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Uma das maiores especialistas do Brasil no assunto, Marussia Whately alerta sobre a crise hídrica

Uma das maiores especialistas do Brasil no assunto, Marussia Whately alerta sobre a crise hídrica

Não dá para falar sobre água sem citar Marussia Whately, uma das grandes referências mundiais sobre o assunto. Convivendo desde pequena com movimentos pela conservação dos mananciais da represa de Guarapiranga, em São Paulo, onde cresceu, ela logo cedo percebeu seu talento para liderar e engajar grupos, além de transmitir informações técnicas de forma clara para a população.

Casas no leito do Rio Amazonas. Foto: Getty Images

Formada em arquitetura e urbanismo pelo Mackenzie, Marussia se destaca por passagens inovadoras: foi a mais jovem coordenadora do ISA – Instituto Socioambiental, onde atuou por mais de dez anos; participou do Programa Municípios Verdes, parceria entre a sociedade civil e o governo do Pará; e articulou o movimento Aliança pela Água, com mais de 60 organizações, para discutir a grande crise hídrica de São Paulo em 2014. Autora de “O Século da Escassez – Uma Nova Cultura de Cuidado com a Água: Impasses e Desafios”, que escreveu em parceria com Maura Campanili, Marussia está agora à frente do Instituto Água e Saneamento, que visa aumentar o acesso ao esgoto de forma mais rápida e beneficiando mais gente.

Por que, mesmo sendo uma questão crucial para a saúde da população e do meio ambiente, é tão difícil avançar com o saneamento no Brasil?

Saneamento é um tema complexo, pois tem várias dimensões. Assim como o acesso à água, ele é um direito humano, o que responsabiliza os países; ele é política pública, alçada de governo federal, estadual e municipal, e é também prestação de serviço. Envolve água, esgoto, lixo, águas pluviais, enchentes e todos os processos ligados a cada uma dessas questões, todas relacionadas à saúde. Como é um tema complexo, não tem um único responsável nem uma única solução, o que dificulta avançar. Ainda falta muito até chegarmos no ponto ideal onde os governos economizam com os benefícios, pois estamos atrasados desde a parte do esgoto. Há um enorme déficit na prestação de serviços, com 48% da população sem coleta básica. O maior problema das crianças e adolescentes do Brasil, segundo dados da UNICEF, é a falta de saneamento, visto que cerca de 14 milhões deles vivem ao lado de valas abertas e rios sujos.

Existe algum avanço em relação às formas de implementar o esgoto?

É necessária uma revisão profunda do tema. A forma linear como tratamos o esgoto no Brasil é uma ilusão, é o modelo clássico, onde se pega a água do manancial que está longe da cidade, perde-se parte dessa água no meio do caminho, trata-se essa água e a distribui para as casas, perdendo mais uma quantia. Ainda tem o esgoto, que não é todo coletado, nem tratado, e parte dele vai parar nos rios – tanto que todos os rios das cidades brasileiras têm poluição por dejetos. E mesmo a parte do esgoto que foi devolvido não desaparece, ele vai para a cidade de baixo, vai poluir o mar… Por isso, precisamos de uma revisão urgente.

O que é necessário fazer?

Uma concepção mais atualizada sobre o esgoto, assim como temos com o lixo. Falta olhar para ele não só como dejeto, mas também como recurso natural que pode ser reposto para a atmosfera. Podemos ter cadeias de serviços separadas, e a água não precisa necessariamente estar ligada ao esgoto. Falta enxergarmos o esgoto de forma circular, para que ele seja reaproveitado, e não descartado. E daí podem surgir novos negócios. Um exemplo é o fósforo, recurso finito na natureza e que se encontra no lodo do esgoto. Por que não desenvolvermos sua extração? Também é possível ter adubo vindo do esgoto, energia… E assim vão sobrando menos partes a serem descartadas. É o mesmo princípio da reciclagem de lixo.

Qual é a grande causa da crise hídrica em algumas regiões do Brasil, tendo em vista que o Brasil parece ter água de sobra?

O Brasil de fato possui 12% da água superficial do planeta e, mesmo assim, algumas cidades, como São Paulo e Rio, já vivem um estresse hídrico. Não dá para dizer que o país está numa situação confortável. Uma das razões é que grande parte da água está na Amazônia e a maior concentração de população e indústrias está no Nordeste, Sudeste e Sul. Não há um bom planejamento para reduzir o uso da água.

