Capa da edição de junho de 2017 da revista 29HORAS, a cantora Gal Costa falou, à época, sobre seu álbum “Estratosférica” e mostrou por que foi e sempre será divina, maravilhosa. Relembre a entrevista a seguir
No dia da entrevista, São Paulo se encontrava debaixo da chuva. Era uma sexta-feira nublada em que os carros subiam com dificuldade a Avenida 9 de Julho e os guarda-chuvas tomavam as calçadas. O encontro seria em uma casa, em uma vila na Alameda Lorena. Uma casa branca de dois andares, telhados vermelhos e um portão metálico que separava a rua dos latidos de um vira-lata.
Entrando na casa, o cachorro preto nos recepciona com o rabo abanando e silenciando os latidos. Sentamos próximos a uma mesa enquanto esperávamos pela entrevistada. Não demorou muito, pois soou a campainha e, na porta, Maria da Graça apareceu de óculos escuros, os cabelos cacheados e soltos.
— Toda Maria da Graça na Bahia se chama Gal. — ela conta. — Então me apelidaram de Gal.
— Li que a sua mãe durante a gravidez ouvia música clássica.
— É, tinha um momento do dia que ela punha música clássica e se concentrava para o feto absorver. Ela queria que o seu filho fosse um grande violonista clássico, um músico maravilhoso. E aí nasci eu — ela sorri. — Uma cantora.
Gal Costa era ainda Maria da Graça quando começou a cantar. Aliás, segundo ela, já nasceu cantando. Só com a intuição aprendeu técnica vocal, em como usar o diafragma, e aos poucos a vida foi mostrando os caminhos. Em 1959, pelo rádio, ela se encantou com a música “Chega de Saudade”, na voz de João Gilberto, uma de suas grandes influências, que compartilha com Caetano Veloso. Ao lado deste, em 1967, estreou com o nome de Gal no álbum “Domingo”.
— Como você vê esses 50 anos de carreira?
— Eu vejo com muita alegria, estou numa fase ótima de trabalho. Os jovens têm um grande interesse pelo que aconteceu na era tropicalista, pela minha geração. Querem ouvir o trabalho e isso é fantástico. Isso tem alimentado bem a gente. O “Estratosférica” e o “Recanto” são discos direcionados para um público mais jovem. E também para aquele público que me acompanha, gosta de mim e sabe que a minha carreira é pautada por grandes mudanças.
— A transformação faz parte da sua essência…
— Sim, poucos artistas conseguem ser iguais e bons por muito tempo. Eu posso citar o Roberto Carlos como exemplo e a própria Bethânia… são artistas que têm uma força, um carisma, uma magia. Mas eu acho que todo artista tem que ousar. Eu sempre fui assim, desde o começo da minha carreira, e será assim até o dia que eu parar.
Em 1968, Gal participou do álbum “Tropicália ou Panis et Circencis”, marco do tropicalismo que, antes de fins sociais e políticos, foi um movimento cultural nitidamente estético e comportamental. Hoje, aos 71 anos, a cantora tem em seu repertório 36 discos e uma vida de metamorfose na música. Essa sua trajetória será revisitada na série “O Nome Dela é Gal”, que estreia dia 11 de junho na HBO com quatro episódios.
O disco “Recanto”, de 2011, idealizado por Caetano, marcou o retorno de Gal em um estilo experimental, diferente de tudo que já tinha feito. Seu mais recente álbum, “Estratosférica”, de 2015, dá continuidade a essa nova fase com uma pegada mais para o rock. Produzido por Moreno Veloso e Kassin, ele é recheado de novos parceiros como Céu, Criolo, Arthur Nogueira e Mallu Magalhães. “São compositores que eu nunca tinha gravado. E isso é bom, porque refresca o meu repertório e também dá forças para essas pessoas”.
Essas composições serão cantadas por Gal no show “Estratosférica”, na recém-inaugurada Casa Natura Musical, em São Paulo, nos dias 23 e 24 de junho, quando será gravado o DVD do álbum.
