Fora da Globo, Walter Casagrande explora diferentes projetos e, neste mês, cobre mais uma Copa do Mundo

por | out 31, 2022 | Entrevista, Pessoas, Pessoas & Ideias | 0 Comentários

Ex-jogador e agora comentarista e colunista esportivo, Casagrande vive momento intenso de liberdade, após encerrar contrato com a Globo. Sempre atento aos gramados e aos entornos, casão acompanha mais uma copa do mundo neste mês, desta vez pelo Uol e diretamente do Catar

O papo mal havia iniciado e Walter Casagrande Jr. estava esfuziante. O ex-atacante e ídolo do Corinthians – clube que experimentou uma revolução, nos anos 1980, quando ele e os parceiros de time, Sócrates e Wladimir, criaram a Democracia Corintiana, movimento político-esportivo que primava pela liberdade dos atletas – havia retornado, há poucos dias, de uma visita à aldeia indígena Katurãma. Naquele chão de terra localizado no município mineiro de São Joaquim de Bicas, ele havia divulgado o ato Sem Demarcação Não Tem Jogo para celebrar a doação feita pela Associação Nipo-Brasileira de uma área que pertencia aos pataxós.

Estar ali só foi possível porque a liberdade de ir e vir e falar o que pensa bateu, novamente, em sua porta a partir do encerramento do contrato de comentarista que ele mantinha com a Rede Globo havia 25 anos. “Se eu estivesse na emissora, não me dariam a chance de ir à aldeia, porque, talvez, eu seria escalado para comentar em algum programa”, diz Casão, como é carinhosamente chamado esse paulistano de 59 anos e 1,91 metro de altura. “Você teria de pedir autorização à Globo para me entrevistar e certamente eu não seria liberado”. Apoiar e criticar publicamente políticos, dividir seus pensamentos com qualquer veículo de comunicação e encarar projetos diversos, agora, está na ordem do dia.

 

Walter Casagrande - Foto Bob Wolfenson

Walter Casagrande – Foto Bob Wolfenson

 

Autor dos livros “Travessia – Casagrande e seus Demônios”, por meio do qual relata, entre outros assuntos, o vício em cocaína e heroína, e “Sócrates e Casagrande – Uma História de Amor”, sobre a relação da dupla de jogadores que nutria amor e muito companheirismo entre si, Casão divide na entrevista a seguir o seu palpite sobre o desempenho da Seleção Brasileira no Mundial, o prazer de ter sido criado majoritariamente por mulheres e a sensibilidade que todo homem deve ter, cultuar e pôr para jogo.

Como é a sua rotina depois de encerrar o contrato com a TV Globo?
Mudou completamente. E para melhor. A minha criatividade estava muito limitada lá. A pessoa tem de colocar o seu limite vivendo na liberdade, e o meu, na Globo, que sempre foi alto, estava diminuindo cada vez mais. Isso não fazia bem para mim e nem agradava a emissora. Resolvi deixar a Globo e, desde então, escolho o que quero fazer. As portas se abriram totalmente para as minhas ideias. Por exemplo, acabei de chegar de uma visita à aldeia indígena Katurãma (em São Joaquim de Bicas, em Minas Gerais), onde divulguei o ato Sem Demarcação Não Tem Jogo. Havia várias etnias por ali, danças de amor, de paz, cantos. Foi uma das coisas mais lindas que vi na vida. Se eu estivesse na Globo, eu poderia ter sugerido, organizado tudo, mas não me dariam a chance de ir até lá, porque, talvez, eu estaria escalado para comentar em algum programa.

O meu papel na Rede Globo teve começo, meio e fim. Apesar de eu achar que o fim devesse ser selado depois da Copa do Mundo do Catar, já que cobri todas as outras pela emissora. Desde 1999, eu fui o principal comentarista da Seleção Brasileira. Fiz todos os jogos do Brasil até a Copa América de 2019. E aí deixei de ser escalado para os jogos da Seleção. E agora, quando completo 25 anos de TV Globo, tive de sair da empresa. Seria especial trabalhar nessa Copa pela Globo, porque o Galvão Bueno fará a sua última narração em Mundial. Eu trabalhei com ele durante todo o tempo e não irei participar dessa despedida.