Outro aspecto é que, apesar de existir tanta água, boa parte não tem qualidade para se reutilizada. Hoje temos quatro principais fontes de poluição de água: esgoto e efluentes urbanos; fertilizantes e agrotóxicos; processos de mineração; e desmatamento. Essas “ameaças” ocorrem de formas diferentes em cada região. É essencial que a gente crie, com urgência, uma nova cultura de cuidado com a água. É importante partir do princípio que, desde que começou a chover na Terra, a água é sempre a mesma, ela vai se renovando, e estamos acabando com os espaços onde ela se renova, como a várzea, os rios, as geleiras.

O aquecimento global tem relação com esse estresse hídrico?

Totalmente. No contexto de um processo global de mudança do clima, os extremos têm sido mais intensos. Como diz o professor Antonio Nobre em seu livro “O Futuro Climático na Amazônia”, o clima está ficando menos amigo. Nos últimos 14 mil anos, as pessoas compartilhavam o “saber” do clima, sabiam quando ia chover, fazer frio ou calor, o que favorecia a agricultura, por exemplo. Hoje, não, o que causa muita insegurança. A crise hídrica é mundial, tanto que nos últimos cinco anos o Fórum Econômico Mundial vem apontando o problema como um dos maiores riscos para a humanidade.

Além dos governos, a sociedade civil e as empresas têm responsabilidade em relação ao cuidado com a água?

Todos somos responsáveis. Mesmo a água sendo um direito humano, o cuidado com ela é um dever de todos. E eu acredito que possamos mudar nossa cultura e comportamento. Um exemplo é o que aconteceu em São Paulo após a grande crise hídrica de 2014, quando chegamos à beira de um colapso. Houve investimento em diferentes escalas para o uso mais consciente e inteligente da água, de moradores a condomínios e indústrias. Por causa do uso consciente, o consumo de água na cidade hoje é 10% menor do que era antes da crise.

Você vê as novas gerações mais conscientes com a questão da escassez?

Sim, mas não podemos generalizar. Uma criança que estuda em uma boa escola particular em São Paulo tem uma visão de futuro muito diferente do que a criança que vive ao lado de uma vala de esgoto aberto, onde o problema é o seu presente. Essa primeira criança, privilegiada, entende que o seu futuro está ameaçado; então ela tem medo, sabe que as coisas precisam mudar e cobra das gerações anteriores a solução para o mal que causaram. Daí surgem lideranças como a Greta Thunberg, que é um fenômeno maravilhoso. Mas também temos que tomar cuidado para educar e conscientizar essas crianças sem causar pânico e depressão, que pode ser muito ruim e pouco produtivo.

Rádio Vozes: música e água

Rádio Vozes: música e água

Não entendo de física quântica nem de ciência, mas já li muito sobre o poder curativo da água e das diferentes composições químicas da lágrima de dor e de alegria. E todos sabemos que o planeta redondo onde vivemos é cheio de água e que nós também somos. Fazendo aqui um exercício de retórica, lógica ou bom senso, penso que se a lua mexe com a maré por que não mexeria conosco? Comigo mexe, e muito. Tenho dias de rasante e de maré cheia.

música e água

O cantor e compositor Gilberto Gil. Foto: Gérard Gaume/Divulgação

Quando a 29HORAS me pediu um texto sobre música e água, eu me lembrei de tudo isso e de um experimento do fotógrafo e pesquisador japonês Masaru Emoto, que fotografou moléculas de água expostas ao som de Mozart, de John Lennon e de heavy metal. As moléculas formavam cristais lindos com a música clássica suave e com “Imagine”, mas com o heavy metal tudo virava uma bagunça.