— Qual é a sensação de subir ao palco?
— É diferente sempre. Eu ainda fico nervosa, com frio na barriga, mas é muito prazeroso o que eu faço. Se não fosse, eu não faria. É um nervosismo de excitação, de ir para o palco, encarar uma plateia, fazer o show. É normal, todo artista tem que sentir isso, faz parte do tesão, né?
— Você é uma grande intérprete, você pega a música e parece que ela está saindo de você…
— É assim. Quando o compositor compõe, você pega a música e se apodera dela. Como é que se diz… tem uma palavra agora que me foge… é incorporar, tomar pra mim aquilo, como se aquilo fosse eu.
— Você também compõe, Gal?
— Eu compus duas músicas só na vida. Uma nos primeiros Doces Bárbaros e a outra com o guitarrista Lanny Gordin e o Jards Macalé. Fizemos na nossa casa, juntos, nos anos 1960. Mas eu gosto mais é de cantar — o celular de Gal toca na mesa e, depois de desligar, ela mostra a foto do filho, que está como fundo de tela: “Olha o meu filho aqui, fofinho”.
— O que é ser mãe para você?
— É a melhor coisa do mundo. Eu sempre quis e não pude ter filhos, por problemas físicos. Mas eu amo tanto o Gabriel, acho que se eu tivesse parido um filho eu não amaria tanto. Ele está no 7º ano do fundamental, vai fazer 12 anos em junho. Ser mãe é uma maravilha. É uma alegria… nossa, você aprende, todo dia você aprende alguma coisa.
Em São Paulo há cinco anos, Gal é apaixonada pela cidade. Ela veio por causa da gravação de “Recanto” e foi ficando. Na sua opinião, a capital paulista oferece de tudo e é um ótimo lugar para criar o filho. O trânsito também não a incomoda, porque “trânsito existe em qualquer lugar do Brasil, não é mais privilégio de São Paulo”.
Durante a conversa, o cachorro da casa se achegava em Gal, que passava a mão no bichano. “Acredito que Deus é a natureza, está em tudo. Está em mim, está em você, está na árvore, está no cachorro, está em todos os lugares. Acredito que exista uma inteligência maior, outros mundos habitados com vida inteligente. Acredito sim, acredito piamente”.
— E esse momento caótico do Brasil?
— O mundo está terrível, parece que no mundo inteiro há sinais de um apocalipse, de um final dos tempos. É claro que não tem fim, é sempre uma transformação. O Brasil está sangrando, mas o mundo também está. Veja o terrorismo, o Estado Islâmico, os refugiados de guerra tentando entrar nos países e sendo barrados. Então está tudo… muito esquisito. Há um sinal muito estranho no ar.
— Tem esperança no Brasil?
— Tenho — ela diz enquanto acaricia o cachorro. — Eu ouvi uma coisa do Papa Francisco que é muito linda. Que a política é a mais alta oportunidade que você tem de fazer caridade. E é isso. Se eu fosse presidente da República, e eu não nasci pra isso, mas se eu fosse, eu iria querer ajudar as pessoas, eu não ia roubar para mim. Eu ia querer dar. Deus lhe dá oportunidade de ser um político que pode fazer bem às pessoas, por que você não faz? Eu não entendo.
— E o que é a vida?
— A vida é a vida, é bonita, é bonita, é ótimo viver. A vida é sofrimento e alegria. Mas a vida é bonita. Tem muita alegria, muita felicidade. A vida é boa.
Para o segundo semestre, Gal fará “Trinca de Ases”, show com Gilberto Gil e Nando Reis em homenagem ao político Ulysses Guimarães. Um novo disco também vem por aí. “Mas eu não paro muito para pensar. Não planejo nada, as coisas vão vindo e eu pego”.
Lá fora, a chuva havia diminuído. Depois de se despedir, saindo da casa, o céu deixava aparecer alguns raios do sol. A garoa quase fina fez com que pedestres fechassem seus guarda-chuvas pela calçada. Sim. A vida é bonita, é bonita.
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