Artista múltipla, Vera Holtz estreia a peça “Ficções”, em São Paulo, e fala de projetos no cinema para o novo ano

por | jan 2, 2023 | Entrevista, Pessoas | 1 Comentário

Dona de uma capacidade criativa impressionante e multiplataforma há muito tempo, a atriz Vera Holtz estreia a peça “Ficções” na capital paulista e não descarta as inúmeras possibilidades do acaso e da intuição em sua recheada carreira

Sobre um palco iluminado, ao som imponente de um único violoncelo, Vera Holtz se permite assumir qualquer forma. Ali ela vira bicho. Vira planta. Vira objeto de cena, matéria-prima teatral, ferramenta do espetáculo. Canta, recita, seu corpo e sua voz em movimento, ressoando. “Nessa artesania preciosa que é o teatro, sou um instrumento”, explica a atriz, que hoje investe toda sua versatilidade em cena, na peça “Ficções”, em cartaz no Teatro FAAP, em São Paulo. Com texto e direção de Rodrigo Portella, o monólogo livremente inspirado no best-seller “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, de Yuval Noah Harari, propõe reflexões a respeito da evolução humana e suas ilusões. “Aqui versamos sobre a capacidade do ser humano de criar e crer, além das consequências, nas ficções que cria.”

Vera Holtz - Foto Ale Catan

Vera Holtz – Foto Ale Catan

 

Com 69 anos de idade e quase 50 de carreira, Vera bem entende dos poderes de uma força criativa pulsante. Nascida e crescida nas bordas de Tatuí, no interior de São Paulo, fez de sua capacidade imaginativa uma plataforma propulsora. Aos 20 anos, pôs a casa e o acaso na mala e se mudou para a capital. Formou-se nas Artes Plásticas, Dramáticas e nas da reinvenção. De lá para cá, adicionou 55 peças teatrais, 28 filmes e 40 produções televisivas no currículo, viveu personagens icônicas em telenovelas premiadas e angariou seus 1,2 milhão de seguidores no Instagram, na pele da “Vera Viral”, uma “entidade criativa, fotográfica e crítica que se apropria das redes como forma de expressão”. Em fotografias superproduzidas de cunho crítico, reflexivo e incrivelmente cênico, ela parece instituir às redes o teatro estático. “É como se fosse um único frame de uma esquete que a minha intuição me pede para apresentar ao público.”

Nesta entrevista exclusiva à 29HORAS, Vera recordou sua infância no interior, refletiu sobre o futuro da humanidade e de suas ficções – estejam elas dentro ou fora das telas –, elucubrou sobre o papel das redes sociais na opinião pública e deu detalhes sobre suas futuras produções. Confira a seguir trechos dessa conversa:

Foto Ale Catan

Foto Ale Catan

 

Você nasceu e cresceu em Tatuí; depois, se mudou para a capital; e, agora, flui entre SP e Rio. Que memórias você carrega dessa infância no interior? Há algo de Tatuí que permanece na Vera cosmopolita de hoje? Onde, hoje, se sente em casa?
Nasci e cresci entre Tatuí, Pereiras e municípios adjacentes, na década de 1950, filha da geração criativa e combativa do pós-guerra. Minhas memórias no interior são de absoluta liberdade. De sair para lavar roupa com as lavadeiras, tirar leite da vaca, comer toda fruta direto do pé. Ali aprendi tudo que sei sobre a natureza humana e o meio ambiente, naquela aldeia de ascendência italiana onde todos tinham autonomia para me criar e me instruir. Dali, aos 20 anos de idade fui para São Paulo estudar Artes Dramáticas na USP e depois segui para o Rio, onde consolidei meus contatos profissionais e minha carreira. Hoje, fluo entre todos esses pontos e percebo que esse espectro de moradia é muito amplo para mim. Eu moro em todo lugar que me acolher e me permitir criar conexões. Tenho lares em todo canto. Mas dos 60 para cá, tenho sentido aquela profecia mitológica se concretizando: dizem que os elefantes sempre voltam às origens, e eu me percebo nessa fase, de retorno.

Quando a arte entra na sua vida?
Desde cedo, eu e minhas quatro irmãs aprendemos música, no Conservatório de Tatuí. Eu estudava piano com a tia Rita, que também era professora de canto lírico, e tio Rolf, pintor de natureza morta, me incentivou a amar as Artes Plásticas. O teatro veio me capturar depois.

Por falar em teatro, você acaba de estrear em São Paulo a peça “Ficções”, inspirada no livro “Sapiens”, de Yuval Noah Harari. Como surgiu o convite para essa produção? Você já tinha contato com essa obra?
Já conhecia o livro e presenteei muitas pessoas com ele. Muito me encanta poder refletir sobre essa capacidade do ser humano de criar e crer no que cria – e sobre como isso pode influenciar o comportamento de gerações, e criar obstáculos à nossa evolução. Quando Rodrigo Portella, o diretor e roteirista, me convidou, ele não tinha nada planejado, só sabia que queria uma mulher, um Sapiens fêmea, para contar essa história e provocar essa reflexão. Aceitei de cara.

