logo
logo
Dia do Índio: Confira a entrevista com Sônia Guajajara

Dia do Índio: Confira a entrevista com Sônia Guajajara

Sônia Guajajara é uma das maiores lideranças indígenas e ambientais do país. Em 2018, ganhou notoriedade ao se candidatar a vice-presidente pelo PSOL na chapa encabeçada por Guilherme Boulos.  Foi a primeira vez no Brasil que uma pessoa de origem indígena concorreu ao cargo.

Natural da Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, Sônia adota o nome de seu povo, os Guajajaras, um dos grupos indígenas mais numerosos do Brasil. Na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), graduou-se em Letras, Enfermagem e fez Pós em Educação Especial.

Em quase duas décadas de luta pelos direitos das populações originárias, Sônia ocupa cargos de destaque em diferentes organizações e movimentos. Entre eles, a Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), onde é coordenadora executiva.

Sônia Guajajara também se destaca no cenário internacional com voz no Conselho de Direitos Humanos da ONU, onde levou denúncias à Cúpula do Clima e ao Parlamento Europeu. No início deste ano, acompanhou a diretora Petra Costa, indicada ao Oscar de Melhor Documentário por “Democracia em Vertigem”, no almoço oferecido para os finalistas do prêmio.

Acompanhe a entrevista com a ativista a seguir:

Sonia Guajajara/ foto de Fedrico Zuvire

Conte-nos sobre a Terra Indígena Araribóia, onde você cresceu.

O território Araribóia é uma área de Floresta Amazônica que tem uma diversidade muito grande de animais, plantas e gente. Mas com o tempo, foi sendo totalmente destruída pela exploração ilegal da madeira e acabou fatalmente devastada. Houve incêndios e grandes queimadas.

Hoje a região está muito diferente de quando eu cresci. Está bem mais desmatada. Derrubaram muitas árvores e plantas que havia por lá quando eu era criança. Os cedros, ipês, jaborandis, cumarus, hoje não existem mais. Se existem, são pequenas, novinhas e crescendo ainda.

Como foi quando você se mudou de lá?

Com 14 anos eu recebi um convite da FUNAI de Imperatriz (MA) para estudar em Minas Gerais. Naquele tempo, eu nunca tinha saído de minha região, só tinha ido para municípios próximos. Não conhecia cidades grandes, mas eu tinha muita vontade de ir.

Sempre quis viajar e estudar, mas para mim era praticamente impossível. Naquele tempo, para sair de casa, tinha que ir com algum parente e eu não tinha ninguém da família, nenhum apoio ou condição financeira para isso. Então, não tinha muita perspectiva de sair dali.

Quando recebi esse convite, não tive dúvidas. Quando falei que queria ir para lá e estudar foi uma surpresa muito grande para minha família. Depois que eu insisti, meu pai me disse que poderia ir, mas se eu não gostasse, eles estariam ali para me receber de volta. E aí, na mesma hora, eu arrumei a minha malinha e já fui. Não era tempo para pensar e decidir, era o tempo para arrumar as coisas e viajar.

Como foi o período em Minas Gerais?

Fui para um colégio interno agrícola, ficava na região metropolitana de Belo Horizonte. Quando eu cheguei lá foi uma surpresa muito grande descobrir que as pessoas não conheciam indígenas. As pessoas me tratavam com muito carinho e cuidado, numa boa intenção, mas também porque eu era uma novidade.

Mesmo Minas Gerais tendo povos indígenas, e muitos como tem hoje, as pessoas daquela escola e daquele lugar não conheciam nada sobre a existência deles. Então, eu fui recebida com surpresa por ser indígena e ter chegado ali, mas eu também sentia um certo estranhamento, e me perguntava: “Por que eu causo estranheza ao chegar nos lugares?”

Eu não tinha essa noção de que as pessoas não conheciam os indígenas, era a primeira vez que saía da minha região. Mas me adaptei muito rápido, fiz boas amizades e fiquei os três anos de magistério. Foi uma época muito boa apesar de ser outra realidade.

Tinha muitas limitações e regras para cumprir no colégio interno, mas me adaptei muito bem. Eu morria de saudades de casa, chorava muito porque queria voltar, mas a vontade de concluir o curso era muito maior e me segurei até acabar. Tinha a certeza de que tinha de terminar e voltar com o ensino médio concluído, isso me dava muito mais motivação e coragem para ficar.

Na faculdade você também sentiu esse estranhamento?

