Documentário “Luiz Melodia – No Coração do Brasil” chega aos cinemas, após prêmios em festivais, amplificando a arte de um compositor e cantor autêntico e versátil
Luiz Carlos dos Santos, conhecido como Luiz Melodia – sobrenome artístico herdado do pai –, nasceu no Rio de Janeiro em janeiro de 1951, no morro do Estácio. Sempre fui admiradora e fã de sua música e obra. Em 2002, publiquei meu primeiro livro de entrevistas e ele está lá, registrado em fotos em um ensaio de Luciana De Francesco e contando sua história como nunca tinha feito antes.
O áudio completo dessa entrevista virou filme! Alessandra Dorgan, cineasta e uma querida amiga, me chamou para fazer cinema e o resultado foi o documentário “Luiz Melodia – No Coração do Brasil”. Alessandra é a diretora, o argumento é nosso, fiz a direção musical e, junto, também o roteiro. Cinema é um trabalho de equipe, são muitos para fazer uma obra acontecer. A montagem de Joaquim Castro é poética como a gente queria e como pedia a história desse artista. Estreamos no festival
É Tudo Verdade, ganhamos prêmio de melhor filme no In-Edit Brasil, prêmio do júri popular no Bonito Sur, e melhor documentário no Festival Internacional de Paraty. Seguimos correndo festivais e, agora, temos distribuição nos cinemas! A história de Luiz Melodia vai entrar em cartaz a partir de janeiro! Essa notícia é maravilhosa por muitos motivos, mas principalmente porque Melodia merece ser visto e ouvido.
foto Daryan Dornelles / Divulgação
Nesse filme, ele conta a própria história. Sua voz é o guia e nos conduz pela trajetória de um menino nascido em um morro carioca, que conviveu com poetas como Waly Salomão e Torquato Neto, foi gravado por Gal Costa e Maria Bethânia, antes mesmo de lançar seu próprio disco, estourou com “Juventude Transviada” e fugiu para a Bahia assustado com o sucesso. Lá conheceu Jane Reis, fez o “Mico de Circo” com festa de lançamento “nos braços do povo”, chegando em uma charrete no mercado das sete portas. Uma sequência linda no filme, que tem uma belíssima pesquisa de imagens de arquivo. Assisti ao documentário em uma sessão no Rio de Janeiro ao lado de Jards Macalé, que emocionado me disse que muita coisa ali ele nunca tinha visto. Temos imagens preciosas de uma fita super 8 desse tempo na Bahia. Um presente de Rica Saito, que sabendo do nosso trabalho, ofereceu esse material incrível para o que era ainda apenas um projeto.
Não deixamos passar a pressão do mercado e da imprensa para que ele gravasse discos de samba. Ficou bem clara a formação plural e diversa que ele teve ouvindo rádio, o gosto pela música negra feita no mundo, pelo jazz e pelo blues, está lá a presença da banda Black Rio e também da poesia – suas “canetadas” coloquiais e maravilhosas. Um artista único!
A música é personagem principal, porque a história também é contada pelas canções. Preste atenção nas letras, sempre digo. E no cinema fique até o fim para ver nos créditos a lista de canções. Como disse, cinema é equipe. Por isso, é fundamental falar dos nossos produtores: Muk (do querido parceiro Daniel Gaggini) e Big Bonsai. E a nossa distribuidora é a Embaúba, nome de árvore da Mata Atlântica, que vai fazer Luiz Melodia correr o Brasil.
Enquanto isso, ouçam seus discos. O primeiro é o “Pérola Negra”, de 1973. O mais recente é o “Zerima”, lançado também na versão ao vivo em 2018. A música é um dos nossos maiores tesouros e Luiz Melodia é uma joia de real grandeza.
A obra de Chico Buarque conta a história deste país. Ele consegue falar de amor nos versos mais doídos e retratar a sociedade brasileira ao mesmo tempo
Chico Buarque completou 80 anos no dia 19 de junho. Participei do lançamento da biografia escrita por André Simões pela editora 34, falei sobre seus olhos azuis para o “Metrópolis” da TV Cultura, fizemos especiais de rádio, shows, tudo que ele merece. E nesta edição da 29HORAS dedico a ele minha coluna.
