O ator e diretor Selton Mello narra sua trajetória em livro recheado de memórias e lança em dezembro a sequência do longa que conquistou enorme sucesso há 25 anos
Aos 51 anos, Selton Mello já acumula incríveis quatro décadas de carreira. Isso porque ele começou cedo, ainda criança na TV. Vivenciou logo o sucesso, mas também o fracasso, e hoje se tornou um jovem veterano. “É como se eu começasse a virar o rumo do meu barco, sempre trabalhei muito, agora quero encontrar a praia”, reflete sobre seu novo momento. Hoje, Selton está sintonizado na frequência da maturidade, que espelha outra característica aflorada – ser criterioso.
O ator e diretor escolhe a dedo projetos, algo que conseguiu depois de muita dedicação e trabalho. Ele protagoniza “Ainda Estou Aqui”, filme dirigido pelo premiado Walter Salles (de “Central do Brasil”) ao lado de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, com estreia programada ainda neste ano. E, para a alegria do público, roda a sequência de “O Auto da Compadecida”, longa que conquistou enorme sucesso há 25 anos e consagrou a dupla Chicó e João Grilo, formada por Selton e seu parceirão Matheus Nachtergaele. A estreia está marcada para o dia 25 de dezembro.
Para coroar os atuais feitos e celebrar ainda mais sua vida dedicada à arte, Selton Mello lança a autobiografia “Eu Me Lembro”. A trajetória é narrada em primeira pessoa, em resposta a uma série de perguntas feitas por 40 amigos – também estrelas da TV, teatro, cinema e literatura. “Foi uma ideia singela, mas uma boa ideia”, define. Ele conversou com a 29HORAS sobre vida, arte, memória e projetos. Confira a seguir os principais trechos:
No livro, você diz se considerar uma pessoa que está em constante mudança, com muitos projetos. Afinal, você é mais mutável ou um típico capricorniano, um cara estável e centrado?
O capricorniano não é previsível, sou uma mistura. Tento traçar um caminho – sou capricórnio com virgem, então é muito foco, com organização e planilha. É muito exaustivo ser eu, não recomendo (risos). Mas gosto de me mover, adoro as várias áreas das expressões artísticas. Às vezes curto atuar, outras vezes me enfio por detrás das câmeras e me dedico à direção, como foi no começo de ‘Sessão de Terapia’, em que dirigi todos os episódios das primeiras temporadas. Isso significa uma novela, foi abissal o mergulho!
E apesar do livro que lancei, não me considero um escritor. Para mim, é um balanço dos 40 anos de carreira. O livro passou a fazer sentido quando descobri que estava na hora de falar sobre a doença da minha mãe, que tem Alzheimer. Foi quando me dei conta de que era importante escrever sobre memória. Sou filho de uma mulher fabulosa que perdeu a memória. Seja na atuação, na direção ou no livro, no fundo espero que as mensagens cheguem a um bom lugar, são garrafas jogadas ao mar.
Em resposta a Rodrigo Santoro, você diz que “o ator é uma antena” e que tudo pode servir de alimento a ele. Do que você tem se alimentado? E em que sintonia está a sua frequência?
A gente deve ficar ligado em tudo, mesmo! Desde referências refinadas até o que for muito popular. Tenho um cuidado de não me fechar em uma bolha, de alargar as possibilidades dos meus conhecimentos. Quero assistir a programas de calouros do SBT, ler Chico Bento, Proust, quero ver filme da Mubi (streaming de filmes de arte), quero assistir a comédias do Adam Sandler, também consumo memes, quero tudo! E a minha frequência, hoje em dia, é a da maturidade. Apesar da minha mente ser agitada, encontrei uma calma muito boa agora com 51 anos, estou gostando muito! Grande parte da minha vida passei tentando agradar aos outros, não faço mais isso. É como se eu começasse a virar o rumo do meu barco, sempre trabalhei muito, agora quero encontrar a praia…quero dicas de viagem que vocês possam me dar! Estou mais interessado nisso! É cansativo começar criança, sou um jovem velho ou jovem veterano, já vi muita coisa.
