Aos 75 anos, Alceu Valença celebra sucesso planetário com quatro novos álbuns

por | ago 31, 2021 | Cultura, Música, Música, Pessoas, Pessoas & Ideias | 0 Comentários

Nascido em julho de 1946, o cantor, compositor, advogado, cineasta, poeta e jornalista Alceu Valença celebra seus 75 anos agora em 2021. Confinado em seu apartamento no Leblon desde o início da pandemia, aproveitou para rever toda sua obra e compor canções inéditas. Enquanto isso, o mundo todo também mergulhou nos velhos sucessos desse trovador natural de São Bento do Una, no Agreste pernambucano. Na bruma leve das paixões que vêm de dentro, mais e mais pessoas dos quatro cantos do planeta – da Suécia à Argentina, do Canadá aos Emirados Árabes – se juntaram aos fãs de Alceu após “descobrirem” e se apaixonarem por alguns de seus clássicos, como “Belle de Jour” e “Anunciação”.

Agora, com o avanço da vacinação e a flexibilização das restrições sanitárias, o músico volta aos palcos, para shows no dia 25 de setembro em São Paulo (no Espaço das Américas) e nos dias 22 e 23 de outubro na capital fluminense (na casa de espetáculos Vivo Rio).

 

Alceu Valença - Foto: Leo Aversa | Divulgação

Alceu Valença – Foto: Leo Aversa | Divulgação

 

Na entrevista a seguir, Alceu fala sobre seus novos álbuns, discute o passado e o futuro, filosofa sobre o seu DNA nordestino e tenta explicar a viralização global de seus antigos hits.

Como foi sua quarentena, foi um período produtivo?
Todo mundo aqui se contaminou com esse vírus antes da pandemia se instaurar, logo depois do Carnaval de 2020. Eu, meus dois filhos e minha mulher testamos positivo, mas tivemos sintomas leves. Para mim, esses meses de confinamento foram improdutivos e produtivos. Improdutivos porque tive de cancelar 40 shows pelo Brasil e outros 14 na Europa. Mas foi também uma fase muito produtiva, porque compus cerca de 30 novas canções. Viajo muito e, nessas turnês, nunca sou eu quem cuida do meu violão. Eu só me encontro com ele na passagem de som, pouco antes dos shows. Nesses últimos meses, trancado em casa, tive a oportunidade de me reconectar com o instrumento. Há décadas não tocava tanto violão. Como resultado desse grande encontro nasceram 4 álbuns. Dois que já estão nas plataformas digitais e mais dois que serão lançados em breve.

E como foi a escolha do repertório desses álbuns?
Cada álbum tem um roteiro sentimental, as músicas contam uma história que se formou na minha cabeça, misturando releituras de velhos sucessos, tesouros garimpados nos lados B dos meus discos e composições inéditas. O primeiro, “Sem Pensar no Amanhã”, lançado em março, começa na praia de Boa Viagem com “Belle de Jour”, sobrevoa igrejas de Olinda em “Mensageira dos Anjos”, viaja com “Táxi Lunar” e vai a Itamaracá com “Ciranda da Rosa Vermelha”. A música me levou a lugares que a quarentena me impedia de visitar. Não há vírus capaz de deter a poesia. Já “Saudade”, o segundo álbum, lançado agora em agosto, começa com o samba “Era Verão”, que fala da minha mudança do Recife para o Rio, no começo dos anos 1970. Daí eu encontro uma morena com “Tropicana”, nós nos amamos “Como Dois Animais”, vivemos os conflitos de “Tesoura do Desejo”, mergulhamos em “Solidão” e “Saudade” e, ao final, nos reconciliamos no meu Pernambuco com “Ladeiras” e “Olinda”. Nos próximos dois discos, vou explorar mais a fundo os ritmos do Nordeste profundo, com baiões, xotes, martelos agalopados, toadas e emboladas.

Pelos títulos dos álbuns, parece que você não quer falar sobre o futuro (“Sem Pensar no Amanhã”), mas aceita sem problemas falar de passado (“Saudade”). Você está em um momento nostálgico?
Quando falo de saudade, não estou me referindo a algo distante, estou falando do meu presente, de hoje, de ontem, da falta que sinto de fazer shows, de poder andar na rua, de encontrar os meus amigos. A letra dessa música é bem clara: “Saudade da estrada, saudade da rua / saudade de amigos, como eu confinados / que mesmo distantes estão ao meu lado / Respiro o presente / esqueço o passado, os meses e as horas”.

