Cauã Reymond encarna um Dom Pedro I solitário, fragilizado e quase nada heroico no longa “A Viagem de Pedro”

por | ago 31, 2022 | Entrevista, Pessoas, Pessoas & Ideias | 0 Comentários

No mês do Bicentenário da Independência, Cauã revive Dom Pedro I em longa com direção de Laís Bodanzky. O filme ainda marca o início da carreira do ator como produtor e showrunner

Na manhã do dia 22 de agosto, o Palácio de Itamaraty se alvoroçou com a chegada de um célebre visitante. Às vésperas do Bicentenário da Independência, aterrissou em Brasília, ao som do Hino Nacional e sob escolta da cavalaria, Dom Pedro I. Mergulhado em formol e conservado dentro de um cálice de prata, o coração do imperador veio diretamente da cidade do Porto para duas semanas de homenagem. “Arauto da independência e representante primeiro da nossa democracia, ele deve ser tratado como se estivesse vivo e presente”, ressaltou, na ocasião, o Chefe do Cerimonial do Ministério de Relações Exteriores, Alan Coelho de Séllos.

Essa não foi a primeira vez que os restos mortais de Dom Pedro I passearam pelo Brasil – em 1972, durante a ditadura, seus ossos rodaram o país em um cortejo saudosista. “Curioso ato de devoção a uma figura tão dúbia”, reflete Cauã Reymond à 29HORAS. A partir do dia 1° de setembro, o ator estreia nos cinemas vestindo a pele do imperador – mas do avesso. No longa “A Viagem de Pedro” – que também marca a estreia mundial de Cauã como produtor –, heroísmo e glória são postos à prova, em uma superprodução de tom ácido e intimista.

 

Cauã Reymond – Foto Thomas Tebet

 

“O filme se passa nove anos após a Proclamação da Independência, durante a viagem de Pedro de volta a Portugal. Naquele momento, ele se prepara para guerrear contra seu irmão, Dom Miguel, pela sucessão ao trono português, e já se vê enfraquecido pela doença que o mataria três anos depois”, explica Cauã. No roteiro idealizado por ele em parceria com Laís Bodanzky, Luiz Bolognesi e grande time, o ex-imperador, vendo-se sozinho no oceano, parte em uma viagem por seus erros e suas angústias. “Não há nenhum registro histórico que descreva esse período. Tudo que narramos é nossa versão do que poderia ter se passado em seu subconsciente ali.”

Despido do glamour, da saúde e dos nobres títulos, Pedro ganha camadas de fragilidade, vulnerabilidade e insegurança. “Nossa ideia era desnudá-lo de qualquer sacralidade ou reverência. No longa, Pedro é humano, e apenas isso.” Idealizado em 2013, rodado em 2018 e lançado oficialmente em 2022, durante o Festival de Gramado, “A Viagem de Pedro” vem em momento oportuno. “Não foi algo planejado, mas era para ser assim. Nosso filme propõe uma reflexão sobre quem o Brasil tem chamado de herói da pátria”, medita.

 

Cauã Reymond – Foto Thomas Tebet

 

Mulheres a bordo

Se nas epopeias clássicas, os poetas rogavam às deusas e musas do Olimpo o êxito de suas jornadas, em “A Viagem de Pedro” quem guia essa travessia interior são as muitas mulheres de seu convívio. Amélia, Leopoldina e Domitila são invocadas para confrontá-lo nesse solitário mergulho pelo passado. “O feminino teve papel crucial na vida e no governar de Pedro. Nada mais natural que ele retornar ao seu subconsciente nesse momento de desamparo e aflição”, analisa a diretora e co-roteirista do longa, Laís Bodanzky.

A mente brilhante por trás das produções premiadas “Chega de Saudade” (2007) e “Como Nossos Pais” (2017) foi a escolhida por Cauã para lançar luz sobre essas figuras que, em palavras dela, “sempre tiveram sua relevância histórica reduzida a seu gênero”. “Pintadas pelos documentos da época como ‘amantes’ do imperador, essas mulheres ao redor de Pedro foram, na realidade, grandes articuladoras do poder. Leopoldina, por exemplo, foi quem firmou as bases para nosso processo de independência. Enquanto mulher, nas rédeas de uma produção dessas, me sinto honrada por expor essa outra face da história.”

