Grandes instrumentistas inspiram novos nomes da música brasileira

Grandes instrumentistas inspiram novos nomes da música brasileira

Expoentes da música brasileira já apresentam repertórios originais, criativos e diversificados

Quero começar este texto falando de alguns expoentes da nossa música brasileira, alguns ícones e outros jovens que merecem uma escuta atenta. Vou dividir por instrumentos e devo começar pelo gênio Pixinguinha e seu saxofone. Compositor, arranjador e maestro que foi inventor de gêneros e estilos. Ao lado de Benedito Lacerda, ele criou clássicos estudados até hoje. O sax faz a segunda voz mais grave, enquanto a flauta sola na melodia. Busque esses duetos e entenda por que o choro é considerado a música erudita brasileira.

Entre os contemporâneos, encontramos essa genialidade em Nailor Proveta, Teco Cardoso e Léa Freire. Já os mais jovens, destaca-se o clarinetista Alexandre Ribeiro, que talvez seja o mais próximo deles. Não posso esquecer do maravilhoso Paulo Moura e sua gafieira, e de Rafael Rabello e seu violão de sete cordas. Os dois acompanharam Elizeth Cardoso e Ney Matogrosso entre outros grandes da nossa canção, mas quero que você tenha a vontade de ouvi-los em gravações instrumentais em que a originalidade e o virtuosismo criativo aparecem em sua maior expressão.

E nossos pianistas carregam larga história! Temos o grande compositor Cristovão Bastos, parceiro de Chico Buarque em belíssimas e conhecidas canções como “Todo Sentimento”, mas também companheiro de palcos e projetos do saxofonista Mauro Senise com quem divide o lindo álbum “Ouro Negro”. Já o jovem pernambucano Amaro Freitas é um assombro! De seu piano original, saem referências a Moacir Santos e Thelonius Monk na mesma intensidade.

 

Joana Queiroz, compositora e multi-instrumentista – foto divulgação

 

Mulheres instrumentistas são muitas. Falei anteriormente de Léa Freire, uma grande inspiração para diversas gerações. Merecidamente, Léa tem um documentário sobre sua trajetória, “A Música Natureza”, de Lucas Weglinski. Assista! Joana Queiroz, uma das integrantes do delicioso Quartabê, toca clarinete, clarone e outros sopros. Tem influência de Léa, mas também de Hermeto, Itiberê e trilha um caminho próprio dos mais interessantes.

Uma dupla de trompete e contrabaixo acústico formada pelos irmãos Sidmar e Sidiel Vieira, 2Vieira, é uma das formações mais instigantes que vi nos últimos anos. São excelentes músicos e tiram desse encontro timbres e texturas deliciosos!

Busque na plataforma que preferir, compre discos e frequente as casas em que se apresentam. Indico o Instrumental Sesc Brasil – que toda terça-feira ocupa o teatro do Sesc Consolação com shows gratuitos às 19h e a recém-criada noite de jazz no Azucar Club, na Vila Madalena. A música feita no Brasil é a mais diversa do planeta. Ouvi-la é uma grande e prazerosa aventura!

Ícone da MPB, João Donato tinha jeito leve ao piano, suingue incomparável e doçura melódica

Ícone da MPB, João Donato tinha jeito leve ao piano, suingue incomparável e doçura melódica

Pianista, acordeonista, arranjador, cantor e compositor, João Donato criou obra extensa que é um verdadeiro marco para a música brasileira, além de referência para novas gerações

Peço licença para falar de João Donato e das deliciosas vezes em que nos encontramos para o Vozes do Brasil e outros projetos de música que faço. Seu jeito leve ao piano, seu suingue incomparável, sua doçura melódica – tudo isso estava presente na hora de responder sempre delicadamente as minhas entrevistas. O multi-instrumentista e ícone da MPB – natural de Rio Branco, nas profundezas da Amazônia – nos deixou em julho deste ano e teve incríveis 74 anos de carreira.

Certa vez, ele chegou para gravar o ‘Vozes do Brasil’, ao vivo no Sesc Vila Mariana, com um papel dobrado no bolso e disse: “Palumbo, estou com esse papelzinho aqui. Foi o Jobim que me deu, uma música que nunca toquei, posso tocar no seu programa?”. Em outra ocasião, Donato não quis tocar nada, estava sem vontade, mas contou muitas histórias sobre o Acre, os rios, e ouvimos uma seleção de temas instrumentais maravilhosos que ele gravou fora do Brasil.

