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Rádio Vozes: música e água

Rádio Vozes: música e água

Não entendo de física quântica nem de ciência, mas já li muito sobre o poder curativo da água e das diferentes composições químicas da lágrima de dor e de alegria. E todos sabemos que o planeta redondo onde vivemos é cheio de água e que nós também somos. Fazendo aqui um exercício de retórica, lógica ou bom senso, penso que se a lua mexe com a maré por que não mexeria conosco? Comigo mexe, e muito. Tenho dias de rasante e de maré cheia.

música e água

O cantor e compositor Gilberto Gil. Foto: Gérard Gaume/Divulgação

Quando a 29HORAS me pediu um texto sobre música e água, eu me lembrei de tudo isso e de um experimento do fotógrafo e pesquisador japonês Masaru Emoto, que fotografou moléculas de água expostas ao som de Mozart, de John Lennon e de heavy metal. As moléculas formavam cristais lindos com a música clássica suave e com “Imagine”, mas com o heavy metal tudo virava uma bagunça.

Eu vivo dizendo que a música transforma. Se somos feitos de 70% de água, é bem capaz de que nossas células, moléculas, ou sei lá o que, sejam mesmo modificadas com a boa música. Gilberto Gil, nosso compositor filósofo mestre pensador, faz essa ponte entre a arte e a ciência de maneira explicita no disco “Quanta”, lançado em 1997. A começar pela linda canção que dá nome ao disco e que tem a participação de Milton Nascimento: “Canto de louvor/De amor ao vento /Vento, arte do ar/Balançando o corpo da flor/Levando o veleiro pro mar…” E nesse mesmo disco, na canção “Água Benta”, ele fala da água como condutora, contando a história de um menino que foi batizado com água poluída: “A água benta que ao bel prazer /Se desmagnetizou / Desconectada do seu poder/ Por um capricho do amor …”

Muitos anos antes, no disco “Louvação”, de 1967, Gil fez com Capinan a canção “Água de Meninos”, que é um bairro histórico de Salvador. Um lugar abrigado de frente para o mar onde funcionava uma feira popular e que sofreu um incêndio histórico nos anos 1960. Nos versos de Capinan, aparecem as águas do mar e das lágrimas. De Dominguinhos e Anastácia Gilberto, Gil gravou “Tenho Sede”, uma linda canção de amor: “…Minha garganta pede um pouco de água / E meus olhos pedem teu olhar…”

Não sei se os efeitos de Mozart no cristal de água podem ser comprovados pela ciência, mas como nosso assunto é música e poesia sigo acreditando que ouvir uma seleção de maravilhas com Gilberto Gil, Dominguinhos e Milton Nascimento só pode mesmo fazer bem.

E pra reforçar termino com mais um pedacinho da letra de “Água Benta”, quando o autor justifica a confusão que o batismo com água poluída fez na vida do menino: “…Talvez por mero defeito na ligação/Sutil entre a essência e a representação/Verbal que tem que fazer todo coração/Mortal ao balbuciar sua oração..”

Do poder das palavras e de um bom copo de água fresca não duvidamos. Muito menos de Gilberto Gil.

Rádio Vozes: uma trilha sonora para o Carnaval de diferentes gerações

Rádio Vozes: uma trilha sonora para o Carnaval de diferentes gerações

Fevereiro é mês de folia! São Paulo ferve com um dos carnavais de rua mais importantes do país, quem diria! Blocos, bailes, fantasias, uma animação que não acaba na quarta-feira e em algumas partes do país começa com as primeiras temperaturas mais altas. Recife e Salvador vivem uns três meses de Carnaval, pré e pós-fevereiro. E minha coluna desta edição traz uma playlist temática.