Laís Bodanzky no Septimius Awards em que "A Viagem de Pedro" foi laureado como Melhor Filme Americano da temporada - Foto divulgação

Laís Bodanzky no Septimius Awards em que “A Viagem de Pedro” foi laureado como Melhor Filme Americano da temporada – Foto divulgação

Sob essa nova e feminina ótica, debates sobre masculinidade tóxica, misoginia e racismo ganham destaque inédito. Em cenas inteiramente rodadas em dialetos originários, atrizes de ascendência africana – destaque para a angolana Isabél Zuaa – homenageiam a cultura de sua terra e falam, sem tabu, sobre prazer, sexo e ancestralidade. “Pedro é uma das maiores representações do domínio patriarcal brasileiro. Dizia-se liberal, antirracista, devoto ao povo, mas, para que tivesse a chance de ser lembrado e glorificado, quantas narrativas tiveram de ser silenciadas? No filme, essas vozes são amplificadas à medida que esse ‘herói’ é desconstruído e, sozinho com suas tormentas, se mostra dúbio, frágil e vacilante”, conclui Laís.

 

Vida de navegante
Em 42 anos de travessia pessoal, Cauã também teve de enfrentar seus revezes particulares. Filho de pais distantes, viveu boa parte da adolescência à sua própria sorte, em terras que não eram suas. “Eu havia abandonado minha carreira como modelo e passei alguns anos nos Estados Unidos, vivendo do que dava. Trocava lâmpada e limpava o chão em troca de aulas de teatro. Com o pouco que ganhava, uma refeição por dia às vezes era luxo, mas conseguia manter o sonho vivo.”
De lá para cá, foram onze novelas, 23 longas e oito participações em séries globais. Vieram junto uma legião de fãs e o lisonjeiro – porém taxativo – rótulo de galã. “Minha aparência me rendeu personagens memoráveis, mas também limitou meus desafios”, desabafa o ator, que tem encontrado, atrás das câmeras, um meio de se revelar por inteiro, em suas muitas faces. “Descobri que sendo produtor ou diretor, posso mergulhar em personas ainda mais complexas, e ir além da imagem que o público construiu e espera de mim.”

Em 2008, coroou essa descoberta no premiadíssimo “Se Nada Mais Der Certo”. No filme – dirigido por José Eduardo Belmonte, produzido com auxílio financeiro de Cauã, e, à época, laureado Melhor Longa de Ficção no Festival do Rio –, o ator vive um jornalista perturbado, que se envolve em um triângulo amoroso golpista. “Foi a minha primeira produção desse outro lado, oferecendo não só minha arte na prática, mas meu apoio e olhar de fora. Pude, assim, encarnar um personagem com suas dores acima de seus amores, diferente de tudo que já havia feito até ali. Sem dúvidas, esse foi meu trabalho mais marcante. Esse e ‘A Favorita’, novela que está em reexibição nas tardes da Globo e marcou minha estreia como protagonista jovem”, conta o multiartista.

 

Cauã Reymond – Foto Thomas Tebet

Sem a menor pressa para escolher entre as telas e os sets, nos próximos meses Cauã retorna às noites globais na pele do gerente de uma plataforma de petróleo Dante, na segunda temporada de “Ilha de Ferro”, ao mesmo tempo que se lança como showrunner em duas produções para o streaming. Em uma delas – a documental “Mata-Mata”, para o Globoplay –, ele descortina os bastidores da negociação futebolística; na outra, ainda sem nome ou data de estreia prevista, viaja de volta ao universo da moda e do entretenimento.

Seja como tripulante ou capitão dos sets, Cauã é do time dos navegantes ousados em mares tranquilos. Ao mesmo tempo que aponta para novos e instigantes caminhos, mantém as bases firmes, ancoradas no chão. Se quer retornar ao estrangeiro para ampliar seu império? Anunciem o “não” à Hollywood: ele declara que fica. “Me lançar no mercado internacional já foi uma ambição, mas há 10 anos deixou de ser meu objetivo de vida. Quando Sofia, minha filha, nasceu, eu percebi que o mundo era pequeno e o tempo, curto demais. Claro que posso viajar ao exterior por alguns meses para um trabalho ou outro, mas é no Brasil que meu coração está. Entre ser visto por milhões e ser lembrado por ela, escolho a segunda opção. É esse legado que me fará sentir herói, um dia.”

 

Cauã Reymond na pele de Pedro - Foto Fabio Baga

Cauã Reymond na pele de Pedro – Foto Fabio Baga

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