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Crescem os conflitos mundiais pela água

por | mar 4, 2020 | Lifestyle | 0 Comentários

As disputas em torno da água estão se alastrando, tanto no Brasil como no exterior. Elas acontecem de diferentes formas, são confrontos entre nações, modelos de gestão, grupos de interesse e classes sociais. Quando esses embates reduzem o acesso de populações à água de qualidade, é de se esperar que haja a propagação de doenças e, muitas vezes, o aumento do número de mortos. Frente a essa realidade, segue a questão: é possível assegurar que todos tenham acesso a esse recurso?

Entre os desafios, está o fato de que aproximadamente 2,1 bilhões de pessoas (29% da população mundial) não têm acesso à água potável em casa, segundo dados do último relatório da OMS em parceria com a UNICEF. Apresentada em 2017, a pesquisa também aponta que cerca de 4,5 bilhões de pessoas (55%) carecem de um sistema seguro de saneamento. Em um balanço de 17 anos, iniciado em 2000, o estudo mostra que o acesso a serviços de água potável e a saneamento seguro tiveram uma progressão média anual de respectivamente 0,48% e 1,02%.

Foto: Getty Images

Água, um campo minado

O Water, Peace and Security é uma ferramenta que mapeia a possibilidade de conflitos por água no Sudeste Asiático, no Oriente Médio e em todo o continente africano. Patrocinada pelo governo holandês, a plataforma foi apresentada para o conselho de segurança da ONU antes de seu recente lançamento. Ela prevê altos índices de conflito por água no Iraque, Irã, Mali, Nigéria, Índia e Paquistão ainda este ano.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, nas Colinas de Golã. Foto: GPO/Fotos públicas

“É importante dizer que a guerra por água não é uma guerra clássica. Ela ocorre em uma luta por posições estratégicas para manter o acesso aos recursos hídricos”, aponta Wagner Costa Ribeiro, professor de geografia da USP e autor do livro “Geografia Política da Água”. Um exemplo é a disputa pelas Colinas de Golã, responsável por um terço do abastecimento de água de Israel. O país tomou a região da Síria em 1967 e, desde então, seu governo ocupa e administra as colinas, apesar de a maioria da comunidade internacional reconhecer o território como sírio.

O Movimento Pelos Direitos do Povo Palestino e Pela Paz no Oriente Médio e a Anistia Internacional também acusam Israel de privar o acesso à água ao povo palestino. Segundo Ribeiro, o estado israelense proibiu a Palestina de construir uma cisterna, pois o armazenamento promovido por ela diminuiria o volume de água que chega ao rio e, consequentemente, a vazão para Israel. Os conflitos pela água não acontecem apenas na escassez do Oriente Médio.

O Brasil possui a maior concentração de água doce do planeta, cerca de 12% das reservas estão aqui. Mesmo assim, muitas populações e locais sofrem para ter acesso ao recurso em quantidade e qualidade adequadas. Desde 2002, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabiliza os conflitos por água no território nacional. No primeiro ano foram registrados 8 conflitos em todo o território brasileiro; no último relatório, referente a 2018, houve um recorde de 276 conflitos por água. O número é crescente desde 2010 e a CPT estima que mais de 2,7 milhões de pessoas foram envolvidas nesses conflitos. Segundo os dados de 2018, as principais vítimas dos conflitos por água foram, respectivamente, ribeirinhos, pescadores, geraizeiros (populações tradicionais do cerrado mineiro), assentados e pequenos produtores. Já os maiores causadores foram mineradoras (50,36% dos conflitos), empresários (26,45%), hidrelétricas (11,96%) e fazendeiros (9,78%).

O número é crescente desde 2010 e a CPT estima que mais de 2,7 milhões de pessoas foram envolvidas nesses embates. Segundo os dados de 2018, as principais vítimas foram ribeirinhos, pescadores, geraizeiros, assentados e pequenos produtores. Já os maiores causadores foram mineradoras (50,36% dos conflitos), empresários (26,45%), hidrelétricas (11,96%) e fazendeiros (9,78%).

Desastre em Brumadinho. Foto: Ibama/Fotos públicas

As regiões com mais conflitos são o Nordeste com 133 casos (48,1%), seguido do Sudeste com 85 (30,80%), e em terceiro o Norte (18,84%). Bahia e Minas Gerais foram os estados mais afetados, com 65 casos (23,55%) cada um. O relatório destaca disputas consequentes da tragédia de Mariana; a luta pela manutenção do modo de vida das 55 comunidades do Baixo São Francisco contra os interesses especulativos e imobiliários; e 30 ações da refinaria Hydro Alunorte contra as comunidades paraenses, do município de Barcarena – que terminou com o assassinato de duas lideranças comunitárias (a empresa nega a associação entre as suas atividades e as ações contra os moradores de Barcarena, e declara que condena firmemente qualquer ação dessa natureza).