Vamos começar com os clássicos: as marchas-rancho, um gênero tão lindo quanto antigo. Serviam de trilha para os ranchos que, lentamente, porém sincopados, saíam para a festa. Um exemplo é “Estrela do Mar”, que pode ser ouvida com Dalva de Oliveira, com Maria Bethânia e com Beth Carvalho. A letra é primorosa e conta a história de amor entre um grão de areia e uma estrela. Pura poesia nessa composição de Marino Pinto e Paulo Soledade.

O cantor e compositor Zé Keti. Foto: Reprodução / Wiki Commons

“Máscara Negra”, de Zé Keti, aquela história sedutora e romântica do “vou beijar-te agora, não me leve a mal…” é outra marcha-rancho famosa. “As Pastorinhas”, talvez a mais conhecida, de Noel Rosa e João de Barro, que conta dos versos de amor cantados para a lua. Esse é o Carnaval das colombinas e pierrôs, do lança-perfume… aquele do sujeito de camisa listrada que só volta depois da folia. Bom, talvez isso ainda aconteça. Sei de um amigo que nos anos 1980 acordou em um telhado em Salvador… viva a juventude!!!

Depois dos clássicos, vamos para os “Muitos Carnavais” de Caetano, que não só regravou maravilhas como escreveu outras tantas. Quem não canta junto “Chuva, Suor e Cerveja”? Esse disco dá um baile inteiro. Foi lançado em 1977. Hoje, no Carnaval paulistano, um dos maiores blocos foi criado em homenagem a ele, o Tarado ni Você, que faz a folia toda com as composições desse baiano tão genial quanto diverso em sua obra.

Para um Carnaval contemporâneo, vou falar aqui da Charanga do França, que também é um bloco de rua. Sai por Santa Cecilia sob a batuta do músico Thiago França. Fizemos um programa especial com ele na Rádio Vozes que está disponível no app dentro do espaço do Vozes do Brasil. Thiago é saxofonista e compositor e tem uma vivência de charangas na sua infância. São pequenas bandas só de instrumentos de sopro. Ele adaptou o conceito para o Carnaval e até dá aulas para entrar no cortejo. Tem disco nas plataformas digitais.

Daqui do meu sossego, espero ter colaborado com a sua farra. Muito boa viagem e divirta-se sem moderação!

Rádio Vozes: Almério é a dica para este verão

Rádio Vozes: Almério é a dica para este verão

Estamos em pleno verão aqui na América do Sul. Muitos estão aproveitando as férias, o descanso e o ócio tão desejados. Separando material para essa temporada na Rádio Vozes, achei um poema de Antônio Cicero, filósofo e letrista de grandes canções, que fez parcerias com Adriana Calcanhotto, Marina Lima (sua irmã) e a mais recente com Arthur Nogueira, cantor e compositor paraense que dedicou um disco inteiro à obra do poeta. O poema se chama “Presente”, foi dedicado a Eucanaã Ferraz e publicado no livro “Porventura”, de 2012.

“Por que não me deitar sobre este
gramado, se o consente o tempo,
e há um cheiro de flores e verde
e um céu azul por firmamento
e a brisa displicentemente
acaricia-me os cabelos?
E por que não, por um momento,
nem me lembrar que há sofrimento
de um lado e de outro e atrás e à frente
e, ouvindo os pássaros ao vento
sem mais nem menos, de repente,
antes que a idade breve leve
cabelos, sonhos, devaneios,
dar a mim mesmo este presente?”

Álbum “Desempena”, do cantor pernambucano Almério. Foto: Divulgação

Dá vontade de deitar-se na grama, na areia quente da praia, na varanda, em uma rede, no quarto no meio do caos da cidade, ouvir boa música e ter pensamentos bons.

Sim, porque estamos vivendo dias difíceis. O horror nos assombra cotidianamente. Mas, aqui e em todo e qualquer lugar onde eu tenha voz, eu digo e repito: a arte, a poesia, a delicadeza, essas coisas todas é que nos salvam e dão força para enfrentarmos a sombra. Seja de que tamanho for.

Meu encantamento agora é pela nova música que vem de Pernambuco. Jovens cantores e compositores que trazem a lírica do cordel, dos versos livres e daquela verve sedutora e peculiar com delicioso sotaque.

