e um grande marco na carreira dessa voz imensa. E já que essa é a estação que se aproxima, deixo aqui essa dica para começar bem chique a sua trilha sonora. Aproveite!
Primavera é sinônimo de renovação. É a época do ano em que “estão voltando as flores”, como diz a famosa marcharancho de Paulo Soledade, cantada por Dalva de Oliveira. É também “quando ninguém mais espera e ressuscita por amor”, como ressoa na canção de Zé Miguel Wisnik, interpretada por Ná Ozzetti. Por isso, preparamos aqui uma linda seleção de músicas para você entrar em setembro no clima de transformação!
Quem já lembrou de Beto Guedes? O compositor mineiro está em fase boa depois da linda gravação de Gabriel Sater de “Amor de Índio”, tema do casal romântico mais bonito e famoso da TV no momento. Essa canção faz parte de um LP de 1978, que também traz “Só Primavera”, de Beto e Marcio Borges com arranjo lindo de Wagner Tiso. Um naipe de cellos, viola caipira, piano de Flavio Venturini… é um luxo!
Beto Guedes – Amor De Índio (1978) | Foto Reprodução
A letra fala do nascer de um novo homem, a primavera como uma promessa. E no disco do ano seguinte, 1979, está a belíssima “Sol de Primavera”, parceria com Ronaldo Bastos: “Já sonhamos juntos/Semeando as canções no vento/Quero ver crescer nossa voz/No que falta sonhar…”
“Primavera nos Dentes” com os Secos e Molhados já é uma outra história, música de João Ricardo e João Apolinário, faixa do disco histórico de 1973. Um teclado incrível, guitarras, baixo e uma força tremenda na letra, que diz: “Quem não vacila mesmo derrotado/Quem já perdido nunca desespera/E envolto em tempestade, decepado/Entre os dentes, segura a primavera”. É um chamado para a luta! Essa música foi regravada na voz de Duda Brack e é o nome de um lindo projeto de Charles Gavin. Ouça as duas versões!
Tom e Vinicius dificilmente faltam em minhas listas. Separei “Derradeira Primavera”, gravada naquele disco de Nana Caymmi, de 1967, pelo selo Elenco de Aloyso de Oliveira. Com arranjo maravilhoso de Oscar Castro Neves, a música é tristíssima em qualquer versão.
E, para terminar, a deliciosa e romântica balada soul “Primavera (Vai Chuva)”, de Cassiano e Rochael, gravada por Tim Maia, em 1970, com Cassiano na guitarra e o próprio Tim tocando violão. Essa nem preciso colocar a letra, todo mundo sabe e quero te deixar com vontade de cantar enquanto termina de ler esta coluna.
Viva a primavera, prenúncio de mudança! Vamos aproveitar!
Ficou com vontade de ouvir as clássicas do artista? Acesse no 29HORAS Play. Aproveite!
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