Em Minas, era um estranhamento pela surpresa porque as pessoas não conheciam indígenas. Na faculdade, me tratavam de um jeito diferente. Lá, me achavam muito boa aluna e inteligente, me olhavam com uma visão positiva. Aí parecia que, por eu ser indígena, era um motivo de admiração eu ser tão boa em sala.

Lá nunca sofri discriminação, no sentido de uma ofensiva direta por ser indígena. Mas algo que eu senti muito é que, às vezes, quando as pessoas tentavam me elogiar, elas acabam fazendo o inverso. Do tipo: “Nossa, você é indígena e você lê tão bem!”, “você é indígena, mas você é bonita!”, “você é indígena, como você fala português bem!”.

Talvez, pelo fato de eu ser indígena, as pessoas não achavam que isso era possível. Então, até quando queriam me elogiar acabavam fazendo isso de forma ofensiva sem se dar conta. Na verdade, acabavam praticando o racismo. Aí é o tal “racismo estrutural”, aquele que as pessoas já utilizam como normal.

Você fez pós-graduação em Educação Especial. Fale-nos um pouco do tipo de educação que você defende, principalmente com relação a como a história e vivência dos povos originários é tratada em sala de aula.

Precisamos de uma educação que considere a nossa vivência e realidade como indígenas. A educação não pode acabar com a nossa realidade. Hoje é muito perigoso você sair para estudar e ser consumido pelo sistema de ensino que acaba te usando como um depósito de informações.

Para mim, a educação tem que ser justamente um espaço de troca. Nas primeiras séries devemos valorizar muito o que cada criança traz, mas também ao chegar na faculdade devemos abrir espaço para a troca.

E, principalmente, é preciso que abordem a história dos povos indígenas e da realidade de hoje nas disciplinas. Defendo uma educação que valoriza todos os saberes e que permita essa troca de conhecimento.

Parece que os povos indígenas e os não indígenas têm visões de mundo muito diferentes.  Um lado se vê como parte integrante da natureza, enquanto o outro lado vê a natureza como uma fonte de recursos a ser usada a seu favor. Como é possível criar pontes de diálogo partindo de pontos de vistas tão diferentes?

De fato, os não indígenas e os indígenas têm visões bem diferentes. Claro que hoje uma parcela maior da população busca conhecer mais e querem adotar uma nova conexão com a natureza. Uma reconexão na verdade, porque lá atrás todos tinham essa relação direta com a natureza, entendiam o seu sentido e viam que a vida dependia do cuidado dela.

Acho que o crescimento populacional, as mudanças de comportamento, as novas formas de consumo e a aceleração de tudo fez com que as pessoas fossem se afastando da natureza. Muitos até acham que dependem da natureza, só que é bem maior a quantidade de pessoas que se enxergam como autossuficientes.

Eles acham que ao ligar a torneira, a água sai de lá porque nasce ali, ou na garrafa do supermercado. Perderam a noção de que a água vem lá da nascente, e que a maioria delas é protegida por nós, indígenas. Ela tem que ser totalmente preservada para se manter ali e para que possa ser distribuída para todos os lugares.

As pessoas não sabem que o ar que respiram na cidade depende da floresta em pé. E, para ela se manter ali, ela depende do modo de vida dos povos indígenas. É preciso haver essa, porque nós sozinhos não daremos conta de fazer isso.

É preciso que as pessoas despertem e permitam que uma troca de conhecimentos aconteça. Os saberes tradicionais têm que ser levados em consideração. Esse conhecimento milenar ajuda a conscientizar as pessoas de que o cuidado com a natureza, o tratamento certo com a mãe terra ajuda a garantir a vida. Isso precisa ser compreendido por todos.  Inclusive as universidades também deveriam se abrir mais e trazer pessoas que não têm diplomas.

Não tem como uma pessoa ser ambientalista e não lutar pela causa indígena. Para nós não há como dissociar as duas lutas. Nós somos a própria natureza. Nós somos a floresta e a água. Nossa cultura e tradições estão totalmente interligadas com o território. A união de tudo isso é o que garante a nossa identidade.

Hoje, nos sentimos muito ameaçados pela proposta de integracionismo do Estado Brasileiro. Quando falam isso pensam em integrar todos a um padrão único de sociedade, enquanto o que defendemos é o respeito à diversidade de cultura e modos de vida. Para que isso aconteça é preciso garantir o direito territorial dos povos indígenas.

O que te moveu a lutar pelo seu povo?

