Após meses de isolamento, Ney Matogrosso volta aos palcos para celebrar seus 80 anos de vida e quase cinco décadas de música
Neste improvável e difícil ano, Ney Matogrosso lançou novo álbum, fez 80 anos e agora encara, tranquila e sabiamente, a sua intensa finitude.
Ney é um artista que elegeu o contato direto com o público nos shows como sua grande força. Embora tenha gravado álbuns fundamentais para a MPB, as turnês movem a sua carreira. Enquanto outros gravam um disco e então tratam de organizar o show para divulgá-lo, Ney Matogrosso pensa primeiro no espetáculo, nas roupas, no cenário, no repertório. O estúdio fica para depois.
Assim, o cancelamento de todos os shows no planeta durante a pandemia de Covid-19 foi um grande revés para o cantor. Logo ele, que estava em turnê do disco “Atento aos Sinais”, com cinco anos de viagens pelo Brasil, e já mostrava ao público desde 2019 o show de “Bloco na Rua”, lançado no mesmo ano. E, pior, uma coisa dessas acontecendo em 2021, quando ele comemorou 80 anos no dia primeiro de agosto.
Para ultrapassar esse período ruim, veio a ideia de gravar. Chega “Nu com Minha Música”, álbum irretocável com 12 poderosas canções, lançado em novembro. “Inventei de fazer um disco para me tirar mesmo daquilo, era minha única alternativa. Mas foi difícil, porque foram condições bem adversas. Tirando tom por telefone, ouvindo arranjo por telefone, tudo muito complicado”, conta Ney, que tomou uma decisão incomum. Ele dividiu as gravações com quatro produtores, todos também músicos de primeiro time: o tecladista Sacha Amback, o pianista Leandro Braga, o guitarrista Ricardo Silveira e o violonista Marcello Gonçalves.
“São pessoas com quem eu trabalhei muitas vezes. Eles tocaram no palco comigo, já me dirigiram musicalmente em vários shows, gente que está comigo há muitos anos. Os quatro me conhecem muito bem. Selecionei 12 músicas e distribuí três para cada um, o que também deu uma facilitada na coisa, porque se fosse uma pessoa só para fazer 12 músicas ficaria mais complicado e demorado. E eu queria mesmo para o meu aniversário. Então deu tudo certo. Lançamos quatro músicas em agosto, num EP, uma produzida por cada um”, lembra.
O quarteto de canções mostra o cantor com compositores que são queridos por ele, nomes que comparecem em inúmeros álbuns da carreira: “Nu com Minha Música”, de Caetano Veloso, “Se Não For Amor Eu Cegue”, de Lula Queiroga e Lenine, “Mi Unicornio Azul”, do cubano Silvio Rodriguez, e “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Agora, nas outras faixas que completam o álbum recém-lançado, há mais gente habitual no repertório, como Roberto e Erasmo (“Sua Estupidez”), Vitor Ramil (“Noturno”), Herbert Vianna (“Quase um Segundo”) e Alice Ruiz e Itamar Assumpção (“Sei dos Caminhos”). Ney admite não ser um disco de músicas destinadas ao sucesso, mas o considera profundo.
De volta aos palcos, o cantor fará um show na Marina da Glória, no Rio de Janeiro, em 8 de janeiro. Em 7 de maio estará em Campinas e, no dia 17 de julho, no Central Park, em Nova York.
Longe da despedida
Fazer 80 anos pode ser algo que provoque reflexão, talvez um balanço do que a pessoa já realizou, levando a exercícios como listar aquilo que poderá ser considerado seu legado. Não para Ney Matogrosso, que rebate com veemência a ideia. “Nem penso nisso! Nada de balanço da vida.” Lembra que alguém perguntou se ele estava se despedindo da carreira. A resposta foi imediata: “Que me despedindo o quê, mané! Que coisa!”, repete Ney, rindo.
Quando é chamado a comentar sua discografia, iniciada em 1975 depois do sucesso estrondoso nos dois anos anteriores como vocalista do fenômeno Secos & Molhados, ele não gosta de tudo que gravou. Mas considera que não errou, as gravadoras é que erraram, ao exigir a gravação de discos anuais.
“Falo daqueles discos até os anos 1980, nos quais às vezes gravei sobras de um show, simplesmente porque fui obrigado. Eu não podia dizer não. Mas briguei muito, passei por sete gravadoras. Ninguém pedia demissão de gravadora. Eu pedia. Não podia continuar ali. Percebo que tem alguns discos que não me satisfazem. Gosto de três ou quatro músicas, mas do resto não gosto. E eles não tinham a preocupação de me colocar no estúdio com uma boa banda. Pego um disco meu e escuto umas coisas estranhas, de menor qualidade. Mas não era culpa minha. Era obrigado a fazer.”
