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Dia do Índio: Confira a entrevista com Sônia Guajajara

por | abr 19, 2020 | Pessoas & Ideias, Sustentabilidade | 0 Comentários

Sônia Guajajara é uma das maiores lideranças indígenas e ambientais do país. Em 2018, ganhou notoriedade ao se candidatar a vice-presidente pelo PSOL na chapa encabeçada por Guilherme Boulos.  Foi a primeira vez no Brasil que uma pessoa de origem indígena concorreu ao cargo.

Natural da Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, Sônia adota o nome de seu povo, os Guajajaras, um dos grupos indígenas mais numerosos do Brasil. Na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), graduou-se em Letras, Enfermagem e fez Pós em Educação Especial.

Em quase duas décadas de luta pelos direitos das populações originárias, Sônia ocupa cargos de destaque em diferentes organizações e movimentos. Entre eles, a Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), onde é coordenadora executiva.

Sônia Guajajara também se destaca no cenário internacional com voz no Conselho de Direitos Humanos da ONU, onde levou denúncias à Cúpula do Clima e ao Parlamento Europeu. No início deste ano, acompanhou a diretora Petra Costa, indicada ao Oscar de Melhor Documentário por “Democracia em Vertigem”, no almoço oferecido para os finalistas do prêmio.

Acompanhe a entrevista com a ativista a seguir:

Sonia Guajajara/ foto de Fedrico Zuvire

Conte-nos sobre a Terra Indígena Araribóia, onde você cresceu.

O território Araribóia é uma área de Floresta Amazônica que tem uma diversidade muito grande de animais, plantas e gente. Mas com o tempo, foi sendo totalmente destruída pela exploração ilegal da madeira e acabou fatalmente devastada. Houve incêndios e grandes queimadas.

Hoje a região está muito diferente de quando eu cresci. Está bem mais desmatada. Derrubaram muitas árvores e plantas que havia por lá quando eu era criança. Os cedros, ipês, jaborandis, cumarus, hoje não existem mais. Se existem, são pequenas, novinhas e crescendo ainda.

Como foi quando você se mudou de lá?

Com 14 anos eu recebi um convite da FUNAI de Imperatriz (MA) para estudar em Minas Gerais. Naquele tempo, eu nunca tinha saído de minha região, só tinha ido para municípios próximos. Não conhecia cidades grandes, mas eu tinha muita vontade de ir.

Sempre quis viajar e estudar, mas para mim era praticamente impossível. Naquele tempo, para sair de casa, tinha que ir com algum parente e eu não tinha ninguém da família, nenhum apoio ou condição financeira para isso. Então, não tinha muita perspectiva de sair dali.

Quando recebi esse convite, não tive dúvidas. Quando falei que queria ir para lá e estudar foi uma surpresa muito grande para minha família. Depois que eu insisti, meu pai me disse que poderia ir, mas se eu não gostasse, eles estariam ali para me receber de volta. E aí, na mesma hora, eu arrumei a minha malinha e já fui. Não era tempo para pensar e decidir, era o tempo para arrumar as coisas e viajar.

Como foi o período em Minas Gerais?

Fui para um colégio interno agrícola, ficava na região metropolitana de Belo Horizonte. Quando eu cheguei lá foi uma surpresa muito grande descobrir que as pessoas não conheciam indígenas. As pessoas me tratavam com muito carinho e cuidado, numa boa intenção, mas também porque eu era uma novidade.

Mesmo Minas Gerais tendo povos indígenas, e muitos como tem hoje, as pessoas daquela escola e daquele lugar não conheciam nada sobre a existência deles. Então, eu fui recebida com surpresa por ser indígena e ter chegado ali, mas eu também sentia um certo estranhamento, e me perguntava: “Por que eu causo estranheza ao chegar nos lugares?”

Eu não tinha essa noção de que as pessoas não conheciam os indígenas, era a primeira vez que saía da minha região. Mas me adaptei muito rápido, fiz boas amizades e fiquei os três anos de magistério. Foi uma época muito boa apesar de ser outra realidade.

Tinha muitas limitações e regras para cumprir no colégio interno, mas me adaptei muito bem. Eu morria de saudades de casa, chorava muito porque queria voltar, mas a vontade de concluir o curso era muito maior e me segurei até acabar. Tinha a certeza de que tinha de terminar e voltar com o ensino médio concluído, isso me dava muito mais motivação e coragem para ficar.

Na faculdade você também sentiu esse estranhamento?

Em Minas, era um estranhamento pela surpresa porque as pessoas não conheciam indígenas. Na faculdade, me tratavam de um jeito diferente. Lá, me achavam muito boa aluna e inteligente, me olhavam com uma visão positiva. Aí parecia que, por eu ser indígena, era um motivo de admiração eu ser tão boa em sala.