Eu sempre tive, assim, uma certa vontade de trabalhar mais, assim, o coletivo, atuar mais para ajudar as pessoas. Sempre fiz o que pude para ajudar. Mas não sabia como poderia fazer uma ação mais organizada. Isso só começou mesmo nos anos 2000.

Em 2001, participei pela primeira vez do movimento indígena nacional. Lá, percebi a quantidade de povos indígenas que não tinham sua terra demarcada apesar da Constituição Federal garantir ali o direito territorial. Estava escrito que o Estado Brasileiro deveria demarcar territórios dentro de um prazo de cinco anos, o que, claro, não aconteceu.

O que mais me chamava a atenção era a luta dos povos do Nordeste para retornar às suas terras tradicionais. Principalmente durante a Ditadura Militar, os territórios foram entregues a fazendeiros, e, por eles estarem retornando, houve muitos conflitos, perseguições e assassinatos. Ficou muito claro para mim que isso acontecia frequentemente na Bahia, em Pernambuco, mas também no Centro-oeste, no Mato Grosso do Sul.

Foi algo que me chamou muito a atenção e eu realmente saí de lá com a convicção de que não poderia voltar sendo a mesma. Eu teria que buscar novas formas de ajudar e me engajar mais no movimento indígena.

Flyer de sua candidatura à vice-presidência em 2018

E como você se sentiu sendo a primeira candidata indígena à presidência?

Foi muita responsabilidade. Confesso que em alguns momentos eu mesma não conseguia compreender direito, me perguntava: “Como eu estou aqui?”, “Como eu tive essa coragem?”.

Era uma responsabilidade gigante, além de muito puxado, havia muitas pessoas envolvidas e precisávamos criar uma unidade de posicionamento entre opiniões diferentes. Enfim, como era um lugar diferente para nós, acabava sendo também um pouco tenso.

Mas, da mesma forma como eu estava em Minas Gerais estudando e tinha certeza que eu devia terminar aquele curso e voltar para casa com o dever cumprido, eu tive essa sensação ali. Senti que em uma candidatura como essa, que nós nunca tínhamos conseguido, tinha que cumprir meu papel bem feito e mostrar que não era só simbólica. Eu estava preparada para estar ali.

Muitas pessoas me perguntaram: “Mas você está preparada para o cargo?” e eu sentia que era uma pergunta no sentido pejorativo, querendo dizer que por eu ser indígena talvez eu não desse conta do recado. E eu costumava responder: “Preparada eu estou há mais de 500 anos”.

Se dependesse de nós indígenas, o Brasil não estava destruído desse jeito. Somos nós que preservamos o meio ambiente, que temos água limpa e alimentação saudável. Isso sim é referência, um exemplo que tem que ser seguido por toda a sociedade.

Agora, acostumaram a um modelo de mundo que é predatório, ganancioso e individualista e não querem sair disso. Realmente, para seguir isso eu não quero estar preparada.

Quero que as pessoas adotem outro modelo de sociedade, que respeitem mais umas às outras, sejam mais fraternas e que tenham essa relação harmoniosa como o meio ambiente. As pessoas precisam entender que somos um só e é justamente essa relação com a natureza que continuará garantindo a vida no planeta.

Então, falar de política partidária e institucional para mim é falar principalmente dessas relações.

O que significa ser indígena para você?

Hoje, no Brasil, ser indígena é essa certeza de acordar todo dia e ir para a luta. Mostrar que existimos e somos os indígenas do presente, não os indígenas do passado como os retratados nos livros didáticos. “Os índios viviam, os índios pescavam, caçavam…” Ainda hoje nos deparamos com conteúdos dessa forma.

Ignoram o indígena de hoje que está na luta pelo seu território, está morrendo, mas também está ganhando espaço. É o indígena de hoje que está no Congresso Nacional, lutando pela garantia de seus direitos. Portanto, ser indígena para nós é um sinônimo de resistência. Sempre.

Sônia Guajajara fala sobre o Dia do Índia, comemorada em 19 de abril

E qual a sua opinião sobre o Dia do Índio? Eu vi que algumas lideranças se recusam a comemorá-lo por achar que a data é folclórica ou racista.

Imagino que tenha sido pensado como um dia para lembrar e valorizar, mas nas escolas ele é abordado, muitas vezes, de forma pejorativa e nos tratam como aquele índio lá de 1500. Então temos que transformá-lo.

Temos que pegar essa data e utilizá-la da melhor forma. Transformamos o dia do índio em um mês de luta, o acampamento Terra Livre, a maior mobilização nacional indígena, acontece todos os anos em abril. Fazemos nesse período para mostrar resistência e força. 