Eu vivo dizendo que a música transforma. Se somos feitos de 70% de água, é bem capaz de que nossas células, moléculas, ou sei lá o que, sejam mesmo modificadas com a boa música. Gilberto Gil, nosso compositor filósofo mestre pensador, faz essa ponte entre a arte e a ciência de maneira explicita no disco “Quanta”, lançado em 1997. A começar pela linda canção que dá nome ao disco e que tem a participação de Milton Nascimento: “Canto de louvor/De amor ao vento /Vento, arte do ar/Balançando o corpo da flor/Levando o veleiro pro mar…” E nesse mesmo disco, na canção “Água Benta”, ele fala da água como condutora, contando a história de um menino que foi batizado com água poluída: “A água benta que ao bel prazer /Se desmagnetizou / Desconectada do seu poder/ Por um capricho do amor …”

Muitos anos antes, no disco “Louvação”, de 1967, Gil fez com Capinan a canção “Água de Meninos”, que é um bairro histórico de Salvador. Um lugar abrigado de frente para o mar onde funcionava uma feira popular e que sofreu um incêndio histórico nos anos 1960. Nos versos de Capinan, aparecem as águas do mar e das lágrimas. De Dominguinhos e Anastácia Gilberto, Gil gravou “Tenho Sede”, uma linda canção de amor: “…Minha garganta pede um pouco de água / E meus olhos pedem teu olhar…”

Não sei se os efeitos de Mozart no cristal de água podem ser comprovados pela ciência, mas como nosso assunto é música e poesia sigo acreditando que ouvir uma seleção de maravilhas com Gilberto Gil, Dominguinhos e Milton Nascimento só pode mesmo fazer bem.

E pra reforçar termino com mais um pedacinho da letra de “Água Benta”, quando o autor justifica a confusão que o batismo com água poluída fez na vida do menino: “…Talvez por mero defeito na ligação/Sutil entre a essência e a representação/Verbal que tem que fazer todo coração/Mortal ao balbuciar sua oração..”

Do poder das palavras e de um bom copo de água fresca não duvidamos. Muito menos de Gilberto Gil.

Mobilidade: Grupo Metrópole Fluvial busca transformar os rios paulistas em hidrovias ativas

Mobilidade: Grupo Metrópole Fluvial busca transformar os rios paulistas em hidrovias ativas

Foi a partir do início do século 19 que os governantes brasileiros passaram a ver os rios como obstáculos ao progresso. A nossa urbanização foi feita de costas para os rios, usados como banheiro. Com o tempo, se priorizou cada vez mais o espaço para carros, desprezando a importância das águas correntes para as cidades. Em São Paulo, o rio Tamanduateí foi o primeiro a ser canalizado. Seguiram-se muitos outros que foram retificados, enterrados e esquecidos.

Fotomontagem do Canal Pinheiros na altura da raia olímpica da USP. Foto: Divulgação

Estima-se que São Paulo tenha de 300 a 500 rios embaixo dos nossos pés, sob ruas, casas e edifícios. São, de acordo com a iniciativa Rios e Ruas, que desde 2010 mapeia o ciclo das águas subterrâneas da capital paulista, cerca de três mil quilômetros de rios, riachos e córregos sob o asfalto. “Queremos trazer os rios para perto do nosso olhar, é impossível cuidar do que não vemos”, diz o geógrafo Luiz de Campos Jr, da Rios e Ruas. A iniciativa tem expedições para sensibilizar as pessoas a respeito da proteção fluvial. Se esses rios enterrados corressem livres e limpos, a céu aberto, não teríamos as enchentes atuais, causadas pela impermeabilização do solo, entre outros fatores.

E os que estão visíveis, poluídos e repletos de esgoto, como os rios Pinheiros e Tietê? Para Alexandre Delijaicov, que coordena o Grupo Metrópole Fluvial, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, é preciso resgatar e integrar novamente os rios urbanos. A navegação fluvial é um dos sistemas mais baratos e limpos que existem e pouquíssimo usada no Brasil, dependente do transporte rodoviário.

O grupo desenvolveu um projeto para a construção de um hidroanel metropolitano e prevê a conexão e o pleno aproveitamento das hidrovias que circundam 14 cidades da Grande São Paulo, melhorando a mobilidade urbana, reduzindo a poluição e fazendo uso inteligente e sustentável das águas. Delijaicov estuda o assunto há mais de três décadas e se inspirou em países como Holanda, Alemanha, França, Estados Unidos e China, usuários de vias navegáveis para transporte de cargas e pessoas. Além dos ganhos econômicos, a pegada ecológica é expressiva. “Com a potência de um motor de caminhão podemos transportar, em uma embarcação, o equivalente a carga de 40 caminhões. E a proposta do Grupo Metrópole Fluvial é usar embarcações ‘autopropelidas’, com motores elétricos”, diz Delijaicov, lembrando que o transporte hidroviário pode ser 7 a 8 vezes mais barato que o rodoviário, e 3 a 4 vezes mais barato que o ferroviário.