Lá nunca sofri discriminação, no sentido de uma ofensiva direta por ser indígena. Mas algo que eu senti muito é que, às vezes, quando as pessoas tentavam me elogiar, elas acabam fazendo o inverso. Do tipo: “Nossa, você é indígena e você lê tão bem!”, “você é indígena, mas você é bonita!”, “você é indígena, como você fala português bem!”.

Talvez, pelo fato de eu ser indígena, as pessoas não achavam que isso era possível. Então, até quando queriam me elogiar acabavam fazendo isso de forma ofensiva sem se dar conta. Na verdade, acabavam praticando o racismo. Aí é o tal “racismo estrutural”, aquele que as pessoas já utilizam como normal.

Você fez pós-graduação em Educação Especial. Fale-nos um pouco do tipo de educação que você defende, principalmente com relação a como a história e vivência dos povos originários é tratada em sala de aula.

Precisamos de uma educação que considere a nossa vivência e realidade como indígenas. A educação não pode acabar com a nossa realidade. Hoje é muito perigoso você sair para estudar e ser consumido pelo sistema de ensino que acaba te usando como um depósito de informações.

Para mim, a educação tem que ser justamente um espaço de troca. Nas primeiras séries devemos valorizar muito o que cada criança traz, mas também ao chegar na faculdade devemos abrir espaço para a troca.

E, principalmente, é preciso que abordem a história dos povos indígenas e da realidade de hoje nas disciplinas. Defendo uma educação que valoriza todos os saberes e que permita essa troca de conhecimento.

Parece que os povos indígenas e os não indígenas têm visões de mundo muito diferentes.  Um lado se vê como parte integrante da natureza, enquanto o outro lado vê a natureza como uma fonte de recursos a ser usada a seu favor. Como é possível criar pontes de diálogo partindo de pontos de vistas tão diferentes?

De fato, os não indígenas e os indígenas têm visões bem diferentes. Claro que hoje uma parcela maior da população busca conhecer mais e querem adotar uma nova conexão com a natureza. Uma reconexão na verdade, porque lá atrás todos tinham essa relação direta com a natureza, entendiam o seu sentido e viam que a vida dependia do cuidado dela.

Acho que o crescimento populacional, as mudanças de comportamento, as novas formas de consumo e a aceleração de tudo fez com que as pessoas fossem se afastando da natureza. Muitos até acham que dependem da natureza, só que é bem maior a quantidade de pessoas que se enxergam como autossuficientes.

Eles acham que ao ligar a torneira, a água sai de lá porque nasce ali, ou na garrafa do supermercado. Perderam a noção de que a água vem lá da nascente, e que a maioria delas é protegida por nós, indígenas. Ela tem que ser totalmente preservada para se manter ali e para que possa ser distribuída para todos os lugares.

As pessoas não sabem que o ar que respiram na cidade depende da floresta em pé. E, para ela se manter ali, ela depende do modo de vida dos povos indígenas. É preciso haver essa, porque nós sozinhos não daremos conta de fazer isso.

É preciso que as pessoas despertem e permitam que uma troca de conhecimentos aconteça. Os saberes tradicionais têm que ser levados em consideração. Esse conhecimento milenar ajuda a conscientizar as pessoas de que o cuidado com a natureza, o tratamento certo com a mãe terra ajuda a garantir a vida. Isso precisa ser compreendido por todos.  Inclusive as universidades também deveriam se abrir mais e trazer pessoas que não têm diplomas.

Não tem como uma pessoa ser ambientalista e não lutar pela causa indígena. Para nós não há como dissociar as duas lutas. Nós somos a própria natureza. Nós somos a floresta e a água. Nossa cultura e tradições estão totalmente interligadas com o território. A união de tudo isso é o que garante a nossa identidade.

Hoje, nos sentimos muito ameaçados pela proposta de integracionismo do Estado Brasileiro. Quando falam isso pensam em integrar todos a um padrão único de sociedade, enquanto o que defendemos é o respeito à diversidade de cultura e modos de vida. Para que isso aconteça é preciso garantir o direito territorial dos povos indígenas.

O que te moveu a lutar pelo seu povo?

Eu sempre tive, assim, uma certa vontade de trabalhar mais, assim, o coletivo, atuar mais para ajudar as pessoas. Sempre fiz o que pude para ajudar. Mas não sabia como poderia fazer uma ação mais organizada. Isso só começou mesmo nos anos 2000.

Em 2001, participei pela primeira vez do movimento indígena nacional. Lá, percebi a quantidade de povos indígenas que não tinham sua terra demarcada apesar da Constituição Federal garantir ali o direito territorial. Estava escrito que o Estado Brasileiro deveria demarcar territórios dentro de um prazo de cinco anos, o que, claro, não aconteceu.