Para o autor de “Geografia Política da Água”, o uso inteligente dos recursos disponíveis, alinhado com tecnologias que já existem, seria capaz de suprir as demandas por água de todas as populações. Porém, falta a vontade política e econômica daqueles que detêm o controle das fontes de água potável. “O problema não é a transferência de água, mas o fato de ela estar sendo feita com foco central no lucro e não no compromisso de ofertar uma substância fundamental para a manutenção da vida”.

Mercado líquido

A água também é protagonista de uma batalha simbólica, voltada para decidir se ela é uma mercadoria ou um direito humano. Há dois grandes tipos de negócio para a substância: o comércio de água engarrafada; e os serviços ligados a ela, como a distribuição e o tratamento de esgoto. Em vários países, grandes bancos e corporações como o Deutsche Bank, Credit Suisse, JP Morgan Chase,Goldman Sachs, Allianz e HSBC Bank, entre outros, já compraram vastos hectares de terra com aquíferos e lagos, além dos seus direitos de exploração deles e várias companhias de água (segundo o eco-engenheiro Jo-Shing Yang, autor do livro Solving Global Water Crises) .

Fábrica de engarrafamento de água. Foto: Getty Images

André Martin, professor da Universidade de São Paulo especializado em geopolítica, comenta por que não apoia que esses grupos controlem o recurso: “ Na procura de investimentos de alta lucratividade, as companhias de água associadas ao capital financeiro vão tentar transformar a água em raridade”. Para o professor, parte da escassez que acontece no mundo foi induzida para que houvesse rentabilidade. “Esse sistema vai contra a natureza humana. Foi comprovado empiricamente que os homens são mais solidários na sede do que na fome. Reparte-se mais água que comida”.

O modelo de gestão privada de recursos hídricos existe desde a virada do século XIX para o XX, e teve um boom mundial a partir da década de 1990. Wagner Ribeiro afirma que dados coletados nos últimos 30 anos comprovam cientificamente que a privatização gera aumento do preço da água e perda de qualidade. “É evidente que o principal objetivo do modelo privado é obter lucro e não promover o acesso à água de qualidade e barata. Além disso, é muito difícil que uma empresa vá estimular a redução do uso da água. Pelo contrário, ela quer que você use mais água para poder te cobrar. Então a privatização da água, além de produzir efeitos negativos para o consumidor final também é antiambiental”.

Nova York, Berlim, Paris, Madrid, Buenos Aires e Jacar, na Indonésia, são algumas das 235 localidades que nos últimos 15 anos reestatizaram seus serviços de águas e esgoto após constatarem um péssimo desempenho do setor privado. O geógrafo avalia que essa é uma tendência global, principalmente em países desenvolvidos, e que o Brasil está na contramão. Em fevereiro, o BNDES anunciou que promoverá ainda esse ano leilões de concessão de serviços de saneamento de quatro estados (RJ, AC, AP, AL). Ribeiro argumenta que a gestão estatal é menos corrupta, pois há um controle social maior quando o estado atua, o que resulta em parâmetros mais rigorosos de qualidade da água.

Odor e gosto de terra

A crise recente da Companhia de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae) parece contrapor esse ponto de vista. Em muitas localidades da região metropolitana da capital, a água que saía das torneiras era amarronzada, com odor e gosto de terra. Atualmente, a privatização da estatal está sendo considerada por muitos, inclusive pelo governador Wilson Witzel (PSC), como a única solução para os problemas. O geógrafo rebate essa alternativa e afirma que a crise é na verdade decorrente das ações do governo que encaminha a estatal para a privatização.

Witzel fala à impresa e bebe água após visita a Guandu. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Em 2017, o estado fez um acordo com o Governo Federal que permitia suspender o pagamento dos juros de sua dívida com a União. Uma das exigências era encaminhar a privatização da Cedae. O lucro líquido da empresa registrado em 2018 foi de R$ 832 milhões, quase o triplo do ano anterior, R$ 280 milhões (não foi encontrado o valor do ano passado). Uma investigação, feita pelo UOL, apontou que o Pastor Everaldo (PSC) influenciou a demissão de 54 funcionários, muitos deles técnicos e engenheiros com anos de experiência. O presidente da Cedae, Hélio Cabral, que ocupou o cargo do início de 2019 até fevereiro, também foi indicação política do pastor. O ex-presidente era conselheiro da Samarco indicado pela Vale na época da tragédia de Mariana. Quando assumiu o cargo ele ainda era réu, acusado por homicídio com dolo eventual, mas depois foi inocentado.