Faltou alguém no livro?
A ideia foi trazer 40 pessoas que compartilharam questões sobre os meus 40 anos de carreira. Chamei pessoas que admiro, algumas com quem trabalhei, outros com quem ainda não trabalhei. Faltaram pessoas, sim! Vamos ver se vivo mais algumas décadas, assim aumento o projeto, faço novos volumes. Também fiz questão de não trocar as pessoas, algumas não estão mais aqui, partiram e não puderam ler a resposta. Mas quis manter suas indagações, não gosto de deixar alguém sem resposta, como Paulo José, Pedro Paulo Rangel, Rolando Boldrin, pessoas que foram fundamentais na minha vida.
Por que foi necessário que amigos e colegas trouxessem perguntas para compor a sua autobiografia? Seus questionamentos a você mesmo também tiveram espaço?
Meus questionamentos tiveram todo o espaço. Foi mais fácil que eles perguntassem, sinceramente. Mas foi uma forma de comemorar esse tempo todo carreira, algo que fiz pouco na vida. Sempre trabalhei muito, mas não parei para celebrar os resultados. Então, comemore! Quero deixar isso registrado nesta entrevista para quem nos lê… Se você passou em uma prova, celebre que deu certo! Se seu negócio está indo bem, comemore! Esse livro é uma forma de celebrar os meus 40 anos na arte, que marcaram a vida de muitos brasileiros, me fizeram bem e ao público também. Teria dificuldade de escrever sozinho, esse formato me ajudou na elaboração de tudo.
Você escreve que morou em Nova York recentemente. O que mais te surpreendeu nessa experiência?
Morar fora do país era um dos tópicos daquelas listas de desejos. Foi incrível! Adorei Nova York, cheia de estímulos por todos os lados. O artista precisa do tempo de abastecimento, caso contrário replicamos coisas velhas e muito autorreferentes. Precisamos saber parar, escolher, é uma arte. A viagem foi boa, mas também para ter tempo de olhar para as feridas, para as dores.
Você lembra no livro que a atuação começou ainda na infância. E como foi se tornar diretor? Você se sentiu um menino de novo?
Fiquei com os olhos brilhando, de ter a possibilidade de criar de forma mais ampla. Quando você dirige, é criador da engrenagem, tudo vem de você, é muito estimulante. Adoro dirigir! Hoje em dia, talvez goste mais de dirigir do que atuar. Mas estou indo devagar. Mais do que nunca me tornei uma pessoa criteriosa. Escolho a dedo os projetos, trabalhei muito para poder ter esse momento, para poder ser profeta da minha própria história, como digo no filme ‘Lavoura Arcaica’, dirigido pelo Luiz Fernando Carvalho.
Falando em direção, você protagoniza “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles e que estreia neste ano. Como é dividir esse filme com Fernanda Montenegro e Fernanda Torres?
Esse filme foi o máximo! Amei trabalhar com o Walter, é um dos maiores diretores do mundo, não apenas do Brasil. Em qualquer lugar do mundo, todos o respeitam. Tive a chance de fazer o Rubens Paiva, pai do Marcelo Rubens Paiva, com roteiro baseado no livro dele, foi uma super responsabilidade. É a história do homem que foi levado para dar um depoimento durante a Ditadura Militar e nunca mais voltou, e os filhos nunca mais souberam do pai. Meu trabalho foi com a Fernanda Torres, minha amiga, uma grande atriz, não tive a sorte de atuar com a Fernanda Montenegro, pois elas dividem o mesmo papel, mas nos encontramos nas leituras.
Quem são os melhores diretores brasileiros, na sua opinião?