Casagrande com Falcão, Galvão Bueno e Arnaldo Cezar Coelho na cabine de transmissão da Globo – FOTO ARQUIVO PESSOAL

 

E como é o seu trabalho hoje?
Eu escrevo para o UOL e para o jornal Folha de S. Paulo. Tenho participado de podcasts, como o do Mano Brown, entre outros, de programas de TV diferentes como o “Melhor da Tarde”, da Catia Fonseca, da Band, mais popular, para a dona de casa. Dei entrevista ao programa “À Prioli”, apresentado pela Gabriel Prioli, na CNN, e participei do “Roda Viva”, da TV Cultura. E todas essas entrevistas foram longas. É visível a transição de carreira que venho experimentando. Antes, muito limitado à área de esporte e ao futebol, na Globo, eu não tinha como fazer escolhas. Muitas pessoas que me viam na emissora não sabiam direito como eu era. Não tinha espaço para desenvolver raciocínios sobre assuntos para além do esporte. Hoje, já sabem o que penso sobre temas diversos. Conhecem mais a minha infância, adolescência, os problemas que enfrentei, os traumas emocionais e o porquê de eu pensar dessa maneira.

 

Casagrande jogando no time de Torino, na Itália - Foto arquivo pessoal

Casagrande jogando no time de Torino, na Itália – Foto arquivo pessoal

 

Esporte e política sempre caminharam lado a lado durante a sua trajetória. Por que os atuais atletas evitam se manifestar politicamente?
Esporte e política caminham juntos desde o começo da história. Os Jogos Olímpicos de Atenas surgiram democraticamente a partir de uma variedade de esportes e pessoas. A Copa do Mundo de futebol não foge disso também. Nada acontece no esporte sem política envolvida – para o bem ou para o mal.

Só que 80% dos jogadores da nossa seleção nem sequer votam. Esses caras se transformaram em esportistas egoístas e alienados. Preocupam-se somente com aquilo que possuem e não se cansam de ostentar. Para eles, o Brasil não precisa mudar. Café, almoço e jantar são oferecidos a eles, que viajam em Primeira Classe – e muitos têm jatinho particular – e ficam nos melhores hotéis do mundo. Têm divertimento, escolas para os filhos. E pensam: “Por que preciso votar , se para mim o mundo não precisa mudar?”.

Acredita que o Brasil retorne da Copa do Mundo como campeão?
Eu não vejo o Brasil campeão. Dependendo dos adversários que a seleção tenha de enfrentar, após a primeira fase, acredito que chegue à semifinal. E para por aí. Há outras seleções com maiores capacidades para vencer o torneio, como a França, que está mais estruturada, e a Alemanha, na qual enxergo mais foco. Dificilmente, a seleção alemã vai mal em duas copas seguidas.

E tem também a Bélgica como uma surpresa agradável, porque conta com uma geração muito forte e talentosa – e que terá sua última chance. O time do Brasil é bom, mas diferentemente da Bélgica, por exemplo, ainda chega com dúvidas. O ufanismo exagerado, o ‘já ganhou’ e o excesso de confiança de uma grande parte da imprensa brasileira me preocupam. Não será uma tarefa fácil para o Brasil logo na primeira fase.

O Tite ainda tem algumas dúvidas sobre a convocação e como alguns atletas devem jogar, como por exemplo, se o Neymar deve atuar como um camisa 10, no meio de campo, ou como atacante.

Seleção Brasileira nas eliminatórias em 1985. Em pé, da esquerda à direita: Oscar, Leandro, Casagrande, Edinho, Carlos e Junior. Agachados, da esquerda à direita: Renato Gaúcho, Sócrates, Toninho Cerezo, Zico e Eder - Foto arquivo pessoal

Seleção Brasileira nas eliminatórias em 1985. Em pé, da esquerda à direita: Oscar, Leandro, Casagrande, Edinho, Carlos e Junior. Agachados, da esquerda à direita: Renato Gaúcho, Sócrates, Toninho Cerezo, Zico e Eder – Foto arquivo pessoal

 

Qual é a sua expectativa em relação ao desempenho do Neymar?
O Neymar foi bem na primeira Copa dele, em 2014. Na segunda, foi patético. E agora tem a terceira chance. Aparentemente, está focado, em forma e jogando bem. Mas tenho um pé atrás em relação a ele. Tenho dúvida se, já já, ele aparece em uma festa, ostentando algo. A grande dificuldade do Neymar é o foco. Em 2018, foi assim. Na véspera da estreia da Seleção contra a Suíça, naquela Copa, ele pediu para que o cabeleireiro pintasse o cabelo dele. Quem quer pintar o cabelo na véspera da estreia não está focado no jogo. Se vai estrear no dia seguinte, tem de ficar pensando como vai fazer gol, o que fará dentro do campo. Pedir a presença do cabeleireiro significa pensar no cabelo, na estética. Não dá para fazer uma coisa pensando em outra totalmente oposta.

