Representante mais jovem de uma lendária dinastia de chefs, Thomas Troisgros acaba de abrir dois restaurantes em Ipanema: um bistrô moderninho de comida descomplicada e mais acessível e um outro dedicado ao fine dining, que atende só 16 pessoas por noite
Ele é filho de francês e morou quase metade dos seus 42 anos de vida na Europa e nos Estados Unidos, mas ainda assim se considera um carioca da gema. Mas é da gema mole, como aquela dos ovos mollet, cozidos em baixa temperatura. Neto de Pierre Troisgros (pioneiro da Nouvelle Cuisine) e filho de Claude Troisgros (nome fundamental na gastronomia brasileira, que comanda ou já pilotou prestigiosos restaurantes no Rio, em São Paulo e em Nova York), Thomas Troisgros é o mais jovem representante dessa que é uma das mais celebradas dinastias da gastronomia mundial.
Fã de videogames e de tranqueiras da cultura pop, pode-se dizer que Thomas é o mais novo Jedi dessa linhagem de grandes feras da cozinha. Uma evidência de que essa não é apenas uma invenção absurda é que, em vez de ter uma imagem de São Benedito (padroeiro dos cozinheiros) ou uma flâmula do seu amado Flamengo, ele tem nas prateleiras do salão do restaurante que acaba de abrir em Ipanema uma “escultura” feita de Lego do mestre Yoda empunhando um sabre de luz, como na saga “Star Wars”.
Depois de anos trabalhando com seu pai, em restaurantes como o Olympe, o Le Blond e o 66 Bistrô, agora Thomas parte em voo solo, com a inauguração de dois restaurantes instalados em um mesmo imóvel na Rua Joana Angélica. O Toto (pronuncia-se Totô) é um contemporâneo nos moldes dos “neobistrôs” parisienses, com menu eclético e uma ótima relação custo-benefício. No andar de cima, o Oseille é um balcão com somente 16 lugares onde são servidos menus-degustação apenas à noite. Para quem não sabe, oseille é o nome francês da azedinha, erva que é destaque na receita do molho do Saumon a l’Oseille – o prato criado em 1962 na cidade de Roanne por Pierre Troisgros, considerado o marco do início da Nouvelle Cuisine. O nome do restaurante é uma homenagem de Thomas ao legado de seu avô, e o salão é decorado com azulejos que trazem folhas de azedinha pintadas à mão por sua mãe, Marlene Pereira.
Aos 42 anos, casado com a analista financeira Diana Litewski e pai de dois filhos e uma enteada, nas páginas a seguir ele fala sobre seus novos empreendimentos, sobre seu trabalho no comando de várias operações e sobre a Guerra nas Estrelas da qual ele já participou (já teve até uma estrela), mas na qual hoje não pretende mais se engajar. Confira os principais trechos da entrevista que Thomas concedeu à 29HORAS.
Ao longo de sua trajetória como cozinheiro, você teve grandes mestres. O que, de mais importante, você aprendeu com cada um deles?
Meu avô Pierre Troisgros sempre dizia que o fácil é complicar uma receita. O difícil é simplificar, fazendo poucos ingredientes brilharem. Essa é uma lição que eu trouxe para a minha vida e para as minhas criações. Com o meu pai, Claude, aprendi o amor ao Brasil, a valorização da gastronomia brasileira e a importância de ter um toque de acidez em cada prato. Em Nova York, com o grande Daniel Bouloud, descobri o que é e como funciona um restaurante três estrelas. E aprendi também a trabalhar com volume, mas com excelência. Já com o Andoni Aduriz, do basco Mugaritz, eu vi o que se pode fazer para atingir a perfeição em cada pequeno elemento do prato e compreendi a beleza de privilegiar os ingredientes locais. Na escola [o nova-iorquino Culinary Institute of America], absorvi muita teoria e passei a dominar técnicas de corte e cocção para extrair o máximo de cada ingrediente e tive também contato as mais variadas culinárias do mundo.
Quando você criou o TT Burger, em 2013, foi um ato de “rebeldia” contra a tradição do clã Troisgros?