O projeto, que estima uma redução de 30% no tráfego de cargas em São Paulo, prevê a construção de um ambiente urbano com uma infraestrutura que preserve as águas, ao mesmo tempo que oferece espaços públicos de convivência e lazer na orla fluvial. As embarcações seriam destinadas ao transporte de cargas e passageiros, como também ao lazer e passeios turísticos. Utopia? Isso já é comum em grandes cidades do mundo e é possível também aqui. Mas é preciso a união de todos – universidade, governos, empresariado e sociedade – para que seja concretizado. O ganho é imenso em todas as áreas, para as pessoas e a cidade.

Crescem os conflitos mundiais pela água

Crescem os conflitos mundiais pela água

As disputas em torno da água estão se alastrando, tanto no Brasil como no exterior. Elas acontecem de diferentes formas, são confrontos entre nações, modelos de gestão, grupos de interesse e classes sociais. Quando esses embates reduzem o acesso de populações à água de qualidade, é de se esperar que haja a propagação de doenças e, muitas vezes, o aumento do número de mortos. Frente a essa realidade, segue a questão: é possível assegurar que todos tenham acesso a esse recurso?

Entre os desafios, está o fato de que aproximadamente 2,1 bilhões de pessoas (29% da população mundial) não têm acesso à água potável em casa, segundo dados do último relatório da OMS em parceria com a UNICEF. Apresentada em 2017, a pesquisa também aponta que cerca de 4,5 bilhões de pessoas (55%) carecem de um sistema seguro de saneamento. Em um balanço de 17 anos, iniciado em 2000, o estudo mostra que o acesso a serviços de água potável e a saneamento seguro tiveram uma progressão média anual de respectivamente 0,48% e 1,02%.

Foto: Getty Images

Água, um campo minado

O Water, Peace and Security é uma ferramenta que mapeia a possibilidade de conflitos por água no Sudeste Asiático, no Oriente Médio e em todo o continente africano. Patrocinada pelo governo holandês, a plataforma foi apresentada para o conselho de segurança da ONU antes de seu recente lançamento. Ela prevê altos índices de conflito por água no Iraque, Irã, Mali, Nigéria, Índia e Paquistão ainda este ano.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, nas Colinas de Golã. Foto: GPO/Fotos públicas

“É importante dizer que a guerra por água não é uma guerra clássica. Ela ocorre em uma luta por posições estratégicas para manter o acesso aos recursos hídricos”, aponta Wagner Costa Ribeiro, professor de geografia da USP e autor do livro “Geografia Política da Água”. Um exemplo é a disputa pelas Colinas de Golã, responsável por um terço do abastecimento de água de Israel. O país tomou a região da Síria em 1967 e, desde então, seu governo ocupa e administra as colinas, apesar de a maioria da comunidade internacional reconhecer o território como sírio.

O Movimento Pelos Direitos do Povo Palestino e Pela Paz no Oriente Médio e a Anistia Internacional também acusam Israel de privar o acesso à água ao povo palestino. Segundo Ribeiro, o estado israelense proibiu a Palestina de construir uma cisterna, pois o armazenamento promovido por ela diminuiria o volume de água que chega ao rio e, consequentemente, a vazão para Israel. Os conflitos pela água não acontecem apenas na escassez do Oriente Médio.

O Brasil possui a maior concentração de água doce do planeta, cerca de 12% das reservas estão aqui. Mesmo assim, muitas populações e locais sofrem para ter acesso ao recurso em quantidade e qualidade adequadas. Desde 2002, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabiliza os conflitos por água no território nacional. No primeiro ano foram registrados 8 conflitos em todo o território brasileiro; no último relatório, referente a 2018, houve um recorde de 276 conflitos por água. O número é crescente desde 2010 e a CPT estima que mais de 2,7 milhões de pessoas foram envolvidas nesses conflitos. Segundo os dados de 2018, as principais vítimas dos conflitos por água foram, respectivamente, ribeirinhos, pescadores, geraizeiros (populações tradicionais do cerrado mineiro), assentados e pequenos produtores. Já os maiores causadores foram mineradoras (50,36% dos conflitos), empresários (26,45%), hidrelétricas (11,96%) e fazendeiros (9,78%).