 

foto divulgação

 

Gosto de ouvir João Donato por ele mesmo. Tenho dois LPs que ganhei autografados no Festival MIA de Araçatuba, de 2019, que vivem na vitrolinha da sala. O “Quem é Quem”, de 1973, é aquele clássico que tem Donato tocando piano elétrico e um elenco de arranjadores absurdo: Dori Caymmi, Lindolfo Gaya, Laercio de Freitas e Ian Guest. Tem ainda parceria com Marcos Valle, Paulo César Pinheiro e as maravilhas do irmão Lysias Enio – autor da letra de “Até Quem Sabe”, que é uma das canções mais lindas do mundo. Nesse disco, Donato canta quase tudo, exceto “Mentiras”, que tem a belíssima voz de Nana Caymmi ainda bem jovem.

Outro álbum é “Raridades”, lançado em 2018, uma compilação de faixas avulsas (hoje chamaríamos de singles), com Donato ao piano e uma participação de Nara Leão em “Fim de Sonho”. A cantora também gravou “Amazonas”, que é uma música maravilhosa!

Eu tenho uma verdadeira lista de preferidas de João Donato. Começo com todo o “Cantar”, LP de Gal Costa que ele produziu em 1974 – gosto do piano e dos arranjos que ele assina para ela. E Donato com Caetano temos “A Rã” e “Flor de Maracujá” com Lysias, que são duas delícias.

Sigo com “Brisa do Mar”, parceria com Abel Silva. Uma bossa abolerada, letra linda e aquela divisão que faz querer dançar juntinho, alegre e triste ao mesmo tempo. E “Minha Saudade” com João Gilberto, daquele disco “João Donato e seu Trio Muito À Vontade” de 1962, e “Café com Pão”, gravado com Paula Morelenbaum em 2011. João Donato fez “A Paz” com Gilberto Gil e “Gravidade Zero” com Tulipa Ruiz. Fez “Estrela do Mar” com Rodrigo Amarante e “Síntese do Lance” com Jards Macalé.

Sua música e genialidade são atemporais. Ninguém toca como ele, ninguém compõe como ele. Gosto de dizer que artistas assim são sozinhos um gênero musical. Quando a música começa, você já sabe quem é.

O bom de uma obra longa e bonita assim é que se torna eterna. Nunca perderemos João Donato, o artista sem igual. Faz muita falta a sua risada, além da sua doçura, suas camisas coloridas, os bonés, a simpatia. Vamos ouvi-lo sempre. Com saudade.

Artistas brasileiros para ouvir nas festas juninas e “julinas”

Artistas brasileiros para ouvir nas festas juninas e “julinas”

As celebrações de fé e conexão que tomam conta do país até o final de julho se expressam lindamente na música popular brasileira

O Brasil talvez seja o lugar no mundo onde mais se mistura o pagão com o divino. Quando entramos no tema música, isso fica imenso. Lenine me contou divertidamente que, aos 8 anos de idade, assim como seus irmãos, foi chamado pelo pai em um domingo para dizer que a partir daquele momento ele poderia escolher como se comunicar com o divino: indo à missa com a mãe ou ouvindo música com o pai… o que acha que ele escolheu?

Independente da enorme fé que existe no povo brasileiro, seja ela qual for – e a escolha é livre, vale lembrar –, as festas cumprem esse papel de conexão. Pode ser em uma roda de candomblé com os tambores do ogan, pode ser nos hinos das igrejas católicas ou protestantes, pode ser em volta de uma fogueira com os pandeirões esquentando, como em São Luiz do Maranhão, e pode ser ainda em uma canção de sucesso de Maria Bethânia.

Nessa época do ano, junho, julho, as cidades do Nordeste se enfeitam e festejam São João, Santo Antônio, São Pedro e quem mais chegar. Nas cidades de pescadores, a procissão de barcos enfeitados com bandeiras vai para o mar e o padre sai junto para benzer as redes e as embarcações. Nas cidades do sertão, a fogueira não falta, nem o milho, nem as danças. O forró come solto! “Olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo…” canta Luiz Gonzaga.

