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Ensaio fotográfico: Na floresta com os Yawanawás

Ensaio fotográfico: Na floresta com os Yawanawás

Montagem da foto da pajé Hushahu em meio à floresta

Os Yawanawás são um povo indígena que habita uma área de 197 mil hectares de Rio Gregório, no município de Tarauacá, no oeste do estado do Acre. São pouco mais de mil pessoas que moram em sete aldeias: Nova Esperança, Mutum, Tibúrcio, Amparo, Matrinchã, Sete Estrelas e Yawarani. Suas terras foram as primeiras áreas indígenas a serem demarcadas no Acre, em 1984.

Os primeiros contatos da comunidade foram com os seringalistas, por volta do início do século 20. Os donos do seringais exploravam a mão de obra indígena em condições de escravidão e proibiam que os índios falassem sua própria língua. Expostos a doenças e abusos, eles ainda foram submetidos à evangelização pelos missionários cristãos, que consideravam as práticas espirituais dos índios diabólicas.

Nesse caldeirão de pressões e desrespeito, a essência dos Yawanawás estava quase sendo extinta. Nos anos 1970, em plena ditadura militar, o povo estava esquecido de suas tradições e saberes e perseguido pelos exploradores intrusos em suas terras.

O índio Kenya é uma figura importante na aldeia Mutum

Só em 1984, sob a liderança de alguns líderes que foram estudar nas cidades e voltaram cientes dos direitos dos indígenas, o povo Yawanawá conseguiu a demarcação da terra. Algo incrível aconteceu depois disso: liderados pelos velhos pajés, guardiões da espiritualidade e da cultura indígena, os Yawanawás expulsaram os missionários do seu território e com força e determinação de alguns jovens começaram a resgatar a espiritualidade, a língua e a cultura ancestral.

A história de Hushahu

A pajé da tribo, Hushahu

O nome Yawanawá significa “Povo da Queixada” – queixada é uma espécie de porco do mato, nativo da Amazônia, que é conhecido por andar sempre em grupo. Esta é uma característica também dos Yawanawás, que estão sempre juntos. “Você nunca vai ver um Yawanawá sozinho”, diz Hushahu Yawanawá, de 39 anos, a primeira mulher de seu povo a assumir o papel de xamã, depois de milhares de anos de tradição exclusivamente masculina. No meio da floresta amazônica, a pajé Hushahu lidera a vida espiritual na aldeia Mutum.

Sua história é sofrida. Ela se casou aos dez anos e teve seu primeiro filho aos onze. Sofria violência do marido, o que a levou a uma busca de força interna e resgate da espiritualidade ancestral. Hushahu tomou a bebida sagrada Uni (ayahuasca) pela primeira vez sozinha e escondida, pois a tradição não autorizava às mulheres a participação nesse ritual. “As pessoas acreditavam que a mulher não seria capaz de ser pajé”, me contou a líder espiritual. Ao lado do cacique, o pajé é a maior autoridade de um grupo indígena.

Mesmo com a resistência da mãe, de algumas autoridades e da comunidade, ela conseguiu apoio do pai e atual pajé, as principais lideranças do povo naquele momento. Começou com estudos e preparações no universo das medicinas ancestrais do seu povo e, em 2005, aos 26 anos, junto a sua irmã, Putani, se submeteu à prova da iniciação xamânica.

Durante um ano, em um lugar isolado da floresta, as duas passaram por uma dieta rígida, repleta de sacrifícios – uma das provas da habilidade do líder espiritual. Ao final da experiência, as novas pajés estavam prontas para retornar à comunidade, que só ganhou com essa nova força feminina a resgatar os saberes religiosos e culturais de seu povo. Importante destacar que o aspecto mais importante do xamanismo é a cura: por meio de rituais que envolvem cantos, rezas e a presença de fogo e plantas o pajé faz a ponte entre o mundo terrestre e o espiritual.

Arte e espiritualidade

Além de ser pajé, Hushahu também é uma das principais artistas de sua aldeia. A sua produção artística é inspirada em sua experiência espiritual. O grande sonho dela é construir uma casa para acolher um centro de artes e espiritualidade, que começa a ser idealizada neste ano de 2019.