O número é crescente desde 2010 e a CPT estima que mais de 2,7 milhões de pessoas foram envolvidas nesses embates. Segundo os dados de 2018, as principais vítimas foram ribeirinhos, pescadores, geraizeiros, assentados e pequenos produtores. Já os maiores causadores foram mineradoras (50,36% dos conflitos), empresários (26,45%), hidrelétricas (11,96%) e fazendeiros (9,78%).

Desastre em Brumadinho. Foto: Ibama/Fotos públicas

As regiões com mais conflitos são o Nordeste com 133 casos (48,1%), seguido do Sudeste com 85 (30,80%), e em terceiro o Norte (18,84%). Bahia e Minas Gerais foram os estados mais afetados, com 65 casos (23,55%) cada um. O relatório destaca disputas consequentes da tragédia de Mariana; a luta pela manutenção do modo de vida das 55 comunidades do Baixo São Francisco contra os interesses especulativos e imobiliários; e 30 ações da refinaria Hydro Alunorte contra as comunidades paraenses, do município de Barcarena – que terminou com o assassinato de duas lideranças comunitárias (a empresa nega a associação entre as suas atividades e as ações contra os moradores de Barcarena, e declara que condena firmemente qualquer ação dessa natureza).

Para o autor de “Geografia Política da Água”, o uso inteligente dos recursos disponíveis, alinhado com tecnologias que já existem, seria capaz de suprir as demandas por água de todas as populações. Porém, falta a vontade política e econômica daqueles que detêm o controle das fontes de água potável. “O problema não é a transferência de água, mas o fato de ela estar sendo feita com foco central no lucro e não no compromisso de ofertar uma substância fundamental para a manutenção da vida”.

Mercado líquido

A água também é protagonista de uma batalha simbólica, voltada para decidir se ela é uma mercadoria ou um direito humano. Há dois grandes tipos de negócio para a substância: o comércio de água engarrafada; e os serviços ligados a ela, como a distribuição e o tratamento de esgoto. Em vários países, grandes bancos e corporações como o Deutsche Bank, Credit Suisse, JP Morgan Chase,Goldman Sachs, Allianz e HSBC Bank, entre outros, já compraram vastos hectares de terra com aquíferos e lagos, além dos seus direitos de exploração deles e várias companhias de água (segundo o eco-engenheiro Jo-Shing Yang, autor do livro Solving Global Water Crises) .

Fábrica de engarrafamento de água. Foto: Getty Images

André Martin, professor da Universidade de São Paulo especializado em geopolítica, comenta por que não apoia que esses grupos controlem o recurso: “ Na procura de investimentos de alta lucratividade, as companhias de água associadas ao capital financeiro vão tentar transformar a água em raridade”. Para o professor, parte da escassez que acontece no mundo foi induzida para que houvesse rentabilidade. “Esse sistema vai contra a natureza humana. Foi comprovado empiricamente que os homens são mais solidários na sede do que na fome. Reparte-se mais água que comida”.

O modelo de gestão privada de recursos hídricos existe desde a virada do século XIX para o XX, e teve um boom mundial a partir da década de 1990. Wagner Ribeiro afirma que dados coletados nos últimos 30 anos comprovam cientificamente que a privatização gera aumento do preço da água e perda de qualidade. “É evidente que o principal objetivo do modelo privado é obter lucro e não promover o acesso à água de qualidade e barata. Além disso, é muito difícil que uma empresa vá estimular a redução do uso da água. Pelo contrário, ela quer que você use mais água para poder te cobrar. Então a privatização da água, além de produzir efeitos negativos para o consumidor final também é antiambiental”.

Nova York, Berlim, Paris, Madrid, Buenos Aires e Jacar, na Indonésia, são algumas das 235 localidades que nos últimos 15 anos reestatizaram seus serviços de águas e esgoto após constatarem um péssimo desempenho do setor privado. O geógrafo avalia que essa é uma tendência global, principalmente em países desenvolvidos, e que o Brasil está na contramão. Em fevereiro, o BNDES anunciou que promoverá ainda esse ano leilões de concessão de serviços de saneamento de quatro estados (RJ, AC, AP, AL). Ribeiro argumenta que a gestão estatal é menos corrupta, pois há um controle social maior quando o estado atua, o que resulta em parâmetros mais rigorosos de qualidade da água.