Foto Divulgação

As festas chamadas juninas acabam seguindo até o final da temporada de férias em julho. No Maranhão, a festa do Boi mobiliza todo o estado. Na capital e no interior, são muitas as celebrações e os diferentes sotaques: boi de orquestra, boi de pandeirão, boi de matraca. Zeca Baleiro é um artista maranhense que homenageia o Boi em seus trabalhos de um jeito muito bonito. Várias canções trazem o ritmo, o colorido da festa e aproximam a tradição do contemporâneo.

Um lindo exemplo é “Boi de Haxixe”, cantado por Zeca e pela mineira Ceumar em seu primeiro disco. Nos mais recentes, ela traz também o batuque e cantos para orixás como “Encantos de Sereia” do disco “Silencia” . De Minas, vem ainda Déa Trancoso, cantora e compositora do Vale do Jequitinhonha, que trouxe a congada e a folia para seus discos. Rita Benneditto, também do Maranhão, fez um disco inteiro chamado “Tecnomacumba”, que vai do tradicional tambor de criola ao ponto de Oxum. Fez imenso sucesso!

Escrevo esta coluna no dia 13 de junho cantarolando com Maria Bethânia: “Que seria de mim, meu Deus, sem a fé em Antônio…” de J. Velloso. Esse delicioso samba de roda dedicado a Santo Antônio foi lançado em uma festa em Salvador com os tambores no altar de uma igreja barroca. Uma lindíssima cerimônia!

E Gilberto Gil mistura o xote com o reggae há muitos anos e tem um disco que pode embalar seus festejos do mês sem medo de ser feliz. É o “Fé na Festa”, que resume em um título e no maravilhoso repertório o que trago para a sua leitura. Alegria é tudo que se quer e agradar os santos não custa nada. Acenda uma velinha se quiser e dance sempre como bem quiser, como dizia nossa inesquecível Rita Lee – também conhecida como Santa Rita de Sampa. Boa viagem e fé na festa!

Composições e interpretações da música brasileira que falam da maternidade

Composições e interpretações da música brasileira que falam da maternidade

Canções que dialogam sobre a maternidade e exaltam figuras complexas, imensas e amadas

Olá, viajante! Nesta coluna sugiro um mergulho nas mães da música brasileira. Mães cantadas, cantoras, compositoras. Começo com “Mamãe, Coragem”. Essa canção de Torquato Neto e Caetano Veloso não é emblemática por acaso. “Mamãe, não chore, a vida é assim mesmo, eu quero mesmo é isso aqui…” Deixar a casa da mãe para cair no mundo. Ritual necessário, mas não raramente doloroso. A música virou um clássico na voz de Gal Costa no disco “Tropicália” e foi gravada no mesmo ano pela incomparável Nara Leão. Quero lembrar aqui deste trecho da letra:

“Pegue uns panos pra lavar, leia um romance
Veja as contas do mercado, pague as prestações
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos
Seja feliz, seja feliz”

Só não é mais dramática do que a letra de “Coração Materno” de Vicente Celestino, que Caetano gravou em 1968 no mesmo “Tropicalia” e, em 1999, no belíssimo “Omaggio a Federico e Giulietta”. Vale lembrar que as duas canções são antigas, do século passado. Anos 1950 e 1660. Vamos falar também da maternidade de hoje, retratada em canções contemporâneas. Em seu primeiro disco, a baiana Josyara gravou “Nanã”, escrita por ela mesma. A cantora conversa com a mãe por meio de conselhos. Uma mãe mais próxima, mais amiga, indicando caminhos. Nada de corações sangrando pela estrada. Nada de tristeza pelo ninho vazio. É musicalmente deliciosa com aquele acento Moacir Santos e João Gilberto ao mesmo tempo:

 Josyara - Foto Julia Rodrigues | divulgação

Josyara – Foto Julia Rodrigues | divulgação

“Persigo meu destino
Ouço a voz, ouço a voz de minha mãe (nanã)
Dizendo: Filha, olha ao seu redor, entenda
Tudo é como deve ser
Tenha coragem, cresça, procure um abrigo
Quando a tristeza canta, desobedeça a dor”

Quando a compositora é mãe, a história também é muito interessante. Vide “Clara e Ana”, de Joyce Moreno, talvez um dos maiores sucessos dessa grande compositora, violinista e cantora. E Anelis Assumpção gravou “Receita Rápida”, que fala da maternidade de uma forma mais fluída, mais cotidiana, ampla:

“Quem é farinha no bolo, não sola
Quem centeio integra o pão
Quem liga os ovos a todos, consola
Quem é o calor do fogão
Quem que dá gosto e recheia, põe fruta
Quem na massa põe a mão
Quem é o forno ou a forma, quenta
Quem dá forma de coração”

Mães e filhas. Maternidade. Tema complexo, imenso e realmente maravilhoso. Vamos ouvir música e pensar sobre isso?