Os habitantes também sonham com uma nova escola na aldeia Mutum, que poderá acolher crianças e jovens dessa aldeia e de comunidades vizinhas. A idealizadora do projeto é a professora da aldeia, Julia Kenemeni Yawanawa, que é do povo mesmo, mas estudou na cidade e foi a primeira mulher Yawanawá a se formar na faculdade, em Letras. Se você quiser colaborar com o projeto, entre em contato pelo email jyawanawa@gmail.com ou pelo telefone (68) 99968-484. A comunidade Yawanawá agradece.

A força do turismo

Comercializar as tradições e sabedorias do povo de uma maneira estratégica e organizada foi uma grande sacada dos Yawanawás. Eles entenderam que o seu jeito de viver e se relacionar com o mundo espiritual e a natureza é um verdadeiro tesouro. Entenderam que o interesse por este tesouro pode ser comercializado, o que pode trazer visibilidade, contatos, recursos – e, com tudo isto, a segurança que eles precisam para proteger sua fragilidade.

As três associações Yawanawás oficializando na cidade, estabelecem parcerias comerciais com o governo do Acre e com empresas privadas. Todo ano as aldeias, em conjunto, organizam o festival Mariri, que atrai muitos turistas do Brasil e do exterior.

Nas festas, os adultos bebem Uni (ayahuasca) e todos cantam e dançam

Uma fonte de renda significante é a produção e venda de artesanato (cestaria, pulseiras, colares, penas decorativas) e desenhos. Porém, a procura pelo turismo xamânico e pelas vivências em grupos e retiros individuais tem aumentado nesses últimos anos, o que reverte positivamente para a manutenção dos saberes do povo Yawanawás.

Eu tive a oportunidade de participar da Vivência dos Homens e acompanhar, para fazer as fotos, a segunda edição da Vivência das Mulheres, liderada pela própria Hushahu. O foco do encontro era a troca entre mulheres Yawanawa, brancas e de outros povos indígenas, com o intuito do fortalecimento do espírito feminino. Se quiser saber mais sobre as próximas vivências e participar, entre em contato com os organizadores pelo email: ritual.floresta@gmail.com

Uma grande família

A maior parte da população hoje é bilíngue (fala português e a língua Yawanawá, da família linguística Pano) e é comum a adoção de dois ou mais nomes, um deles em português e os outros na língua indígena. Eles são uma grande família: tem vários filhos, o número facilmente chega a dez.

É natural o casamento entre “primos cruzados”, com os filhos da irmã do pai e do irmão da mãe. As separações podem ocorres com novos casamentos, e os homens podem ter filhos com mais mulheres da família, sendo obrigados a cuidar de todos. É o jeito de sobreviver na floresta como povo, mas isto também está mudando com a influência externa. Já há alguns casamentos de indígenas com brancos da região.

Uma curiosidade é que, entre eles, todo mundo se chama de Txai, palavra que significa “primo”, “irmão” ou “companheiro”, e esta saudação carinhosa se estende também para os visitantes.

Caça, pesca e agricultura

Estas são as três principais fontes de comida. Os Yawanawás caçam todos os tipos de animais. Durante a visita, nós comemos galinhas do mato, macacos, queixadas. os homens nos levaram junto para pescar e caçar, trabalho esforçado numa região em que se chega após quatro horas de barco no fundo da floresta, onde também passamos a noite. Fizemos caça e pesca noturna e de dia.

A aldeia Mutum vive basicamente da pesca, da caça e da agrofloresta

Os pratos são acompanhados de alimentos que os índios cultivam na agrofloresta, como mandioca, batata doce, banana, milho, arroz, mamão, abacaxi e cana de açúcar. A agrofloresta é um sistema ancestral e sustentável de uso da terra, que organiza o plantio de alimentos em conjunto com a floresta, mesclando vários tipos de plantas juntas, umas ajudando as outras, sem o uso de venenos. Uma forma inteligente de produzir riqueza e alimentos e manter a floresta em pé.

Samaúma, a rainha da floresta

Todas as importantes festas dos Yawanawás acontecem embaixo da árvore sagrada Samaúma, que tem o tamanho de um prédio. Samaúmas são as maiores e mais antigas árvores da floresta, contando anos em séculos. Não por acaso, são consideradas árvores-mães pelos indígenas e normalmente estão no centro da vida espiritual, lembrando os templos religiosos.