Tive a sorte de assistir a alguns shows de Chico. Sempre lindos. Uma banda de craques que bate esse bolão com ele há anos e, no mais recente, teve ainda a participação de Mônica Salmaso. É sempre emocionante, mas dessa vez, com a mudança de um governo de extrema direita para o democrático, estávamos especialmente sensíveis e vimos a vida passar na nossa frente com um enredo muito especial.
A obra de Chico Buarque conta a história deste país. Ele consegue falar de amor nos versos mais doídos e retratar a sociedade brasileira ao mesmo tempo. “Que Tal um Samba” foi uma lufada de vento bom na nossa cara: “Que tal um samba? Puxar um samba, que tal? Para espantar o tempo feio, para remediar o estrago, que tal um trago? Um desafogo, um devaneio…” – lançada em junho de 2022, a música trazia a contraposição da beleza ao mal-estar que nos governava.
foto Francisco Proner | divulgação
Tempos brutos pedem poesia e o cantor e compositor tem nos entregado esse alento desde sua estreia. Enfrentou a ditadura como Julinho da Adelaide, pseudônimo para burlar a censura, e com esse nome assinou “Jorge Maravilha”, em 1974, que tem os famosos versos: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. Cantou em italiano no exílio. Gravou um disco lindo com Bethânia, outro mais lindo ainda com Caetano. Cantou travestis, putas, mulheres de Atenas, mulheres em casa. Fez aquela maravilha que é “Futuros Amantes”, fazendo do Rio uma cidade submersa com escafandristas buscando o amor no seu quarto, na sua alma… fez com Tom Jobim a tristíssima e bela “Retrato em Branco e Preto” e mais uma dúzia de maravilhas, entre elas “Eu Te Amo”, o clássico absoluto de uma separação: “Te dei meus olhos pra tomares conta…” E uma das maiores declarações de amor ao Brasil, “Sabiá”, cuja letra me emociona sempre que sinto qualquer saudade.
É parceiro de Francis Hime, de Edu Lobo, de Ruy Guerra, Dori Caymmi, Cristovão Bastos e muitos outros. Para entender a música brasileira, é preciso passar por Chico Buarque. Para entender o Brasil, é preciso ouvir a nossa música. Nem que seja só para sentir saudade.
De Torquato Neto, passando por Luiz Melodia e Alice Ruiz, até o belo timbre de Mãeana, novidades reverenciam os grandes nomes da música brasileira
Começo falando do nosso poeta inspirador. Saiu pelo Círculo de Poemas – clube de assinaturas da editora Fósforo – uma edição da poesia inicial de Torquato Neto. “Canetadas”, como dizia Luiz Melodia (foto), que nasceram antes dos clássicos feitos para a canção brasileira como “Mamãe Coragem” (gravada por Gal Costa e Nara Leão). É um livro interessante para conhecer mais a fundo esse grande autor da canção manifesto “Geléia Geral”, com Gilberto Gil.
Dessa mesma coleção temos o maravilhoso “Cancioneiro Geral” (1962-2023), reunindo pela primeira vez em livro a obra do baiano José Carlos Capinan, também autor de letras absurdamente belas como “Movimento dos Barcos”, com Jards Macalé. Gosto muito desse tema que foi lindamente chamado por Alice Ruiz, poeta parceira de Arnaldo Antunes e Itamar Assumpção, de “poesia pra tocar no rádio”. São de Alice as letras de “Socorro” (gravada por Arnaldo e por Cássia Eller) e “Vou Tirar Você do Dicionário” (gravada por Zélia Duncan).
foto divulgação
Mas, como estamos “torquatando”, pulo para outro assunto. Acabamos de lançar o documentário “Luiz Melodia – No Coração do Brasil”, dirigido por Alessandra Dorgan. Sou a diretora musical do filme e a entrevista que Melodia me deu para o “Vozes do Brasil vol.1” foi o pontapé dessa história. A produção é toda contada por ele mesmo, com sua voz e com imagens de arquivo inacreditáveis, incluindo um super 8 caseiro feito na Bahia, logo depois do sucesso de “Juventude Transviada”.