De fato a fast food é o oposto do que meu avô e o meu pai sempre fizeram, mas não foi algo pensado contra nada ou ninguém. Na verdade, foi uma oportunidade que apareceu. Os donos da grife Reserva [os empresários Rony e André Meisler] queriam uma lanchonete dentro da loja-conceito de sua marca e me chamaram para formatarmos algo que se encaixasse nesse projeto. A onda dos hambúrgueres mais gourmet – se é que podemos chamar assim – já tinha começado lá fora, mas ainda não havia chegado com força aqui no Brasil. Como eu estava voltando de Nova York, onde a coisa estava fervendo, achei a ideia ótima e que aquele era o momento perfeito.
A propósito, com a TT Burger, você foi o pioneiro no uso de ingredientes brasileiros em hamburguerias. Foi lá que vi pela primeira vez ketchup de goiaba, queijo meia cura no lugar do cheddar, picles de maxixe, mandioca frita em vez de batatinhas… Como surgiu essa ideia?
Quem pavimentou isso foi o meu pai. Foi ele quem “ressuscitou” o jiló gastronomicamente, por exemplo. E é um entusiasta do uso de outras “preferências nacionais” na alta gastronomia, como a rapadura, o urucum, a banana, o chuchu e a batata baroa (mandioquinha). Eu apenas segui uma linha que ele inaugurou. Incluir ingredientes brasileiros na cultura do hambúrguer não foi uma sacada genial, foi a continuação de uma ideia dele – mais uma prova de que a TT Burger não era nada “contra”, e sim um passo a favor de uma “tradição” dos Troisgros no Brasil.
Outro dia perguntei ao seu pai o que ele acredita que você tem de melhor do que ele, e ele me chamou a atenção para a sua excepcional capacidade de transformar ingredientes menos nobres em iguarias. E no recém-inaugurado Toto você exercita um pouco dessa sua habilidade, não?
O Toto é um bistrô de comida contemporânea, menu descomplicado e receitas com referências francesas, asiáticas e ingredientes brasileiros. Servimos o tipo de comida que eu gosto de comer, inspirada nos sabores que conheci nas minhas viagens pelo mundo e na casa de amigos. Nessa linha dos ingredientes menos nobres, temos um sensacional coração de galinha com molho de ostra, pimenta de cheiro e gengibre. Esse vem sendo um dos hits da casa, assim como os gyozas de costela com molho ponzu e agrião, o hommus do dia com pão sírio, o peixe a meunière de tangerina, as asinhas de frango em molho gastrique de laranja, o prime rib suíno à milanesa e o galeto assado ao molho Pierre Troisgros – que é uma maneira mais assimilável de apresentar o tradicional poulet au vinaigre.
No Oseille também será possível encontrar algum outro exemplo disso ou o conceito fine dining não permite?
Acho que o fine dining tem mais a ver com cuidado e o esmero no preparo – além do paladar extraordinário, sublime, superlativo. No próprio Olympe, tínhamos no cardápio um prato feito com cérebro bovino e outro com língua. Pretendo usar não só esses, como também outros miúdos e cortes menos “nobres” no Oseille. O cardápio vai mudar a cada dia, não teremos pratos fixos. Lá, quero mostrar que dá para ter comida de qualidade, bebidas excelentes, ótimas taças, louças bonitas, mas sem frescura e sem afetação. Quero que seja um espaço descontraído e informal. Não quero as pessoas com medo de espirrar e receber olhares de reprovação. Vamos atender apenas 16 pessoas por noite, e a minha tarefa é proporcionar a todas elas uma noite agradável e uma experiência memorável.
Quais as motivações que te levaram a abrir o Oseille?