Todas as grandes festas acontecem embaixo da árvore sagrada Samaúma

Povo alegre e festeiro, os Yawanawás adoram se reunir para dançar e cantar, e as festas Mariri têm grande importância não só na aldeia Mutum como também para conectar com as diferentes aldeias. Nessas ocasiões, os participantes vestem tradicionais saias de palha de buriti e fazem elaboradas pinturas corporais. Os adultos bebem Uni (ayahuasca) e inalam rapé, e todo mundo canta, dança, faz brincadeiras e jogos guerreiros. Além do propósito de socializar, as festas têm como objetivo a comunicação com espíritos da floresta e com seus ancestrais, com o intuito de receber ajuda para solucionar problemas.

Bebida é feita de duas plantas

Ayahuasca é a bebida usada em rituais indígenas há milênios. Os pajés constantemente bebem e estudam as visões que a bebida provoca, adquirindo assim o poder da cura e de comunicação com os espíritos da natureza.

Desde a descoberta da substância e de seu uso na Amazônia pelos exploradores ingleses, em meados do século 19, os estudos científicos têm comprovado, gradativamente, a presença de efeitos positivos. Principalmente na área da psicoterapia e para a cura de dependência química, como o uso do álcool. A bebida é feita a partir da fervura de duas plantas da floresta amazônica: o cipó Uni (Banisteriopsis caapi) e a folha de arbusto Cacrona (Psychotria viridis).

Harmonia entre o homem e a natureza

Participantes da festa fazem elaboradas pinturas corporais

Os Yawanawás são um excelente exemplo de autopreservação. Mas esse esforço não é voltado somente para eles. Esse povo admirável está cumprindo uma missão bem maior: a preservação da crença de que o homem é a parte da natureza, que um depende do outro. Para que realmente as próximas gerações possam viver na Terra, será preciso reintroduzir no nosso mundo, com urgência, a harmonia entre o homem e a natureza.

Atualmente, a comunidade está com vários projetos para preservar, repassar e expandir seus conhecimentos. Além da construção da casa de artes, há o plano de construir uma escola. Jovens habitantes da aldeia continuam estudando espiritualidade e levando conhecimentos resgatados para as próximas gerações.

Cinco perguntas para Hushahu:

Quem é você?

Sou Hushahu, uma indígena brasileira.

Você gosta mais de cantar pelo mundo ou em casa, em Mutum?

Gosto de cantar em todo canto, onde minha voz abrir eu gosto de cantar.

O que o povo Yawanawá tem para oferecer para o mundo dos brancos?

Nosso povo tem a oferecer as medicinas da floresta, para as pessoas expandirem sua visão de mundo e sua consciência.

Qual é sua visão do futuro do povo Yawanawá?

Um futuro onde os jovens estão desenvolvendo a cultura através das artes e da musicalidade do povo, recebendo aquilo que a mudança do mundo está trazendo com responsabilidade e sem deixar a cultura própria de lado. Não só os índios têm suas culturas, toda humanidade tem.

Você acha mais importante espalhar medicinas e cantos para quem não conhece ou cultivar a tradição com que já faz parte?

As duas coisas são muito importantes. Muitas pessoas não têm mais suas raízes e suas tradições e recebem muita inspiração e incentivo ao conhecer a gente.

Como chegar na aldeia Mutum:

A viagem pelo Rio Gregório é deslumbrante, com suas curvas e a mata pujante

A partir de Cruzeiro do Sul, são em média quatro horas pela Estrada BR-364. Do ponto onde a estrada cruza o Rio Gregório são cerca de cinco a sete horas de lancha subindo o rio.

A viagem pelo rio é deslumbrante. Sete horas passaram tão rápido que eu queria que durasse mais. Num esforço físico impressionante, os barqueiros lidam com as mais de oitocentas curvas que o rio faz neste caminho, entre árvores naturalmente derrubadas na água. Sem insetos por causa da velocidade do barco, o conforto é razoável. As poucas paradas para abastecer combustível, quando cessa o barulho do motor e prevalecem os mil sons da floresta, servem para te despertar e avisar: sim, você está no meio da Amazônia.