Não podemos simplesmente olhar para essa data e pensar que é apenas ruim ou racista. Temos que transformar isso em força e visibilidade para conseguirmos apoio à nossa causa.

Não podemos deixar de perguntar. Como foi conhecer o Brad Pitt e o Leonardo di Caprio no Oscar?

Ai meu Deus! Bom, claro que foi muito importante para nós chegarmos naquele lugar, são espaços que não são comuns para nós e essas articulações são importantes. São pessoas com um alcance gigantesco e eles têm uma voz capaz de influenciar a opinião pública.

O Leonardo di Caprio tem esse posicionamento em defesa do meio ambiente, falamos sobre isso e claro… a beleza deles também é impressionante [risos].

Artista plástico Túlio Fagim retrata o trajeto da água da chuva em ensaio

Artista plástico Túlio Fagim retrata o trajeto da água da chuva em ensaio

A convite da 29HORAS, Túlio Fagim produziu um ensaio sobre o caminho percorrido pela água da chuva. Inspirado no conto “O Voo do Mar à Metrópole”, o carioca fez uma série de pinturas de técnicas mistas que ilustram um processo que começa no oceano Atlântico, atravessa a floresta amazônica, contorna a Cordilheira dos Andes e termina na cidade de São Paulo.

Ensaio de Tulio Fagim

Na sequência, o rio voador, que vem do mar, vai em direção à floresta amazônica, bate na Cordilheira dos Andes, e então chega em São Paulo

Nos últimos anos, o pintor tem se voltado para o tema paisagens e busca inspiração na riqueza de formas da Mata Atlântica. “Não tenho grandes pretensões filosóficas com a minha arte, minha procura é mais estética. Eu a faço porque me faz feliz e espero que ela possa trazer um pouco de luz para as pessoas. Gosto de trabalhar com paisagens, e em especial o mato, porque é muito real e próximo de mim. Vou todo dia para uma pequena reserva de Mata Atlântica no meio de São Paulo e procuro ilustrar aquele mato à minha volta com um olhar atual”, comenta o artista.

O fenômeno natural retratado nesta série é explicado, de forma bem resumida, por Renato Braghiere, meteorologista com PHDs na Universidade de Reading e na NASA Jet Propulsion: “No oceano Atlântico, na linha do Equador, o calor intenso gera um processo de levantamento de ar quente e úmido. Os ventos alísios (que sopram do leste para o oeste) direcionam esse ar para cima da floresta amazônica. Ao se deparar com a Cordilheira dos Andes, esse ar quente condensa e chove ao chegar, o que alimenta os rios e, consequentemente, a floresta. Árvores grandes, como as da Amazônia, têm acesso a águas mais profundas e com as suas raízes transpiram pelas folhas, mantendo a umidade da floresta. Ao bater na cordilheira, os alísios mudam de direção e levam esse vento para a região sudeste e centro-oeste do Brasil, trazendo com eles essa umidade extra que forma a chuva”.

Crescem os conflitos mundiais pela água

Crescem os conflitos mundiais pela água

As disputas em torno da água estão se alastrando, tanto no Brasil como no exterior. Elas acontecem de diferentes formas, são confrontos entre nações, modelos de gestão, grupos de interesse e classes sociais. Quando esses embates reduzem o acesso de populações à água de qualidade, é de se esperar que haja a propagação de doenças e, muitas vezes, o aumento do número de mortos. Frente a essa realidade, segue a questão: é possível assegurar que todos tenham acesso a esse recurso?

Entre os desafios, está o fato de que aproximadamente 2,1 bilhões de pessoas (29% da população mundial) não têm acesso à água potável em casa, segundo dados do último relatório da OMS em parceria com a UNICEF. Apresentada em 2017, a pesquisa também aponta que cerca de 4,5 bilhões de pessoas (55%) carecem de um sistema seguro de saneamento. Em um balanço de 17 anos, iniciado em 2000, o estudo mostra que o acesso a serviços de água potável e a saneamento seguro tiveram uma progressão média anual de respectivamente 0,48% e 1,02%.