Resolvi abrir o Oseille para manter a criatividade em forma, para estimulá-la. Se a gente se afasta da cozinha, dá uma enferrujada. E tem mais: o fine dining é algo que eu sei fazer bem e muita gente pediu para voltar a fazer, depois que fechamos o Olympe. Os jantares no Oseille têm cinco ou sete tempos, à escolha do cliente. A primeira opção custa R$ 490, e a mais completa, R$ 650, sem as bebidas. O serviço começa às 20h em ponto, mas os clientes são convidados a chegar às 19h30. Nessa meia hora, servimos um coquetel. A ideia é “premiar” quem chega no horário, e não penalizar os atrasadinhos. Optamos por menus de 5 ou 7 etapas porque não tenho a vaidade e a pretensão de fazer meus clientes provarem 14-16 receitas. Nem todo mundo gosta de um jantar que dura 3 ou 4 horas. O importante é que a pessoa saia satisfeita. Se, no final, alguém quiser repetir algum dos pratos, vamos tentar fazer a sua vontade.
O prato que inseriu os Troisgros na história da gastronomia mundial – o salmão com azedinha – está nos menus do Oseille?
Não. O molho de azedinha pode até aparecer eventualmente, em alguma referência que eu queira fazer ao meu avô. Mas não pretendo trabalhar com salmão.
Como você divide o seu tempo atualmente, com várias marcas sob o seu comando. Você é mais chef ou CEO?
Quando, em 2020, desmanchei amigavelmente a sociedade com o meu pai e dividimos as marcas, fiquei com o Le Blond, com a CT Boucherie e com a CT Brasserie, que foi extinta. No TT Burguer, são outros sócios, e essa unidade de negócios inclui ainda a Três Gordos (especializada em smash burgers), a Tom Ticken (focada em frango frito, coxinhas e quetais) e a Marola (de sandubas à base de frutos do mar). No TT e em seus “filhotes” sou sócio, mas meu único trabalho é o de criar ou supervisionar as receitas. Aqui no Toto, no Le Blond e na Boucherie, eu encarno o papel de restaurateur, ajudando a escolher fornecedores, definindo mudanças no menu e conversando com os maîtres e cozinheiros para alinhar todos os detalhes da cozinha e do salão. Uma vez por mês apenas eu costumo sentar para checar os números com o meu diretor financeiro. No Oseille, é o único lugar onde ainda atuo como cozinheiro. E, para todos esses empreendimentos, sou ainda o PR, me ocupo das relações públicas. Minha figura é o rosto que as pessoas conhecem, que representa esses negócios todos.
O que acha dessa atual obsessão por rankings, estrelas e prêmios? Como vê centenas de chefs e restaurateurs investindo uma grana pesada por uma vaga no 50Best? O que a estrela Michelin mudou na sua vida?
Eu já vivi isso. Já tive estrela, já estive no Top 20 do Latin America 50Best, mas hoje essa não é mais a minha onda. Acredito que essa “corrida de cavalinhos” causa muita competição e muita frustração. Gera até inimizades entre os chefs e algumas disputas que considero desleais e desagradáveis. Para os meus colegas que quiserem seguir esse caminho, eu aplaudo e fico muito feliz de ver as suas conquistas. Mas estou em outra. Quando o Olympe conquistou sua estrela Michelin, foi ótimo, festejamos muito, mas a gente não trabalhava pensando nisso. Hoje, o prêmio e o reconhecimento que me interessa é o que estou ganhando todo dia: a fila na porta dos meus restaurantes. É como dizia o Paul Bocuse quando lhe perguntavam qual o melhor restaurante do mundo. A resposta dele era simples e direta: “O restaurante que está cheio”. E eu quero mais é atender quem mora aqui por perto, na vizinhança. É esse cliente que me sustenta, e não aqueles que vêm de longe, que visitam a minha casa uma vez por ano.
Para finalizar, suponha que você foi condenado à morte na cadeira elétrica e sua sentença será executada em minutos. Qual seria a sua última refeição, se você pudesse escolher?
Dim Sum! Quero muitos carrinhos passando pelo Corredor da Morte com aquelas caixinhas de bambu para eu poder escolher o que vou comer. E que ninguém me apresse! Eu vou morrer em seguida, então mereço fazer uma última refeição em paz e com calma. Eu acho uma loucura a variedade de sabores, texturas, formatos e cores dos dumplings, gyozas e quitutes que são servidos nas refeições chinesas tipo Dim Sum. É um banquete, uma verdadeira orgia, uma festa para quem, como eu, tem prazer em comer!
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