Também na faixa “Saudade”, você diz que projeta um mundo mais civilizado, com mais saúde e menos miséria. Na sua opinião, o que é que mais está faltando no mundo neste momento?
Falta empatia, falta fraternidade. Quem tem muito deveria dividir mais com quem tem pouco ou nada. A desigualdade é uma doença pior do que a Covid. A riqueza precisa ser distribuída de uma forma mais justa. A solidariedade deveria ser a seta que orienta a nossa vida no “novo normal”. Se isso acontecesse, seria um “legado positivo” da pandemia.

Alceu Valença com a bandeira de Pernambuco - Foto: Divulgação

Alceu Valença com a bandeira de Pernambuco – Foto: Divulgação

E agora que você vai enfim sair do confinamento, quais são as suas expectativas para os shows de SP (em setembro) e do Rio (em outubro)?
Estou ansioso para reencontrar a plateia. Apesar de coincidir com o lançamento do álbum “Saudade”, não serão shows de voz & violão. Estarei no palco com Leo Lira (guitarra), Tovinho (teclados), Nando Barreto (baixo), André Julião (sanfona) e Cássio Cunha (bateria). Tenho vários formatos de shows – uns mais intimistas, outros mais festeiros – mas esses agora vão ser do tipo “resumão”. Vamos passear por sucessos de todas as fases da minha carreira – como “Coração Bobo”, “Táxi Lunar”, “Cavalo de Pau”, “Anunciação” e “Papagaio do Futuro” – e por clássicos de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, como “Baião”, “Vem Morena” e “Canto da Ema”.

Como será o Carnaval em 2022? Já enxerga uma volta à normalidade?
Se dependesse de mim, o Carnaval de 2022 seria igual ao de 2020. Celebraríamos a retorno a uma vida bem próxima daquela que podíamos levar antes da pandemia, como muita alegria e muita animação. Festa é sinônimo de encontro, de gente, de confraternização, de toque e de calor humano. Em 2020, meu trio foi seguido por mais de 200 mil pessoas no Parque do Ibirapuera e outras centenas de milhares no Recife e em Olinda. Ainda não temos nada definido, mas acredito que vai ser possível fazermos festa com segurança. Nos Estados Unidos, sobra vacina porque a população parece não estar muito interessada na imunização. Mas aqui a vacinação só não é mais rápida pela falta de imunizante. Todo mundo adora vacina! Até o Carnaval, toda a população brasileira já terá recebido devidamente suas duas doses. O povo quer se proteger para se livrar da tensão causada por essa moléstia. E o Carnaval será o marco dessa “libertação”. A alegria vai ser mais contagiante do que o corona!

Após ouvir “Sem Pensar no Amanhã” e “Saudade”, me pareceu que o timbre da sua voz está ficando mais agudo. Foi só uma impressão minha?
Que curioso, alguns dizem que a minha voz ficou mais grave, enquanto outros – como você – falam que está mais aguda. A verdade é que eu estou cantando diferente nesses álbuns de voz & violão. É um canto mais macio, mais intimista, mais doce, em harmonia com o violão. Não preciso fazer força nem disputar espaço com guitarras, percussão, teclados e naipes de sopros. Imagino que seja isso o que as pessoas estejam estranhando…

Você nasceu em São Bento do Una, cresceu e se formou em Direito no Recife, fez curso de verão na Universidade de Harvard, já morou em Paris e há décadas vive no Rio de Janeiro. Onde você se sente mais à vontade? Hoje você se considera mais carioca ou pernambucano?
Sabe, meu cabra, a verdade é que eu não moro em cidades, eu namoro cidades. Meu relacionamento com elas normalmente é muito breve. Estou sempre viajando, mas em geral eu chego num lugar, vou para o hotel, me apresento de noite, faço um ou outro passeio durante o dia, visito um restaurante ou museu e é só. Quando rola uma paixão, é algo efêmero, fugaz. E, apesar de ter passado mais da metade da minha vida tendo um apartamento no Rio como meu endereço residencial oficial, ainda me sinto um pernambucano. Jamais vou perder as minhas raízes. Esse DNA está presente na minha música e impregnado na minha personalidade.