Jards Macalé, que completa 80 anos neste mês, está presente no cenário musical e cultural brasileiro há décadas

Jards Macalé, que completa 80 anos neste mês, está presente no cenário musical e cultural brasileiro há décadas

Mais um grande nome da música brasileira completa 80 anos em março: Jards Macalé. Carioca da Tijuca, morador de Ipanema, ele foi copista de partituras para o grande Severino Araujo da Orquestra Tabajara, aprendeu a tocar em um violão de Turíbio Santos – instrumento em que compõe até hoje –, trocou ideias sobre samba e bossa nova com João Gilberto, foi fundamental na obra pós tropicalista de Gal Costa – dirigiu o histórico show “Fatal” com Waly Salomão –, é compositor de clássicos como “Movimento dos Barcos” (com o poeta Capinam) e “Vapor Barato” (com Waly). Isso só para começar!

Macalé é um imenso compositor. Em agosto de 2013, estivemos juntos no Jardim Botânico para uma longa entrevista para o livro “Vozes do Brasil” (edições Sesc). Ele me contou do “tempo do desbunde”, o final dos anos 1960 quando se reuniam nas areias do Posto 9, nas dunas da Gal, a turma da música, do cinema novo, de tudo que era novo naquela época. O músico me falou também dos anos 1980 quando parou de ouvir rádio porque “o jabá encaretou a programação” e ele se voltou para os sambas dos anos 1940, para as canções dos anos 1950. Macalé sempre misturou o jazz, o blues, o pop e o rock com a música feita no Brasil. Debussy, Ciro Monteiro, Clementina e Nora Ney são todos parte de uma mesma história.

 

Jards Macalé - Foto Felipe Giubilei | divulgação

Jards Macalé – Foto Felipe Giubilei | divulgação

 

Minha proposta é um mergulho na obra deste artista. Vamos começar com o disco de 1972, que Macalé gravou com Lanny Gordin (guitarra, violão e baixo) e Tutty Moreno (bateria). Produzido por Guilherme Araujo, o álbum tem um repertório maravilhoso: “Mal Secreto”, “Movimento dos Barcos”, “Hotel das Estrelas”, “Farrapo Humano” (de Luiz Melodia) e “Let’s Play That” – parceria de Macalé com Torquato Neto. Aliás, ler o poeta é um ótimo caminho para entender essa obra. Recomendo o livro “Torquatália”, que reúne as colunas escritas por ele e que falam muito da música feita nesse tempo.

Seguindo nos discos, vamos para 1987: “Quatro Batutas e Um Coringa”. Macalé gravou composições de Paulinho da Viola, Geraldo Pereira, Lupicínio Rodrigues e Nelson Cavaquinho. Um luxo. Anos depois, em 2011, pela Biscoito Fino , saiu o disco “Jards” – uma belíssima compilação de composições de Macalé e seus parceiros, com participações maravilhosas de Elza Soares, Elton Medeiros, Luiz Melodia, Ava Rocha, Cristovão Bastos, Jorge Helder – um timaço!

Em 2019, o professor Macalé se encontrou com os paulistas Rômulo Fróes, Kiko Dinucci, Thiago França, Tim Bernardes, Rodrigo Campos e mais uma turma de talentos dessa geração para compor, arranjar e tocar em “Besta Fera” – disco que concorreu ao Grammy Latino. Em 2021, ele se juntou ao também fundamental João Donato, e os dois mestres lançaram “Síntese do Lance”.

Todas as loas para o mais novo oitentão da música pop do Brasil. Salve Macalé! Ouça e caia no feitiço. Perceba a sofisticação das melodias, do ritmo, da intenção em cada parceiro, em cada verso. A história do Brasil passa por ali!