Odor e gosto de terra

A crise recente da Companhia de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae) parece contrapor esse ponto de vista. Em muitas localidades da região metropolitana da capital, a água que saía das torneiras era amarronzada, com odor e gosto de terra. Atualmente, a privatização da estatal está sendo considerada por muitos, inclusive pelo governador Wilson Witzel (PSC), como a única solução para os problemas. O geógrafo rebate essa alternativa e afirma que a crise é na verdade decorrente das ações do governo que encaminha a estatal para a privatização.

Witzel fala à impresa e bebe água após visita a Guandu. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Em 2017, o estado fez um acordo com o Governo Federal que permitia suspender o pagamento dos juros de sua dívida com a União. Uma das exigências era encaminhar a privatização da Cedae. O lucro líquido da empresa registrado em 2018 foi de R$ 832 milhões, quase o triplo do ano anterior, R$ 280 milhões (não foi encontrado o valor do ano passado). Uma investigação, feita pelo UOL, apontou que o Pastor Everaldo (PSC) influenciou a demissão de 54 funcionários, muitos deles técnicos e engenheiros com anos de experiência. O presidente da Cedae, Hélio Cabral, que ocupou o cargo do início de 2019 até fevereiro, também foi indicação política do pastor. O ex-presidente era conselheiro da Samarco indicado pela Vale na época da tragédia de Mariana. Quando assumiu o cargo ele ainda era réu, acusado por homicídio com dolo eventual, mas depois foi inocentado.

Especialistas apontam que o problema foi causado pelo composto orgânico chamado geosmina, produzido por um tipo de alga presente nas águas que abastecem a estação Guandu. Em 2001, o Rio teve o mesmo problema, e foi resolvido em 7 dias pelos técnicos da Cedae com o uso de raspadores que retiravam o lodo, de acordo com o então diretor da Cedae, Flávio Guedes, em entrevista para o UOL.

Na mesma reportagem, ele afirmou que hoje em dia não há recursos para isso e, em nota, a atual gestão da Cedae reconheceu a necessidade de colocar em operação os raspadores. Porém, a companhia afirma que a aquisição desse equipamento faz parte de um plano de dois anos, com investimentos de R$ 700 milhões para Estação de Tratamento Guandu. Apesar dos altíssimos lucros, poucos investimentos foram feitos para garantir a área de proteção ambiental, onde os recursos hídricos são explorados. A empresa também responde a um processo pelo lançamento de esgoto em cinco estações, despejados na Baía de Guanabara e no oceano.

“A situação é crítica. Lamentável, eu diria. Ela ocorre devido a esse processo errado e nada contemporâneo de insistir na privatização, quando na verdade o estado deveria estar mais presente para garantir a qualidade do serviço de água para a população”, argumenta o professor. Ribeiro também desaprova a forma como o país faz uso dos seus recursos hídricos. Segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA), o maior consumo de água no país acontece na irrigação (66,1% do volume total), seguido por uso animal (11,6%), indústria (9,5%) e abastecimento urbano.

O sistema de irrigação que mais cresce no Brasil é o pivô central. O Levantamento da Agricultura Irrigada por Pivôs Centrais quantifica que, em 2017, havia 1.476.101 hectares equipados para irrigação por pivôs centrais. Para o geógrafo, essa é uma prática que acarreta muito desperdício e a agricultura deveria adotar técnicas mais sustentáveis como o plantio direto e o gotejamento. Outra imprudência que aumenta a demanda de água do setor é que muitas espécies são introduzidas em terras que não são propícias para elas. “O cultivo tem que ser analisado à luz da oferta hídrica da localidade. Temos que diminuir o volume de água utilizado na agricultura e fazer escolhas mais adequadas às condições geográficas e ambientais. Há lugares que não são bons para plantar soja ou cana e, mesmo assim, as pessoas plantam porque dá dinheiro. Isso exige muito mais água do que o normal para ter um desenvolvimento adequado e essa operação ser rentável”.