Foto: Getty Images

Água, um campo minado

O Water, Peace and Security é uma ferramenta que mapeia a possibilidade de conflitos por água no Sudeste Asiático, no Oriente Médio e em todo o continente africano. Patrocinada pelo governo holandês, a plataforma foi apresentada para o conselho de segurança da ONU antes de seu recente lançamento. Ela prevê altos índices de conflito por água no Iraque, Irã, Mali, Nigéria, Índia e Paquistão ainda este ano.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, nas Colinas de Golã. Foto: GPO/Fotos públicas

“É importante dizer que a guerra por água não é uma guerra clássica. Ela ocorre em uma luta por posições estratégicas para manter o acesso aos recursos hídricos”, aponta Wagner Costa Ribeiro, professor de geografia da USP e autor do livro “Geografia Política da Água”. Um exemplo é a disputa pelas Colinas de Golã, responsável por um terço do abastecimento de água de Israel. O país tomou a região da Síria em 1967 e, desde então, seu governo ocupa e administra as colinas, apesar de a maioria da comunidade internacional reconhecer o território como sírio.

O Movimento Pelos Direitos do Povo Palestino e Pela Paz no Oriente Médio e a Anistia Internacional também acusam Israel de privar o acesso à água ao povo palestino. Segundo Ribeiro, o estado israelense proibiu a Palestina de construir uma cisterna, pois o armazenamento promovido por ela diminuiria o volume de água que chega ao rio e, consequentemente, a vazão para Israel. Os conflitos pela água não acontecem apenas na escassez do Oriente Médio.

O Brasil possui a maior concentração de água doce do planeta, cerca de 12% das reservas estão aqui. Mesmo assim, muitas populações e locais sofrem para ter acesso ao recurso em quantidade e qualidade adequadas. Desde 2002, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabiliza os conflitos por água no território nacional. No primeiro ano foram registrados 8 conflitos em todo o território brasileiro; no último relatório, referente a 2018, houve um recorde de 276 conflitos por água. O número é crescente desde 2010 e a CPT estima que mais de 2,7 milhões de pessoas foram envolvidas nesses conflitos. Segundo os dados de 2018, as principais vítimas dos conflitos por água foram, respectivamente, ribeirinhos, pescadores, geraizeiros (populações tradicionais do cerrado mineiro), assentados e pequenos produtores. Já os maiores causadores foram mineradoras (50,36% dos conflitos), empresários (26,45%), hidrelétricas (11,96%) e fazendeiros (9,78%).

O número é crescente desde 2010 e a CPT estima que mais de 2,7 milhões de pessoas foram envolvidas nesses embates. Segundo os dados de 2018, as principais vítimas foram ribeirinhos, pescadores, geraizeiros, assentados e pequenos produtores. Já os maiores causadores foram mineradoras (50,36% dos conflitos), empresários (26,45%), hidrelétricas (11,96%) e fazendeiros (9,78%).

Desastre em Brumadinho. Foto: Ibama/Fotos públicas

As regiões com mais conflitos são o Nordeste com 133 casos (48,1%), seguido do Sudeste com 85 (30,80%), e em terceiro o Norte (18,84%). Bahia e Minas Gerais foram os estados mais afetados, com 65 casos (23,55%) cada um. O relatório destaca disputas consequentes da tragédia de Mariana; a luta pela manutenção do modo de vida das 55 comunidades do Baixo São Francisco contra os interesses especulativos e imobiliários; e 30 ações da refinaria Hydro Alunorte contra as comunidades paraenses, do município de Barcarena – que terminou com o assassinato de duas lideranças comunitárias (a empresa nega a associação entre as suas atividades e as ações contra os moradores de Barcarena, e declara que condena firmemente qualquer ação dessa natureza).

Para o autor de “Geografia Política da Água”, o uso inteligente dos recursos disponíveis, alinhado com tecnologias que já existem, seria capaz de suprir as demandas por água de todas as populações. Porém, falta a vontade política e econômica daqueles que detêm o controle das fontes de água potável. “O problema não é a transferência de água, mas o fato de ela estar sendo feita com foco central no lucro e não no compromisso de ofertar uma substância fundamental para a manutenção da vida”.

Mercado líquido

A água também é protagonista de uma batalha simbólica, voltada para decidir se ela é uma mercadoria ou um direito humano. Há dois grandes tipos de negócio para a substância: o comércio de água engarrafada; e os serviços ligados a ela, como a distribuição e o tratamento de esgoto. Em vários países, grandes bancos e corporações como o Deutsche Bank, Credit Suisse, JP Morgan Chase,Goldman Sachs, Allianz e HSBC Bank, entre outros, já compraram vastos hectares de terra com aquíferos e lagos, além dos seus direitos de exploração deles e várias companhias de água (segundo o eco-engenheiro Jo-Shing Yang, autor do livro Solving Global Water Crises) .