Ney conta ainda que guarda em casa relações de músicas que um dia quer gravar. “Por exemplo, ‘Mi Unicornio Azul’ eu ouvi pela primeira vez na década de 1970 com o Silvio Rodriguez, no Canecão. Tentei colocar em outros discos, mas não cabia. Agora neste novo álbum, que é completamente desvinculado de qualquer proposta além de cantar só o que eu quisesse, coube.” Jovens compositores o procuram bastante. Mas sair de casa para ver show de algum artista novo, que começa a despontar, curiosamente é mais difícil. “Não sou uma pessoa que vive a noite. Não gosto nem de sair de casa. Gosto de receber pessoas, receber amigos dentro de casa. Eu não sou muito da rua nem da noite. Mas esporadicamente vejo algum show, sim.”
O cantor tem no currículo colaborações em discos e shows com algumas bandas, como Pedro Luís e a Parede e Nação Zumbi. Mas nunca pensou, desde o Secos & Molhados, na ideia de pertencer novamente a uma banda. “Mas eu monto grupos que duram muito, como o atual. Eu fiz com essa banda o show de ‘Atento aos Sinais’, que ficou cinco anos em cartaz, e estávamos nessa turnê que vai para o segundo ano. A gente tinha feito um e parou por causa da pandemia.”
E confessa que pode recorrer a músicos diferentes. “Se, de repente, eu quiser fazer um disco todo romântico, aí posso achar que a atual não é a banda para isso. Porque essa é mais pesada, é pop, rock. Quando eu fui fazer o disco ‘Beijo Bandido’ (2009), gravei com Leandro Braga. Era cello, violino, percussão e piano. E gostei muito do resultado.”
Estrela reservada
Em agosto, Ney Matogrosso ganhou um espaço enorme na mídia, por causa de seu aniversário. Além do lançamento do EP de quatro novas gravações, o jornalista Júlio Maria publicou uma biografia do cantor, o que atraiu ainda mais atenção. E ficou incomodado com o excesso de exposição. “Sou muito comedido, mas no aniversário perdi completamente o controle.” Mas há limites de privacidade dos quais ele não abre mão. “Minha casa eu não mostro nunca. Não vou à Ilha de Caras nem que me paguem. O máximo que possa preservar, eu preservo. É um paradoxo, né? Porque sou a pessoa que mais se expõe no palco, mas gosto da vida reservada.”
Falando do palco, ninguém esperava, nem ele mesmo, que alguém com 80 anos tivesse tanta disposição física. “Sempre utilizei meu físico e continuo usando. Não sei explicar como sou capaz disso, mas faço ginástica diariamente, mantenho o tônus muscular. Não sou uma pessoa que gosta de comer muito, eu me cuido, não bebo, não fumo. Então isso ajuda a me manter até agora podendo usar o meu corpo desse jeito.”
Ney levou algum tempo para que essas atitudes saudáveis entrassem em sua vida. “Nos anos 1970, não tinha cuidado nenhum, né? Eu me levantava da minha cama, colocava uma gema na boca, tomava um copo de leite e ia para a praia, passava o dia inteiro na praia. Era assim. A partir de um momento, mudei. Eu tenho muitos amigos médicos, conversava com eles, que diziam que eu estava errado. Tomava só Coca-Cola. Não tomava água. Mas mudei por minha própria decisão. Eu fui entendendo que tinha de comer mais fruta, mais verdura, mais folhas. Antes praticamente não me alimentava. Comia uma vez por dia quando chegava da praia. Eu tinha 30 aninhos, né?”
Mas não adianta procurar por Ney e seus conselhos nas redes sociais. Ele diz não gostar, de jeito nenhum, dessas mídias. Não alimenta perfil e nem contrata gente para fazer isso, mesmo que apenas nos aspectos profissionais. “Não quero cair no caldeirão da bruxa, porque é o caldeirão da bruxa, né? Falam absurdos, todos têm opiniões, todo mundo fala mal de todo mundo. Para que eu vou me meter numa coisa que só vai me aborrecer? Não quero, não tenho necessidade disso.”
Sobre política, assunto tão recorrente nas redes, ele não foge. Ney concorda que a eleição de 2022 pode ser uma das mais agressivas da história. E acha que desta vez não pode ficar de fora. “Eu já anulei voto, mas agora não dá para anular. Anular é você não querer nenhum dos dois, nenhum te satisfaz, mas estamos em um momento no qual não cabe esse luxo.”
Finito e eterno
Ney Matogrosso convive com a ideia de sua finitude tranquilamente. “Com 80 anos, tive tempo de elaborar isso. Penso em amigos e amores, e perdi quase todos. Então tive muito tempo para refletir. Essa é a única certeza de que nós, humanos, temos. Uma hora nós vamos embora. Olho para isso com muita naturalidade, e a única coisa que eu peço para mim mesmo é tranquilidade nessa hora.”
Conhecido em todo o Brasil desde o Secos & Molhados, Ney fica impressionado que as pessoas nas ruas o reconhecem de máscara. “Pensei que na pandemia poderia andar sem ser reconhecido na rua, mas que nada! Isso não me incomoda. Só odeio que me agarrem, que me impeçam de continuar andando. Na beira do palco, podem botar a mão em mim à vontade. Mas não me segurem. Passar a mão em mim eu deixo. Se eu ficasse incomodado com isso, minha vida seria uma chatice.”
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