Especialistas apontam que o problema foi causado pelo composto orgânico chamado geosmina, produzido por um tipo de alga presente nas águas que abastecem a estação Guandu. Em 2001, o Rio teve o mesmo problema, e foi resolvido em 7 dias pelos técnicos da Cedae com o uso de raspadores que retiravam o lodo, de acordo com o então diretor da Cedae, Flávio Guedes, em entrevista para o UOL.

Na mesma reportagem, ele afirmou que hoje em dia não há recursos para isso e, em nota, a atual gestão da Cedae reconheceu a necessidade de colocar em operação os raspadores. Porém, a companhia afirma que a aquisição desse equipamento faz parte de um plano de dois anos, com investimentos de R$ 700 milhões para Estação de Tratamento Guandu. Apesar dos altíssimos lucros, poucos investimentos foram feitos para garantir a área de proteção ambiental, onde os recursos hídricos são explorados. A empresa também responde a um processo pelo lançamento de esgoto em cinco estações, despejados na Baía de Guanabara e no oceano.

“A situação é crítica. Lamentável, eu diria. Ela ocorre devido a esse processo errado e nada contemporâneo de insistir na privatização, quando na verdade o estado deveria estar mais presente para garantir a qualidade do serviço de água para a população”, argumenta o professor. Ribeiro também desaprova a forma como o país faz uso dos seus recursos hídricos. Segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA), o maior consumo de água no país acontece na irrigação (66,1% do volume total), seguido por uso animal (11,6%), indústria (9,5%) e abastecimento urbano.

O sistema de irrigação que mais cresce no Brasil é o pivô central. O Levantamento da Agricultura Irrigada por Pivôs Centrais quantifica que, em 2017, havia 1.476.101 hectares equipados para irrigação por pivôs centrais. Para o geógrafo, essa é uma prática que acarreta muito desperdício e a agricultura deveria adotar técnicas mais sustentáveis como o plantio direto e o gotejamento. Outra imprudência que aumenta a demanda de água do setor é que muitas espécies são introduzidas em terras que não são propícias para elas. “O cultivo tem que ser analisado à luz da oferta hídrica da localidade. Temos que diminuir o volume de água utilizado na agricultura e fazer escolhas mais adequadas às condições geográficas e ambientais. Há lugares que não são bons para plantar soja ou cana e, mesmo assim, as pessoas plantam porque dá dinheiro. Isso exige muito mais água do que o normal para ter um desenvolvimento adequado e essa operação ser rentável”.

Fonte contaminada

Avião despejando agrotóxicos em uma plantação. Foto: Getty Images

Mais um ponto preocupante é o altíssimo nível de agrotóxicos presente em muitas reservas de água doce, decorrência da água que irriga as plantações e chega aos mananciais. A Agência Pública apresentou dados reveladores do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SISAGUA), que reúne os resultados de testes feitos pelas empresas de abastecimento. Agrotóxicos foram detectados na água de 92% dos municípios testados em 2017. Esse número teve um crescimento constante nos últimos anos e estima-se que em breve não haverá mais água.

São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Manaus, Curitiba, Porto Alegre, Campo Grande, Cuiabá, Florianópolis e Palmas são algumas das capitais com contaminação de múltiplos agrotóxicos. Além dessas dez cidades, mais 1386 municípios detectaram na água todos os 27 pesticidas que foram obrigados por lei a testar. Desses, 16 foram classificados pela Anvisa como altamente tóxicos e 11 estão associados com o desenvolvimento de câncer, malformação fetal, disfunções hormonais e reprodutivas. Na União Europeia, 21 desses agrotóxicos são proibidos.

“A questão é: estamos cuidando da nossa água? Não estamos. Estamos contaminando nossas reservas, ora com lixo, ora com esgoto ou com agrotóxicos. Isso tudo é má gestão”, conclui Ribeiro. “Precisamos discutir seriamente a quantidade de água para cada uso. Devemos pensar um reservatório para a preservação humana e ambiental fundamental, para a geração de energia, lazer, pesca etc. Todas as possibilidades devem ser pensadas à luz dos ciclos naturais da água. Hoje temos tecnologia para quantificar o tipo de atividade econômica que pode ser feita em cada localidade, seja industrial, agrícola ou de consumo populacional. Enquanto não tiver esse tipo de ação, as crises serão recorrentes, quando não muito mais intensas”.

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