Fábrica de engarrafamento de água. Foto: Getty Images

André Martin, professor da Universidade de São Paulo especializado em geopolítica, comenta por que não apoia que esses grupos controlem o recurso: “ Na procura de investimentos de alta lucratividade, as companhias de água associadas ao capital financeiro vão tentar transformar a água em raridade”. Para o professor, parte da escassez que acontece no mundo foi induzida para que houvesse rentabilidade. “Esse sistema vai contra a natureza humana. Foi comprovado empiricamente que os homens são mais solidários na sede do que na fome. Reparte-se mais água que comida”.

O modelo de gestão privada de recursos hídricos existe desde a virada do século XIX para o XX, e teve um boom mundial a partir da década de 1990. Wagner Ribeiro afirma que dados coletados nos últimos 30 anos comprovam cientificamente que a privatização gera aumento do preço da água e perda de qualidade. “É evidente que o principal objetivo do modelo privado é obter lucro e não promover o acesso à água de qualidade e barata. Além disso, é muito difícil que uma empresa vá estimular a redução do uso da água. Pelo contrário, ela quer que você use mais água para poder te cobrar. Então a privatização da água, além de produzir efeitos negativos para o consumidor final também é antiambiental”.

Nova York, Berlim, Paris, Madrid, Buenos Aires e Jacar, na Indonésia, são algumas das 235 localidades que nos últimos 15 anos reestatizaram seus serviços de águas e esgoto após constatarem um péssimo desempenho do setor privado. O geógrafo avalia que essa é uma tendência global, principalmente em países desenvolvidos, e que o Brasil está na contramão. Em fevereiro, o BNDES anunciou que promoverá ainda esse ano leilões de concessão de serviços de saneamento de quatro estados (RJ, AC, AP, AL). Ribeiro argumenta que a gestão estatal é menos corrupta, pois há um controle social maior quando o estado atua, o que resulta em parâmetros mais rigorosos de qualidade da água.

Odor e gosto de terra

A crise recente da Companhia de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae) parece contrapor esse ponto de vista. Em muitas localidades da região metropolitana da capital, a água que saía das torneiras era amarronzada, com odor e gosto de terra. Atualmente, a privatização da estatal está sendo considerada por muitos, inclusive pelo governador Wilson Witzel (PSC), como a única solução para os problemas. O geógrafo rebate essa alternativa e afirma que a crise é na verdade decorrente das ações do governo que encaminha a estatal para a privatização.

Witzel fala à impresa e bebe água após visita a Guandu. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Em 2017, o estado fez um acordo com o Governo Federal que permitia suspender o pagamento dos juros de sua dívida com a União. Uma das exigências era encaminhar a privatização da Cedae. O lucro líquido da empresa registrado em 2018 foi de R$ 832 milhões, quase o triplo do ano anterior, R$ 280 milhões (não foi encontrado o valor do ano passado). Uma investigação, feita pelo UOL, apontou que o Pastor Everaldo (PSC) influenciou a demissão de 54 funcionários, muitos deles técnicos e engenheiros com anos de experiência. O presidente da Cedae, Hélio Cabral, que ocupou o cargo do início de 2019 até fevereiro, também foi indicação política do pastor. O ex-presidente era conselheiro da Samarco indicado pela Vale na época da tragédia de Mariana. Quando assumiu o cargo ele ainda era réu, acusado por homicídio com dolo eventual, mas depois foi inocentado.

Especialistas apontam que o problema foi causado pelo composto orgânico chamado geosmina, produzido por um tipo de alga presente nas águas que abastecem a estação Guandu. Em 2001, o Rio teve o mesmo problema, e foi resolvido em 7 dias pelos técnicos da Cedae com o uso de raspadores que retiravam o lodo, de acordo com o então diretor da Cedae, Flávio Guedes, em entrevista para o UOL.

Na mesma reportagem, ele afirmou que hoje em dia não há recursos para isso e, em nota, a atual gestão da Cedae reconheceu a necessidade de colocar em operação os raspadores. Porém, a companhia afirma que a aquisição desse equipamento faz parte de um plano de dois anos, com investimentos de R$ 700 milhões para Estação de Tratamento Guandu. Apesar dos altíssimos lucros, poucos investimentos foram feitos para garantir a área de proteção ambiental, onde os recursos hídricos são explorados. A empresa também responde a um processo pelo lançamento de esgoto em cinco estações, despejados na Baía de Guanabara e no oceano.

