Pianista, acordeonista, arranjador, cantor e compositor, João Donato criou obra extensa que é um verdadeiro marco para a música brasileira, além de referência para novas gerações
Peço licença para falar de João Donato e das deliciosas vezes em que nos encontramos para o Vozes do Brasil e outros projetos de música que faço. Seu jeito leve ao piano, seu suingue incomparável, sua doçura melódica – tudo isso estava presente na hora de responder sempre delicadamente as minhas entrevistas. O multi-instrumentista e ícone da MPB – natural de Rio Branco, nas profundezas da Amazônia – nos deixou em julho deste ano e teve incríveis 74 anos de carreira.
Certa vez, ele chegou para gravar o ‘Vozes do Brasil’, ao vivo no Sesc Vila Mariana, com um papel dobrado no bolso e disse: “Palumbo, estou com esse papelzinho aqui. Foi o Jobim que me deu, uma música que nunca toquei, posso tocar no seu programa?”. Em outra ocasião, Donato não quis tocar nada, estava sem vontade, mas contou muitas histórias sobre o Acre, os rios, e ouvimos uma seleção de temas instrumentais maravilhosos que ele gravou fora do Brasil.
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foto divulgação
Gosto de ouvir João Donato por ele mesmo. Tenho dois LPs que ganhei autografados no Festival MIA de Araçatuba, de 2019, que vivem na vitrolinha da sala. O “Quem é Quem”, de 1973, é aquele clássico que tem Donato tocando piano elétrico e um elenco de arranjadores absurdo: Dori Caymmi, Lindolfo Gaya, Laercio de Freitas e Ian Guest. Tem ainda parceria com Marcos Valle, Paulo César Pinheiro e as maravilhas do irmão Lysias Enio – autor da letra de “Até Quem Sabe”, que é uma das canções mais lindas do mundo. Nesse disco, Donato canta quase tudo, exceto “Mentiras”, que tem a belíssima voz de Nana Caymmi ainda bem jovem.
Outro álbum é “Raridades”, lançado em 2018, uma compilação de faixas avulsas (hoje chamaríamos de singles), com Donato ao piano e uma participação de Nara Leão em “Fim de Sonho”. A cantora também gravou “Amazonas”, que é uma música maravilhosa!
Eu tenho uma verdadeira lista de preferidas de João Donato. Começo com todo o “Cantar”, LP de Gal Costa que ele produziu em 1974 – gosto do piano e dos arranjos que ele assina para ela. E Donato com Caetano temos “A Rã” e “Flor de Maracujá” com Lysias, que são duas delícias.
Sigo com “Brisa do Mar”, parceria com Abel Silva. Uma bossa abolerada, letra linda e aquela divisão que faz querer dançar juntinho, alegre e triste ao mesmo tempo. E “Minha Saudade” com João Gilberto, daquele disco “João Donato e seu Trio Muito À Vontade” de 1962, e “Café com Pão”, gravado com Paula Morelenbaum em 2011. João Donato fez “A Paz” com Gilberto Gil e “Gravidade Zero” com Tulipa Ruiz. Fez “Estrela do Mar” com Rodrigo Amarante e “Síntese do Lance” com Jards Macalé.
Sua música e genialidade são atemporais. Ninguém toca como ele, ninguém compõe como ele. Gosto de dizer que artistas assim são sozinhos um gênero musical. Quando a música começa, você já sabe quem é.
O bom de uma obra longa e bonita assim é que se torna eterna. Nunca perderemos João Donato, o artista sem igual. Faz muita falta a sua risada, além da sua doçura, suas camisas coloridas, os bonés, a simpatia. Vamos ouvi-lo sempre. Com saudade.
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