Almério talvez seja o mais conhecido deles. Tem se apresentado ao lado de artistas como Zélia Duncan e Ceumar. A banda é maravilhosa, a presença de palco é um assombro. Não por acaso acho que lembram os artistas libertários e transformadores dos anos 1970. Isabela Moraes, uma poeta poderosa. Jovem e intensa, tem a tradição do forró no seu som, mas no canto, a braveza da sertaneja, o lirismo dos desafios poéticos em rimas ricas, estrofes e mais estrofes. O princípio é o verbo. Está lançando agora seu primeiro disco, mas já tem músicas gravadas por Mariana Aydar.

E Martins, autor de uma das músicas mais lindas cantadas por Almério, “Queria Ter Pra te Dar”, que lançou no final do ano (2019) seu primeiro solo. Dono de um timbre muito peculiar, de um violão bonito, ele também traz em suas letras essa proposta de Antônio Cícero. Cabelos, sonhos, devaneios…

Anote esses nomes e escute assim que possível. Na Rádio Vozes, estão todos no ar. Cícero, inclusive, porque gravei para esse verão várias vinhetas poéticas para embelezar ainda mais o seu dia. Aproveite.

Rádio Vozes: tempo, tempo, tempo

Rádio Vozes: tempo, tempo, tempo

Celebrar é ritualizar a passagem do tempo. Eu acabo de completar 21 anos de Vozes do Brasil, a 29HORAS completa 10 anos, estamos chegando em 2020 no calendário cristão, e no judaico já estamos em 5780.

“Tempo, tempo, tempo, um dos deuses mais lindos”, diz a canção. “Tempo bom, tempo ruim”, diz uma outra, “Rainha dos Raios”. E isso é importante perceber, essa alternância do bom e do ruim, da maré alta e baixa. E lembrar que na baixa tem marisco, nem tudo está sempre ruim o tempo todo. Tem a hora do bom e o bom a gente celebra.

Show do Vozes do Brasil no Sesc Vila Mariana

A foto que abre essa coluna foi tirada no Sesc Vila Mariana no comecinho dos anos 2000, quando eu fazia o programa ao vivo e com auditório. Já passamos por vários formatos. Do diário ao vivo até o digital que hoje distribuo pelo aplicativo Rádio Vozes.

Mas tem uma coisa que tenho amado fazer e que tem sido o mais importante na minha atuação profissional. Dar aulas. Ensinar e aprender sobre linguagem é emocionante.

Tenho mais de 30 anos de trabalho em rádio. Adoro conhecer rádios pequenas, comunitárias, polos de difusão pelo interior do país. E quando falo interior, não é necessariamente longe da água. Fui pra Ilha do Marajó uns anos atrás a convite da Caravana do Esporte e a experiência foi maravilhosa. Distribuí gravadores para jovens e adolescentes, fizemos reuniões de pauta, gravamos, editamos e colocamos no ar um programa de domingo ao vivo com um grupo de carimbó dentro do estúdio. Falamos sobre cultura, mas muito mais sobre questões ambientais que nunca haviam passado pela cabeça deles. Lixo, esgoto, um matadouro na beira do rio.

E esse ano, agora em novembro, fui convidada a ministrar uma oficina no Festival Arte na Usina. Uma iniciativa linda, que ocupa o município de Água Preta, na zona da mata de Pernambuco, a partir de uma usina de cana desativada. Há 5 anos, a fazenda abriga obras de arte, instalações espalhadas pelo Jardim Botânico, oficinas das mais diversas e uma rádio comunitária chamada Rádio Catimbó.

Criamos juntos o programa Vozes da Nação. Entrevistas, depoimentos, docs sonoros, especiais musicais. Tudo foi para o app Rádio Vozes e compartilhado com a turma da oficina.