Fonte contaminada

Avião despejando agrotóxicos em uma plantação. Foto: Getty Images

Mais um ponto preocupante é o altíssimo nível de agrotóxicos presente em muitas reservas de água doce, decorrência da água que irriga as plantações e chega aos mananciais. A Agência Pública apresentou dados reveladores do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SISAGUA), que reúne os resultados de testes feitos pelas empresas de abastecimento. Agrotóxicos foram detectados na água de 92% dos municípios testados em 2017. Esse número teve um crescimento constante nos últimos anos e estima-se que em breve não haverá mais água.

São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Manaus, Curitiba, Porto Alegre, Campo Grande, Cuiabá, Florianópolis e Palmas são algumas das capitais com contaminação de múltiplos agrotóxicos. Além dessas dez cidades, mais 1386 municípios detectaram na água todos os 27 pesticidas que foram obrigados por lei a testar. Desses, 16 foram classificados pela Anvisa como altamente tóxicos e 11 estão associados com o desenvolvimento de câncer, malformação fetal, disfunções hormonais e reprodutivas. Na União Europeia, 21 desses agrotóxicos são proibidos.

“A questão é: estamos cuidando da nossa água? Não estamos. Estamos contaminando nossas reservas, ora com lixo, ora com esgoto ou com agrotóxicos. Isso tudo é má gestão”, conclui Ribeiro. “Precisamos discutir seriamente a quantidade de água para cada uso. Devemos pensar um reservatório para a preservação humana e ambiental fundamental, para a geração de energia, lazer, pesca etc. Todas as possibilidades devem ser pensadas à luz dos ciclos naturais da água. Hoje temos tecnologia para quantificar o tipo de atividade econômica que pode ser feita em cada localidade, seja industrial, agrícola ou de consumo populacional. Enquanto não tiver esse tipo de ação, as crises serão recorrentes, quando não muito mais intensas”.

Bom de copo: a quantidade de hidratação ideal

Bom de copo: a quantidade de hidratação ideal

A ideia de que pessoas adultas devem consumir ao menos dois litros de água por dia virou um senso comum. Porém, para uma hidratação ideal é necessário observar o peso, a idade, o tipo e a intensidade da atividade física praticada e até mesmo o clima de onde se vive.

hidratação ideal

Foto: Getty images

Para não restar dúvidas, o ideal é consumir 40 ml por quilo ao dia. Então, uma pessoa de 70 kg deve beber 2,8 litros de água. Se ela vive em um país quente, como o nosso, e ainda é ativa, há a necessidade de aumentar esse volume para 60/65 ml.

Esse número surpreende a maioria das pessoas, mas é bom lembrar que alguns alimentos potencializam a hidratação. Incluir na alimentação diária de 200 a 400 g de vegetais e frutas é um bom hábito, já que têm grande quantidade de água. Alguns chegam a mais de 90%, como o chuchu e a pera.

Outras práticas ajudam a alcançar a hidratação ideal. No trabalho, deixar uma garrafa de água acessível, que possa ser visualizada na mesa do escritório, evita a desidratação ao longo de um dia corrido. Em casa, beber um copo de água logo após ir ao banheiro, é outro hábito que auxilia a reposição. E um alerta importante: idosos devem incluir essas práticas mais vezes ao dia, por terem uma resposta mais lenta do corpo sobre a necessidade de hidratação. Portanto, quanto mais velha é a pessoa, maior deve ser a atenção à quantidade de água ingerida.

Também é preciso ter cuidado com a qualidade da água. A maioria das cidades brasileiras tem tratamento adequado para a água em suas companhias de saneamento básico.

Apesar disso, é sempre bom lembrar que a água da torneira não é para ser ingerida, por causa da presença do cloro usado durante o tratamento. Buscar filtros que contenham carvão ativado é a melhor alternativa e eles devem ser trocados a cada seis meses.

E uma dica interessante: quando há problemas com abastecimento, é o consumo da água gaseificada que pode ser o mais indicado. Como a inserção de gás na água requer um processo industrial adequado, a segurança torna-se praticamente completa.

E o pH?

Discussões nas redes sociais aumentam a busca por “água menos ácida”

Mesmo com informações compartilhadas na internet a respeito, não existe consenso científico sobre o pH alcalino e seus benefícios para a saúde. Os estudos mostram que beber água “mais ácida” não está relacionado com o desenvolvimento de doenças. Talvez a maior prova disso é que o consumo de água com limão em jejum é cada vez mais recomendado pelos médicos. Não há dúvidas de que a água, qualquer que seja, é essencial à saúde.