“A situação é crítica. Lamentável, eu diria. Ela ocorre devido a esse processo errado e nada contemporâneo de insistir na privatização, quando na verdade o estado deveria estar mais presente para garantir a qualidade do serviço de água para a população”, argumenta o professor. Ribeiro também desaprova a forma como o país faz uso dos seus recursos hídricos. Segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA), o maior consumo de água no país acontece na irrigação (66,1% do volume total), seguido por uso animal (11,6%), indústria (9,5%) e abastecimento urbano.

O sistema de irrigação que mais cresce no Brasil é o pivô central. O Levantamento da Agricultura Irrigada por Pivôs Centrais quantifica que, em 2017, havia 1.476.101 hectares equipados para irrigação por pivôs centrais. Para o geógrafo, essa é uma prática que acarreta muito desperdício e a agricultura deveria adotar técnicas mais sustentáveis como o plantio direto e o gotejamento. Outra imprudência que aumenta a demanda de água do setor é que muitas espécies são introduzidas em terras que não são propícias para elas. “O cultivo tem que ser analisado à luz da oferta hídrica da localidade. Temos que diminuir o volume de água utilizado na agricultura e fazer escolhas mais adequadas às condições geográficas e ambientais. Há lugares que não são bons para plantar soja ou cana e, mesmo assim, as pessoas plantam porque dá dinheiro. Isso exige muito mais água do que o normal para ter um desenvolvimento adequado e essa operação ser rentável”.

Fonte contaminada

Avião despejando agrotóxicos em uma plantação. Foto: Getty Images

Mais um ponto preocupante é o altíssimo nível de agrotóxicos presente em muitas reservas de água doce, decorrência da água que irriga as plantações e chega aos mananciais. A Agência Pública apresentou dados reveladores do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SISAGUA), que reúne os resultados de testes feitos pelas empresas de abastecimento. Agrotóxicos foram detectados na água de 92% dos municípios testados em 2017. Esse número teve um crescimento constante nos últimos anos e estima-se que em breve não haverá mais água.

São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Manaus, Curitiba, Porto Alegre, Campo Grande, Cuiabá, Florianópolis e Palmas são algumas das capitais com contaminação de múltiplos agrotóxicos. Além dessas dez cidades, mais 1386 municípios detectaram na água todos os 27 pesticidas que foram obrigados por lei a testar. Desses, 16 foram classificados pela Anvisa como altamente tóxicos e 11 estão associados com o desenvolvimento de câncer, malformação fetal, disfunções hormonais e reprodutivas. Na União Europeia, 21 desses agrotóxicos são proibidos.

“A questão é: estamos cuidando da nossa água? Não estamos. Estamos contaminando nossas reservas, ora com lixo, ora com esgoto ou com agrotóxicos. Isso tudo é má gestão”, conclui Ribeiro. “Precisamos discutir seriamente a quantidade de água para cada uso. Devemos pensar um reservatório para a preservação humana e ambiental fundamental, para a geração de energia, lazer, pesca etc. Todas as possibilidades devem ser pensadas à luz dos ciclos naturais da água. Hoje temos tecnologia para quantificar o tipo de atividade econômica que pode ser feita em cada localidade, seja industrial, agrícola ou de consumo populacional. Enquanto não tiver esse tipo de ação, as crises serão recorrentes, quando não muito mais intensas”.

Crise hídrica no Rio piora com cortes bilionários no saneamento básico

O Estado do Rio de Janeiro sofre com um problema estrutural de falta de água. Desde 1997, passou por quatro crises hídricas e a ausência de investimento em saneamento básico é considerada por especialistas a principal causa.

crise hídrica e falta de saneamento básico

Mortandade de peixes na Lagoa Rodrigo de Freitas. Foto: Rafael Wallace/ALERJ

No ano passado, o Movimento Baía Viva, em parceria com pesquisadores de diferentes universidades públicas, monitorou a situação dos principais mananciais do Rio e constatou que o estado tem uma grande insegurança hídrica. Em 1997 e em 2001, as crises de água foram causadas pela presença de cianobactérias em uma estação e um reservatório. Em 2015, o tempo seco no sudeste, que em São Paulo levou o Sistema Cantareira ao volume morto, foi visto como motor da terceira crise.

A geosmina, composto orgânico que em grego significa “perfume de terra”, já foi identificada por técnicos da Cedae em 2004. Na época, avaliaram que não apresentava perigo e, portanto, não seria necessário adotar medidas para contê-la. Agora, a companhia busca diminuir a presença do composto com a aplicação de carvão ativado pulverizado.

