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Uma das maiores especialistas do Brasil no assunto, Marussia Whately alerta sobre a crise hídrica

por | mar 6, 2020 | Lifestyle, Sustentabilidade | 0 Comentários

Não dá para falar sobre água sem citar Marussia Whately, uma das grandes referências mundiais sobre o assunto. Convivendo desde pequena com movimentos pela conservação dos mananciais da represa de Guarapiranga, em São Paulo, onde cresceu, ela logo cedo percebeu seu talento para liderar e engajar grupos, além de transmitir informações técnicas de forma clara para a população.

Casas no leito do Rio Amazonas. Foto: Getty Images

Formada em arquitetura e urbanismo pelo Mackenzie, Marussia se destaca por passagens inovadoras: foi a mais jovem coordenadora do ISA – Instituto Socioambiental, onde atuou por mais de dez anos; participou do Programa Municípios Verdes, parceria entre a sociedade civil e o governo do Pará; e articulou o movimento Aliança pela Água, com mais de 60 organizações, para discutir a grande crise hídrica de São Paulo em 2014. Autora de “O Século da Escassez – Uma Nova Cultura de Cuidado com a Água: Impasses e Desafios”, que escreveu em parceria com Maura Campanili, Marussia está agora à frente do Instituto Água e Saneamento, que visa aumentar o acesso ao esgoto de forma mais rápida e beneficiando mais gente.

Por que, mesmo sendo uma questão crucial para a saúde da população e do meio ambiente, é tão difícil avançar com o saneamento no Brasil?

Saneamento é um tema complexo, pois tem várias dimensões. Assim como o acesso à água, ele é um direito humano, o que responsabiliza os países; ele é política pública, alçada de governo federal, estadual e municipal, e é também prestação de serviço. Envolve água, esgoto, lixo, águas pluviais, enchentes e todos os processos ligados a cada uma dessas questões, todas relacionadas à saúde. Como é um tema complexo, não tem um único responsável nem uma única solução, o que dificulta avançar. Ainda falta muito até chegarmos no ponto ideal onde os governos economizam com os benefícios, pois estamos atrasados desde a parte do esgoto. Há um enorme déficit na prestação de serviços, com 48% da população sem coleta básica. O maior problema das crianças e adolescentes do Brasil, segundo dados da UNICEF, é a falta de saneamento, visto que cerca de 14 milhões deles vivem ao lado de valas abertas e rios sujos.

Existe algum avanço em relação às formas de implementar o esgoto?

É necessária uma revisão profunda do tema. A forma linear como tratamos o esgoto no Brasil é uma ilusão, é o modelo clássico, onde se pega a água do manancial que está longe da cidade, perde-se parte dessa água no meio do caminho, trata-se essa água e a distribui para as casas, perdendo mais uma quantia. Ainda tem o esgoto, que não é todo coletado, nem tratado, e parte dele vai parar nos rios – tanto que todos os rios das cidades brasileiras têm poluição por dejetos. E mesmo a parte do esgoto que foi devolvido não desaparece, ele vai para a cidade de baixo, vai poluir o mar… Por isso, precisamos de uma revisão urgente.

O que é necessário fazer?

Uma concepção mais atualizada sobre o esgoto, assim como temos com o lixo. Falta olhar para ele não só como dejeto, mas também como recurso natural que pode ser reposto para a atmosfera. Podemos ter cadeias de serviços separadas, e a água não precisa necessariamente estar ligada ao esgoto. Falta enxergarmos o esgoto de forma circular, para que ele seja reaproveitado, e não descartado. E daí podem surgir novos negócios. Um exemplo é o fósforo, recurso finito na natureza e que se encontra no lodo do esgoto. Por que não desenvolvermos sua extração? Também é possível ter adubo vindo do esgoto, energia… E assim vão sobrando menos partes a serem descartadas. É o mesmo princípio da reciclagem de lixo.

Qual é a grande causa da crise hídrica em algumas regiões do Brasil, tendo em vista que o Brasil parece ter água de sobra?

O Brasil de fato possui 12% da água superficial do planeta e, mesmo assim, algumas cidades, como São Paulo e Rio, já vivem um estresse hídrico. Não dá para dizer que o país está numa situação confortável. Uma das razões é que grande parte da água está na Amazônia e a maior concentração de população e indústrias está no Nordeste, Sudeste e Sul. Não há um bom planejamento para reduzir o uso da água.

Outro aspecto é que, apesar de existir tanta água, boa parte não tem qualidade para se reutilizada. Hoje temos quatro principais fontes de poluição de água: esgoto e efluentes urbanos; fertilizantes e agrotóxicos; processos de mineração; e desmatamento. Essas “ameaças” ocorrem de formas diferentes em cada região. É essencial que a gente crie, com urgência, uma nova cultura de cuidado com a água. É importante partir do princípio que, desde que começou a chover na Terra, a água é sempre a mesma, ela vai se renovando, e estamos acabando com os espaços onde ela se renova, como a várzea, os rios, as geleiras.

O aquecimento global tem relação com esse estresse hídrico?

Totalmente. No contexto de um processo global de mudança do clima, os extremos têm sido mais intensos. Como diz o professor Antonio Nobre em seu livro “O Futuro Climático na Amazônia”, o clima está ficando menos amigo. Nos últimos 14 mil anos, as pessoas compartilhavam o “saber” do clima, sabiam quando ia chover, fazer frio ou calor, o que favorecia a agricultura, por exemplo. Hoje, não, o que causa muita insegurança. A crise hídrica é mundial, tanto que nos últimos cinco anos o Fórum Econômico Mundial vem apontando o problema como um dos maiores riscos para a humanidade.

Além dos governos, a sociedade civil e as empresas têm responsabilidade em relação ao cuidado com a água?

Todos somos responsáveis. Mesmo a água sendo um direito humano, o cuidado com ela é um dever de todos. E eu acredito que possamos mudar nossa cultura e comportamento. Um exemplo é o que aconteceu em São Paulo após a grande crise hídrica de 2014, quando chegamos à beira de um colapso. Houve investimento em diferentes escalas para o uso mais consciente e inteligente da água, de moradores a condomínios e indústrias. Por causa do uso consciente, o consumo de água na cidade hoje é 10% menor do que era antes da crise.

Você vê as novas gerações mais conscientes com a questão da escassez?

Sim, mas não podemos generalizar. Uma criança que estuda em uma boa escola particular em São Paulo tem uma visão de futuro muito diferente do que a criança que vive ao lado de uma vala de esgoto aberto, onde o problema é o seu presente. Essa primeira criança, privilegiada, entende que o seu futuro está ameaçado; então ela tem medo, sabe que as coisas precisam mudar e cobra das gerações anteriores a solução para o mal que causaram. Daí surgem lideranças como a Greta Thunberg, que é um fenômeno maravilhoso. Mas também temos que tomar cuidado para educar e conscientizar essas crianças sem causar pânico e depressão, que pode ser muito ruim e pouco produtivo.

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