Olha, tem muita gente! Sou muito fã do Kleber Mendonça Filho, é um cara especial, gosto muito do jeito que ele pensa, não apenas o cinema, mas a vida. Gosto do humor dele! Adoro o Karim Ainouz, acho brilhante, desde ‘Madame Satã’, venho assistindo aos seus filmes com muita admiração. Ele tem a capacidade de fazer longas muito distintos. Sou fã de Gabriela Amaral Almeida, que é craque no mundo do terror, gênero que conheci recentemente em ‘Enterre Seus Mortos’, em parceria com Marco Dutra, outro grande diretor brasileiro. Também admiro o Gabriel Martins, que dirigiu ‘Marte Um’, que me emocionou bastante.
Você enfatizou em outras entrevistas e no seu livro que Marjorie Estiano é uma das melhores atrizes no Brasil. Vocês dois estão em “Enterre Seus Mortos”, que deve estrear no ano que vem. Como é atuar com Marjorie? Para você, o que se revelou nesse novo trabalho conjunto?
O filme é baseado no livro de Ana Paula Maia e já considero um dos meus melhores personagens, foi uma experiência impressionante, nunca tinha feito um filme de terror. A Marjorie é a nossa Cate Blanchett, ela é genial, uma mulher inteligente, nós rimos e nos emocionamos juntos, a bola que a gente troca é muito boa! É uma alegria encontrar com a Marjorie, na vida e na arte.
No seu livro, você é bastante elogioso ao trabalho de amigos. E qual é o seu melhor trabalho até hoje? Qual é a sua maior qualidade como ator?
Aproveitei para enaltecer muita gente, alguns que ainda estão no jogo e outros que não estão mais. É uma profissão cruel, porque uma hora você está em evidência e em outros momentos é esquecido. São altos e baixos, então enalteci meus colegas, que sobrevivem ao fracasso e ao sucesso. É muito difícil responder qual é meu melhor trabalho até hoje, é como perguntar qual é o filho favorito. Mas minha maior qualidade como ator é não ter perdido a pureza do ator menino, procuro manter essa criança viva, quero permanecer com frescor, tento me livrar das técnicas e das certezas.
Após 25 anos, você volta ao filme “O Auto da Compadecida”, que em breve ganhará uma sequência nos cinemas. Os amigos Chicó e João Grilo mudaram?
Foi muito louca essa experiência, muito divertida e assustadora, porque mexemos em um clássico, mas fizemos isso com muita propriedade e maturidade. Nesse tempo, passei a dirigir, o Matheus Nachtergaele também dirigiu um filme. É uma moçada muito mais preparada, não somos apenas atores, agora ajudamos a pensar o roteiro, a montagem, a linguagem… Foi mágico! Botei a roupa e virei o Chicó de novo e olhava para o Matheus, via o João Grilo novamente. A equipe toda ficou chocada, de queixo caído! Eu e Matheus não trabalhamos muito juntos nesses 25 anos, e isso foi ótimo para a dupla, os amigos ficaram preservados!
O filme foi um grande sucesso na época e fonte de bordões que reverberam muito entre o público até hoje. Por que houve essa identificação tão grande?
Vou dar a resposta do Chicó: ‘Não sei, só sei que foi assim’ (risos). As pessoas amam o filme porque é puro e sofisticado na sua simplicidade. É o Nordeste, a representação da nossa cultura solar e rica, que veio do sertão. São dois personagens humildes tentando sobreviver. É um amor por esses dois palhaços, entramos no coração dos brasileiros.
“O Auto da Compadecida 2” marca dez anos da morte de Ariano Suassuna. Qual aspecto da obra do autor você mais admira? Você gostaria de trabalhar com textos de quais outros escritores brasileiros?
Ariano Suassuna é um mestre, é o nosso Cervantes, nosso Shakespeare, um homem de uma sabedoria absurda e um humor muito próprio. Amo ver as entrevistas dele, adoro tudo o que ele escreveu e pensava. E tenho desejo de levar Machado de Assis para as telas, é uma vontade antiga e espero realizar em breve. Mas é como diz Raduan Nassar, ‘o segredo é botar um olho nos livros e um olhão na vida’, ou seja, as referências artísticas sempre vão existir, mas é importante olhar ao redor.
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