O que mais me chamava a atenção era a luta dos povos do Nordeste para retornar às suas terras tradicionais. Principalmente durante a Ditadura Militar, os territórios foram entregues a fazendeiros, e, por eles estarem retornando, houve muitos conflitos, perseguições e assassinatos. Ficou muito claro para mim que isso acontecia frequentemente na Bahia, em Pernambuco, mas também no Centro-oeste, no Mato Grosso do Sul.

Foi algo que me chamou muito a atenção e eu realmente saí de lá com a convicção de que não poderia voltar sendo a mesma. Eu teria que buscar novas formas de ajudar e me engajar mais no movimento indígena.

Flyer de sua candidatura à vice-presidência em 2018

E como você se sentiu sendo a primeira candidata indígena à presidência?

Foi muita responsabilidade. Confesso que em alguns momentos eu mesma não conseguia compreender direito, me perguntava: “Como eu estou aqui?”, “Como eu tive essa coragem?”.

Era uma responsabilidade gigante, além de muito puxado, havia muitas pessoas envolvidas e precisávamos criar uma unidade de posicionamento entre opiniões diferentes. Enfim, como era um lugar diferente para nós, acabava sendo também um pouco tenso.

Mas, da mesma forma como eu estava em Minas Gerais estudando e tinha certeza que eu devia terminar aquele curso e voltar para casa com o dever cumprido, eu tive essa sensação ali. Senti que em uma candidatura como essa, que nós nunca tínhamos conseguido, tinha que cumprir meu papel bem feito e mostrar que não era só simbólica. Eu estava preparada para estar ali.

Muitas pessoas me perguntaram: “Mas você está preparada para o cargo?” e eu sentia que era uma pergunta no sentido pejorativo, querendo dizer que por eu ser indígena talvez eu não desse conta do recado. E eu costumava responder: “Preparada eu estou há mais de 500 anos”.

Se dependesse de nós indígenas, o Brasil não estava destruído desse jeito. Somos nós que preservamos o meio ambiente, que temos água limpa e alimentação saudável. Isso sim é referência, um exemplo que tem que ser seguido por toda a sociedade.

Agora, acostumaram a um modelo de mundo que é predatório, ganancioso e individualista e não querem sair disso. Realmente, para seguir isso eu não quero estar preparada.

Quero que as pessoas adotem outro modelo de sociedade, que respeitem mais umas às outras, sejam mais fraternas e que tenham essa relação harmoniosa como o meio ambiente. As pessoas precisam entender que somos um só e é justamente essa relação com a natureza que continuará garantindo a vida no planeta.

Então, falar de política partidária e institucional para mim é falar principalmente dessas relações.

O que significa ser indígena para você?

Hoje, no Brasil, ser indígena é essa certeza de acordar todo dia e ir para a luta. Mostrar que existimos e somos os indígenas do presente, não os indígenas do passado como os retratados nos livros didáticos. “Os índios viviam, os índios pescavam, caçavam…” Ainda hoje nos deparamos com conteúdos dessa forma.

Ignoram o indígena de hoje que está na luta pelo seu território, está morrendo, mas também está ganhando espaço. É o indígena de hoje que está no Congresso Nacional, lutando pela garantia de seus direitos. Portanto, ser indígena para nós é um sinônimo de resistência. Sempre.

Sônia Guajajara fala sobre o Dia do Índia, comemorada em 19 de abril

E qual a sua opinião sobre o Dia do Índio? Eu vi que algumas lideranças se recusam a comemorá-lo por achar que a data é folclórica ou racista.

Imagino que tenha sido pensado como um dia para lembrar e valorizar, mas nas escolas ele é abordado, muitas vezes, de forma pejorativa e nos tratam como aquele índio lá de 1500. Então temos que transformá-lo.

Temos que pegar essa data e utilizá-la da melhor forma. Transformamos o dia do índio em um mês de luta, o acampamento Terra Livre, a maior mobilização nacional indígena, acontece todos os anos em abril. Fazemos nesse período para mostrar resistência e força. 

Não podemos simplesmente olhar para essa data e pensar que é apenas ruim ou racista. Temos que transformar isso em força e visibilidade para conseguirmos apoio à nossa causa.

Não podemos deixar de perguntar. Como foi conhecer o Brad Pitt e o Leonardo di Caprio no Oscar?

Ai meu Deus! Bom, claro que foi muito importante para nós chegarmos naquele lugar, são espaços que não são comuns para nós e essas articulações são importantes. São pessoas com um alcance gigantesco e eles têm uma voz capaz de influenciar a opinião pública.

O Leonardo di Caprio tem esse posicionamento em defesa do meio ambiente, falamos sobre isso e claro… a beleza deles também é impressionante [risos].

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