“Ao contrário do que dizem as autoridades estaduais, não estamos diante de uma situação normal, nem trata-se de um incidente, mas sim de um problema estrutural. A principal causa das crises é a ausência de investimento e de saneamento básico”, argumenta o fundador do Movimento Movimento Baía Viva, Sérgio Ricardo. O estudo “Crise das Águas do Rio de Janeiro”, feito pela organização e por pesquisadores de universidades públicas e privadas, demonstra que, desde 2003, R$ 11 bilhões destinados ao saneamento e proteção dos mananciais não foram investidos. Para piorar, no dia 19 de dezembro o governador Wilson Witzel promulgou uma emenda constitucional que deve retirar este ano mais de R$ 370 milhões do investimento em saneamento básico e segurança hídrica.

Para Sérgio Ricardo, o pior desastre hídrico do estado pode acontecer em breve em Volta Redonda. Lá passa o Rio Paraíba do Sul, que abastece 75% da região metropolitana (9,75 milhões de pessoas), e a cerca de 200 metros do leito há uma montanha de escória de aciaria, um subproduto da produção de aço.

Lixo químico empilhado na natureza

Montanha de resíduos industriais próxima a margem do Rio Paraíba do Sul, em Volta Redonda. Foto: Rafael Wallace/ ALERJ

“Essa montanha tem mais de 30 metros de altura e 4 milhões de toneladas em uma área de 200 mil m² e, diariamente, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) continua despejando mais resíduos. No caso de uma tromba d’água forte, como ocorreu em Minas ou em São Paulo, o desmoronamento dessa pilha de rejeitos industriais pode afetar diretamente o abastecimento da região metropolitana.”

Procurada pela reportagem, a CSN informou que um laudo geológico atestou a estabilidade das pilhas de materiais e comentou que, segundo critérios da Associação Brasileira de Normas Técnicas, esses resíduos não representam risco à saúde e ao meio ambiente.

Ano passado, a Justiça Federal aplicou multa de R$ 10 milhões à CSN e a empresa Harsco por descumprirem a decisão liminar para a redução do resíduo acumulado.

Especial água: conto “O Voo do Mar à Metrópole”

Especial água: conto “O Voo do Mar à Metrópole”

pintura abstrata retrata as ondas do mar

Pintura de técnica mista sobre papel feita por Túlio Fagim

Essa é a história de uma gota de chuva. Antes de cair em uma poça de água em São Paulo, o mar era o seu lar. Como uma onda no Oceano Atlântico, ela dançava aos passos da lua até aceitar o convite do sol para viver nos ares. Fez-se vapor, escalou rumo ao céu e, desde então, não parou quieta.

Planando em direção à terra, encontrou suas irmãs e brincaram de rabiscar o anil do céu em tons de cinza e branco. Quando conheceu o verde, foi amor à primeira vista. Na imensidão da Amazônia, despediu-se do céu para visitar uma bela árvore. Regou aquela que viria a ser a sua morada, ajudando-a a crescer, mas enraizada, sentia saudade de voar livremente.

pintura abstrata retrata a chuva na amazônia

Pintura de técnica mista sobre papel feita por Túlio Fagim

Agradecida pelos momentos que passaram juntas, a árvore soprou a água forte para partir com o vento. Seguiu veloz até alcançar suas irmãs e foram desenhando-se em nuvens nas alturas. Um dia, viram algo inédito: um obstáculo. Grande e durona, a Cordilheira dos Andes, estava ali para evitar que elas sequer sonhassem em molhar o Atacama. Parte das águas cansaram e foram viver como rios naquele mesmo momento; desceram ao pé da montanha e cortando a terra seguiram procurando o caminho de volta para o mar.

pintura abstrata retrata a as nuvens na cordilheira dos andes

Pintura de técnica mista sobre papel feita por Túlio Fagim

Ainda não era o momento da nossa gota voltar para o chão. Como muitas outras, deu a volta para desfrutar mais um pouco a vida leve dos céus. Voou para o sul, deu uma voltinha rumo ao leste. Exausta, viu uma enorme mancha cinza abaixo e pensou que seria bom chover por aí ­– Quem sabe assim o verde não cresce um pouquinho? Agora, em uma minúscula pocinha, o sol a convida novamente para viver no céu.

pintura abstrata retrata a São Paulo

Pintura de técnica mista sobre papel feita por Túlio Fagim