O lançamento foi no festival “É Tudo Verdade”, em abril, e já é um sucesso. Tem Gal Costa, Wally Salomão, Renato Piau, Macalé, Itamar, Sergio Sampaio, Banda Black Rio e tem ainda Jane Rei, musa de sua vida toda. Um orgulho ter feito esse registro, contar essa história de uma das vozes mais bonitas desse país.
Outra notícia quente, abalando corações, é o encontro de Caetano Veloso e Maria Bethânia para uma série de shows como nunca se viu antes. Estádios!! Filas imensas para a compra de ingressos para o que parece ser o show da década. Dois artistas que são parte do melhor que se faz na música brasileira. Inspirados pelo rádio, por Orlando Silva, por João Gilberto, pelo samba do recôncavo e ainda referências para cantores e compositores de muitas gerações. Sorte a sua se garantiu o seu lugar!
E, por fim, uma notícia que não é tão nova assim, mas que merece a sua escuta: Mãeana cantando JG (João Gilberto e João Gomes). Já ouviu? Uma delícia de repertório com essa voz divina de Ana Claudia Lomelino, um dos timbres atuais mais lindos. Talvez não toque na rádio que você está acostumado a escutar, mas nas plataformas tem! Como dizem, procure saber!
Aproveite para ouvir Capinan, Torquato, Luiz Melodia, Jards Macalé… Até a nossa próxima viagem!
A potência das mulheres brasileiras compositoras que escrevem e cantam e inspiram gerações de músicos
Uma das maiores vantagens em ser uma acumuladora de livros é poder recorrer à biblioteca particular na hora de pensar em um programa de rádio ou em uma coluna para escrever. Este mês falamos sobre compositoras do Brasil – essas artistas incríveis que raramente têm seus nomes citados nas emissoras de rádio, mesmo nas raras frequências que tocam apenas música brasileira.
Elenco neste texto belas edições que contam sobre a vida e a obra de Dolores Duran, Maysa, Dona Ivone Lara, Joyce, Marina Lima, Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, Marisa Monte e um livro especial sobre compositoras da chamada “era do rádio” – essas totalmente invisíveis. Lembrando que a pioneira Chiquinha Gonzaga enfrentou dificuldades para exercer seu ofício e que Dilú Mello, que teve canções gravadas por Inezita Barroso e Nara Leão, é uma ilustre desconhecida até hoje.
Primeiro, recomendo um livro que trata justamente dessas personagens apagadas da história: “A Mulher na Canção – A Composição Feminina na Era do Rádio”, escrito por Denise Mello. Traz Tia Ciata, Maria Firmina dos Reis, Marilia Batista e vai até Maysa e Dolores. Um belo retrato que chega até os anos 1950. Vale a leitura e a busca por essas canções, uma delas é “Fiz a Cama na Varanda”, de Dilú Mello, que também era acordeonista e apresentadora de programas de rádio e TV.
Dolores Duran foi parceira de Tom Jobim na maravilhosa “Estrada do Sol”, foi musa de João Donato e inspiração para muitas compositoras que vieram depois. Marina Lima abriu seu primeiro disco com “Solidão”, clássico de Dolores, em um arranjo todo pop e que serviu como uma declaração: aqui as mulheres compõem e fazem isso muito bem. Maysa foi uma rebelde, cantou a condição feminina em primeira pessoa, largou um casamento (assim como Chiquinha) e seguiu administrando sua carreira e uma multidão de amores.
Dona Ivone Lara, a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma grande escola de samba – foto Acervo Dona Ivone Lara
Joyce Moreno foi apresentada por Vinicius em seu primeiro disco e é respeitada por seu violão no mundo todo. E quando falo em Joyce, peço a você que vá além de “Clareana” e “Feminina”, seus maiores sucessos no rádio. Ouça sua discografia, se aprofunde nessa viagem e morra de vergonha porque a Europa e o Japão compram mais seus discos do que o Brasil. Dona Ivone Lara ganhou reconhecimento no mundo do samba sendo a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma grande escola. Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan e Marisa Monte já fazem parte de uma geração de cantautoras com caminhos abertos a partir dos anos 1980 com Marina. O Brasil é um manancial. Somente precisa saber buscar. Não se limite às plataformas. Uma tarde buscando velhos LPs pode trazer boas e deliciosas surpresas.