Você tem três filhos e dois netos. Como vive a experiência com eles?
Eu adoro criança. Fui pai cedo, aos 23 anos. Sempre me diverti como pai. Trazia presentes a eles, quando retornava de Copa do Mundo ou de Olimpíada. Eu dei aos meus filhos tudo o que os meus pais não tiveram condições de me dar. Tiveram o prazer de ter camisas de várias seleções que eu trazia de viagens. Já com os meus netos, Henrique, 8 anos, e Davi, 5, o contato é mais raro, hoje. Porque, ao sair da Globo, venho acumulando compromissos diariamente e em horários diferentes. No ano que vem talvez eu consiga ter uma relação mais próxima deles todos.

Casagrande e seus filhos Ugo, Victor Hugo e Symon - Foto arquivo pessoal

Casagrande e seus filhos Ugo, Victor Hugo e Symon – Foto arquivo pessoal

 

Como foi a relação com o seu pai?
Ele me mostrou tudo, cultural e esportivamente falando. Eu virei corintiano por causa da família toda, mas o meu pai só falava em Rivellino e Corinthians o tempo todo. Aí, na Copa de 1970, eu vi o Rivellino jogar e pronto! Virei corintiano dos bons. Para além do esporte, meu pai me fazia assistir a filmes mudos ao lado dele. Clássicos da era de ouro de Hollywood, musicais, filmes de terror dos anos 1930, com Bela Lugosi… Graças a minha memória monstruosa, eu lembro de tudo. Como, por exemplo, do Al Jolson, o cantor lituano que se consagrou no cinema norte-americano, e da Mary Pickford, sucesso no cinema mudo e cofundadora da United Artists. Foi o meu pai quem me apresentou isso tudo. Com 5, 6 anos, eu já havia descoberto canções como “Domingo no Parque” (de Gilberto Gil), “Fio Maravilha” (de Jorge Ben Jor) e os festivais de música também por influência do meu pai. Ele era motorista de caminhão, e durante um bom tempo trabalhou em gravadora e editora. Aí trazia para casa um monte de discos de presente para mim.

 

Casagrande com seus pais, Walter e Zilda -Foto arquivo pessoal

Casagrande com seus pais, Walter e Zilda -Foto arquivo pessoal

 

Algum trauma nessa fase da vida?
O meu pai era maravilhoso, mas alcoólatra. Havia problemas dentro de casa. Por muito tempo, já que minhas duas irmãs se casaram e foram morar em outro lugar, eu ficava sozinho com eles em meio à confusão. Dócil, o meu pai, quando bebia, ficava agressivo, chato, provocador. Mas havia um outro fato, que hoje encaro como positivo: ser criado por três mulheres. Nas festas de família, então, eu participava das brincadeiras das minhas primas e tias, como passa anel, e me divertia muito junto com elas. E também assistia programa feminista com a minha mãe, que sempre me recomendava: “Waltinho, nunca faça mal para uma menina, não bata nela e a respeite”.

Recentemente, você chorou ao ser entrevistado na CNN. É raro isso acontecer?
Quando eu usava droga com intensidade, eu não sentia as emoções, porque ela congela os sentimentos. Ao ser internado em uma clínica, a grande tarefa foi descongelar os sentimentos. Foi difícil, porque eu me percebia emocionado e não sabia o que era aquilo. Com o tempo, porém, aprendi, durante o meu tratamento, que eu não deveria segurar as emoções. Segurá-las gera uma revolta contra nós mesmos. O que nos deixa leve, livre, sem remorsos é amar alguém e dizer isso a pessoa. E, mais ainda, sentir saudade e externar isso. Somente assim eu pude dizer ao Magrão (Sócrates, ex-jogador do Corinthians e da Seleção Brasileira), antes de ele morrer, que eu o amava, que eu sentia amor por ele.

E qual é o legado da Democracia Corintiana, daquele movimento político-esportivo que lutou, entre outras coisas, pelo fim da ditadura?
A Democracia Corintiana não deixou legado. Funcionou naquele momento e somente no Corinthians. Aquilo não se espalhou por outros clubes. Nenhum outro jogador comprou a ideia e tentou replicar em seu clube. Nenhum outro dirigente se apropriou do que a gente vinha fazendo e utilizou na sua gestão. As federações querem mais que os jogadores fiquem quietos. Os atletas que jogam no exterior, por exemplo, não se manifestam sobre política. Não correm risco algum. Mas, sim, os que trabalham aqui, jogam no interior do Brasil, na segunda, terceira e quarta divisões, ganham mil, dois mil reais, e ainda têm de pagar material escolar, alimentar e dar moradia aos filhos.

Eu não fico indignado com isso, porque eu já estou indignado com essa situação há décadas. O brasileiro tem mania de normalizar as coisas absurdas que só acontecem por aqui, como por exemplo, as chacinas. Eu nunca achei e não acho normal muita coisa que acontece no Brasil.

 

 

Foto Bob Wolfenson

Foto Bob Wolfenson

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