Conversamos muito sobre linguagem. Como passar a mensagem que se deseja e atingir o público que se quer? Como falar para seus iguais? Como sair do conforto e buscar novos públicos? Eles me trouxeram um programa que é campeão de audiência em Recife chamado Bandeira 2. O locutor é um mestre! Conta atrocidades, crimes, assaltos, mortes, muita violência, como se fosse um narrador de futebol. Primeiro, a gente se assusta com o conteúdo, 5 minutos depois está rindo por causa da forma, uma loucura. Imaginei o mesmo formato levando conteúdo poético, educador, formador… seria revolucionário!

Aqui vai o link para o resultado da Oficina de Rádio 2019 do Festival Arte na Usina disponível na Rádio Vozes.

E se quiser me chamar para uma Oficina, mande uma mensagem por aqui. Feliz 2020!

Rádio Vozes: a música e as estações do ano

Rádio Vozes: a música e as estações do ano

Uma das minhas coletâneas preferidas se chama “Jazz for a Rainy Afternoon”. Achei acertadíssima a escolha dos temas e a relação com o título tão poético quanto inspirador. Recebi num disco promocional nos anos 90, quando fazia programação para a boa e velha Rádio Eldorado FM.

Dona Onete, cantora e compositora paraense de carimbó. Foto: Divulgação

O disco não tenho mais, mas o conceito ficou impresso em mim e sigo fazendo minhas listas de jazz para dias chuvosos, para dias solares, para dias quentes, para dias frios…

O verão aqui para nossos lados tropicais está chegando e podemos fazer a mesma brincadeira alterando a estação. É quase lugar comum ouvir samba, axé, e fazer uma mega lista de forró bem dançante para celebrar a chegada da temporada das praias. Por outro lado, fico pensando em temas “refrescantes”, ao menos para mim. Música africana com guitarras harmoniosas e vozes femininas, a música francesa charmosíssima de Henry Salvador, o carimbó chamegado de Dona Onete de Belém do Pará… Quase todas me remetem ao mar… Uma seleção contemporânea e brasileira tem que ter Silva com seu “Entardecer” e Mahmundi com “Eu Quero Ser o Mar”. Uma seleção de hits clássicos do calor chegando tem que ter “Anunciação” de Alceu Valença e poderia ter “Uma Noite e Meia” com Marina, mas eu prefiro “Criança”, que tem uma levada que é da praia e um clipe maravilhoso. Aliás, Marina Lima é playlist de praia para toda uma vida.

Para falar de mar mesmo tem Adriana Calcanhotto com “Ogunte”, que é forte, atual, um manifesto; tem Dorival Caymmi sempre; tem Maria Bethania falando de amor e medo em uma canção que reúne dois compositores muito populares em uma só canção: Jorge Vercilo e Ana Carolina em “Eu Que Não sei Quase Nada do Mar”.

Para a primavera também temos muitas canções, uma das mais bonitas e bem pouco conhecida é de José Miguel Wisnik, aqui vai um pedaço da letra: “A primavera é quando ninguém mais espera / E desespera tudo em flor / A primavera é quando acredita / E ressuscita por amor…”

Para o outono, Ed Motta fez a linda “Outono no Rio” que faz uma deliciosa referência a “April in Paris” cantada por Ella Fitzgerald. Jazzy, meio bossa, meio friozinho… passeando pela Guanabara, um luxo de trilha.

Agora, se você vai aproveitar o verão aqui para fugir para o frio, esquiar, se enrolar em cobertores, volte para o “Jazz for a Rainy Afternoon” e se aprofunde em Thelonius Monk, John Coltrane, Miles Davis, nada mais aconchegante do que uma balada com esses monstros. Não falo de free jazz, be bop, estilos que podem ser bons para descer a montanha de snow board… Eu falo de balada mesmo. Para depois do esqui.

Enfim, eu vou para praia e levo minha seleção. Siga seu roteiro e leve a música junto. Na sua memória afetiva, elas vão fazer uma enorme diferença.