Você passou por todas – ou quase todas – as grandes gravadoras, como Som Livre, EMI, Sony, Polygram… agora está na Deck. O que piorou e o que melhorou na indústria fonográfica nesses seus 50 anos de carreira?
Por um lado, hoje é muito, mas muito mais fácil para um artista gravar seu trabalho, produzir um álbum, um clipe, sem interferências de alguém do departamento de marketing. Depois é só publicar em uma das plataformas de streaming e o mundo todo terá acesso à sua obra, sem perrengues de prensagem ou distribuição. Isso é algo que melhorou muito. Por outro lado, a concorrência hoje é imensa e, muitas vezes, seu trabalho fica perdido num mar de canções de todo tipo, dos mais diversos ritmos, gêneros e procedências. Você fica meio que refém de um algoritmo ou de um sei-lá-o-quê que define quem vai te ouvir. Muitas vezes, algo medíocre faz um sucesso enorme e um trabalho da melhor qualidade fica esquecido e escondido nesse oceano virtual de arquivos sonoros. É complicado…

Como você explica esse novo “hype” de “Anunciação”, quase 40 anos depois de seu lançamento? A canção virou trilha do ‘Big Brother Brasil’, hino da seleção brasileira de futebol feminino em Tóquio e ‘bomba’ até nas pistas de dança no Brasil e no mundo, em versão dançante. Você fatura mais com ela hoje do que faturou nos anos 1980?
A música viralizou. Foi isso o que aconteceu. De repente, saltou para 55 milhões de visualizações no YouTube e outras dezenas de milhões no Spotify, na Deezer e na Apple Music. “Belle de Jour” também virou um grande hit planetário, com mais de 175 milhões de views no YouTube. Qual a explicação? Viral não tem explicação. Não existe receita para fazer um vídeo viralizar. Simplesmente acontece. Uma vez, em Portugal, eu, a Elba [Ramalho] e o Geraldo [Azevedo] gravamos um vídeo com o celular num Miradouro com uma vista linda e postamos, certos de que aquilo ia arrebentar na internet. Nada! Outro dia, fui à padaria aqui perto de casa, no Leblon, e vi um turista francês tocando ‘Anunciação’ no clarinete. Me apresentei a ele, disse que era o autor da música e, segundo depois, estávamos fazendo um vídeo, no improviso, acompanhados por uma menina da Argentina e um canadense ao violão. Este vídeo, gravado pela Yanê, minha esposa, teve muito mais repercussão e mais likes do que aquele que produzimos em Lisboa no capricho e com grandes artistas. Vai entender… Quanto à sua pergunta sobre dinheiro, infelizmente não estou um Real mais rico por causa desse ‘boom’. As plataformas digitais remuneram muito mal os artistas. Mas fico feliz com o sucesso, por atingir um público novo e por ter ajudado a elevar o ânimo das meninas do futebol feminino.

A propósito, a que se refere a letra de “Anunciação”? Ela é apenas uma epifania sobre a chegada de uma mulher ou é um hino de esperança pela volta de dias mais felizes?
Eu não sei compor músicas sob encomenda. Para mim, não existe isso de escolher um tema, sentar e escrever uma nova canção. A inspiração vem quando ela quer, do jeito que ela quer. Eu componho como o Chico Xavier, sou tomado por um surto criativo que me leva a lugares que nem o meu inconsciente sabe explicar. “Morena Tropicana”, por exemplo, foi composta num quarto de hotel em São Paulo, numa época em que eu estava namorando uma loira. Ou seja, não tinha nem uma morena e nada tropical por perto! [risos] A inspiração veio porque me lembrei das obras de um artista plástico recifense, Sérgio Diletieri Lemos, famoso por pintar frutas tropicais como mangas, cajus, sapotis, umbus e cajás. No caso de “Anunciação”, eu tinha acabado de comprar uma flauta transversal e saí com meu novo instrumento pelas ruas de Olinda para ver se algo ali me estimularia a compor. Passei pelo sino da catedral, pelo quintal onde a roupa estava estendida no varal, depois uma amiga sussurrou no meu ouvido que a melodia que eu estava executando era muito bonita e assim foi. A música é uma colagem do que vi naquela manhã de domingo. Mas, como eu me envolvi profundamente com a campanha pelas “Diretas Já” e viajei o Brasil todo com Ulysses Guimarães e outras lideranças desse movimento na época do lançamento da música, muita gente associou a letra ao retorno da Democracia. Já falei mil vezes que a letra não tem nenhuma conotação subversiva, mas até hoje tem gente insistindo que ela tem. Não sou político e nem profeta – sou poeta!

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