E os livros, como disse no começo desta coluna, são aliados importantes para a bela jornada do conhecimento. Rodrigo Faour escreveu sobre Dolores Duran; Lira Neto fez a biografia de Maysa; Lucas Nobile lançou “A Primeira Dama do Samba” sobre Dona Ivone; Marina Lima fez uma autobiografia deliciosa; Zélia Duncan foi indicada ao prêmio Jabuti com seu livro de crônicas. Tem muito assunto, muitas autoras, muitas vozes. E eu nem falei aqui das compositoras do século 21…
Confira sugestões dos sons que brilharam no ano passado e um olhar sobre o que pode se destacar na música brasileira daqui para a frente!
Já viramos o ano e, para essa coluna inaugural de 2024, trago uma retrospectiva nem um pouco ortodoxa sobre a música brasileira. Começo com o projeto “Relicário”, do Selo Sesc, que não é apenas um show transformado em memória, é todo um registro histórico. Cada disco vem acompanhado de um precioso material que contextualiza o evento. No ano de 2023, foram quatro lançamentos, o primeiro foi João Gilberto em uma gravação de 1998 no Sesc Vila Mariana. No repertório de clássicos do samba sempre revisitados por ele, temos uma música inédita do grande Herivelto Martins com Waldemar Ressurreição, “Reo Sem Coroa”. São quase duas horas de música boa, bem gravada, com um dos nossos maiores cantando Dorival Caymmi, Ary Barroso, Pixinguinha, Tom Jobim e outras maravilhas. Se quiser o disco físico, é possível encontrá-lo nas lojas das unidades do Sesc e o libreto vale a pena!
Os outros lançamentos são: Adoniran Barbosa no Sesc Consolação, em 1980 – um show delicioso, cheio de histórias contadas pelo maior cronista musical da paulicéia; João Bosco, em 1978, com o disco “Tiro de Misericórdia”, inteiro com as letras do genial Aldir Blanc e ainda com a ditadura militar sobre nossas cabeças; e Zélia Duncan, em 1997, no Sesc Pompéia, em um registro lindo depois do primeiro grande sucesso cheio de baladas e blues de Renato Russo e Joan Armatrading. Nesse “Relicário” vem de bônus uma entrevista com o jornalista Zuza Homem de Mello, nosso mestre, no projeto “Ouvindo Estrelas”.
Filipe Catto lançou o disco “Belezas São Coisas Acesas por Dentro” com o repertório de Gal Costa – foto divulgação
E entre os discos inéditos, obras frescas e artistas jovens, destaco a cantora e compositora baiana Assucena. Seu primeiro disco solo é o “Lusco Fusco” e saiu em novembro passado. Assucena fez parte do trio“As Baías”, com Rafael Acerbi e Raquel Virgínia e – também no ano passado – fez uma linda homenagem à Gal Costa com o show “Rio e Também Posso Chorar”. É uma cantora romântica e contemporânea, que busca nos anos 1970 uma sonoridade pop e brasileira. Sobre a canção que abre o disco, que tem uma levada samba rock, ela disse: “É um desafio de que gosto, fincar os pés no meu tempo sonoro sem me perder de minhas raízes”. Sua voz é maravilhosa e traz ainda a produção do pernambucano Pupillo e a co-direção artística de Céu.
Assim como Assucena, Filipe Catto é uma cantora do século 21. Gaúcha, compositora e dona de voz poderosa, Catto lançou o disco “Belezas São Coisas Acesas por Dentro” com o repertório de Gal Costa. Começou como um tributo e, hoje, é um dos shows mais incríveis da cena pop. Um repertório muito bem escolhido, romântico e roqueiro, libertário e sexy.
Muita coisa interessante aconteceu em 2023, mas o que cabe nesta coluna são essas sugestões, meus queridos leitores. Gosto sempre de lembrar o mestre Paulinho da Viola: “Quando penso no futuro, não me esqueço do passado”. O tempo é absolutamente relativo, se é que vocês me entendem. Bom ano, bom verão e boa escuta!
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