Aliás, aproveitando o ensejo da peça: a que rumo caminha a humanidade? A quais ficções estamos submetidos hoje?
Tudo que nos cerca, e não é natureza, é ficção, criação do ser humano. Religiões, leis, idiomas, o nome de todas as coisas e todas as ideologias: são todas ordens imaginárias que criamos e em que cremos coletivamente. Acredito que, hoje, estamos em um momento de ruptura. No caminho para transformação de vários dos nossos sistemas de crenças. Não sei ao certo a qual destino esse caminho nos levará, mas creio que a evolução é o motor.

Vera reproduz cenas da peça "Ficções", com direção de Rodrigo Portella - Foto Ale Catan

Vera reproduz cenas da peça “Ficções”, com direção de Rodrigo Portella – Foto Ale Catan

 

Você já antecipou que, logo após “Ficções”, pretende partir para mais um projeto no teatro: uma peça-adaptação da obra “Finnegans Wake”, de James Joyce. Como você escolhe as peças e os papéis aos quais se lançará?
Por incrível que pareça é minha intuição quem escolhe. Antes de tomar qualquer decisão, eu sempre peço um tempo para sentir o que aquele trabalho espera de mim e se é realmente de mim que ele espera algo. Sou flexível, porém rigorosa. Gosto de receber a proposta e deixá-la em efervescência. Se essa obra permanecer reverberando dentro de mim nos dias que se seguirem, eu sei que devo acolhê-la. Se ela não se fixar, prefiro deixá-la ir. E não há problema algum nisso. Os papéis têm vida própria. Se eu não os puder vestir, eles vão caber em outro alguém. Há tantos talentos neste país!

Aliás, de Mãe Lucinda (em “Avenida Brasil”) a Candê (em “Passione”), são muitas as faces que você vestiu ao longo desses mais de 40 anos de carreira. Você costuma pegar para si características das personagens que interpreta? De que forma essas ficções se unem para compor a Vera real?
Na realidade, acho que ao invés de me emprestarem características ou comportamentos específicos, as personagens que vivo me expandem. Existem infinitas possibilidades de dinâmicas emocionais a serem atingidas pelos seres humanos, que vão desde a depressão profunda até a euforia. Eu sinto que meu trabalho me permite fluir por essa linha, em todos os seus níveis e espectros. Cada persona me exige um estado psíquico, social, filosófico e técnico diferente, e, através dela, vou expandindo meu repertório humano – afinal, a humanidade é a matéria-prima do meu trabalho. Em “Mulheres Apaixonadas” (2003), por exemplo, vivi a Santana, uma mulher alcoolista, que tinha que lidar com a solidão de seu vício e tudo que derivava dele. Em “A Lei do Amor” (2016), tomei a pele de uma assassina, e precisei mergulhar em seu interior para racionalizar o que motivava seus crimes. No fim, minhas personagens são um exercício de empatia tremendo. Acho que esse é o grande legado que elas deixam para a Vera daqui de fora.

Nos últimos anos, você também se destacou por sua atividade nas redes sociais. A Vera Viral foi um hit! Como e por que surgiu esse projeto? De onde vêm as inspirações para essas criações?
A Vera Viral é uma entidade própria, que age em seu próprio tempo e à sua própria ordem e gosto. Eu não mando nela, ninguém manda. Ela aparece quando a intuição pede, quando uma ideia vem, quando uma imagem se forma na minha cabeça e eu preciso que ela seja expandida para além de mim, nas redes sociais. Aliás, ela nasceu nas redes e quer permanecer ali. Ela não produz a todo momento, não segue a lógica da correria que a internet quer impor. Nela, encontrei uma forma de colocar em prática toda a capacidade criativa que deixo guardada aqui desde a faculdade de artes plásticas. As inspirações? Elas vêm do mundo, do noticiário, das ruas, de quem está ao meu redor. Nunca sei quando e como essa personalidade vai se expressar, ela só aparece. Acho que é por isso que ela fez tanto sucesso. Por isso e pela nossa produção primorosa, que fica a cargo dos talentosíssimos Renato Santoro (o fotógrafo), Charles Asevedo e Evaldo Mocarzel, que é quem titula as obras.

 

Produção fotográfica da "Vera Viral" no Instagram - foto reprodução | Instagram

Produção fotográfica da “Vera Viral” no Instagram – foto reprodução | Instagram

 

Na sua opinião, como as redes sociais ajudam – ou atrapalham – o trabalho de um artista hoje?
Mais que um obstáculo ou uma dádiva, as redes sociais são, para mim, uma forma de se ler o mundo. Assim como um livro, um telejornal ou uma novela, a internet é uma janela para a realidade. E das poderosas, pois condensa todo tipo de gente, todo tipo de informação e todo tipo de crença. As redes sociais criam contratos de pensamento para além da realidade – veja as ficções de Harari aqui, novamente (risos) –, que influenciam, sim, a arte e o trabalho dos profissionais da área. Não podemos nos manter alheios a isso. Hoje não se lê mais tanto quanto antes: preferem-se os caracteres rápidos. Também não se tolera muito a monotonia: é preciso que os diretores audiovisuais escrevam capítulos mais dinâmicos, pensem em enquadramentos mais atrativos e desenvolvam conteúdos mais cativantes ainda. A arte tem se adaptado a esse novo combinado social e seguido seu rumo.

E quanto à TV? É um desejo voltar às telinhas? Aliás, como você tem percebido o mercado televisivo com a chegada dos streamings? Para você, qual é o futuro das telenovelas nacionais?
Para ser bem sincera, o que tenho engatilhados são trabalhos cinematográficos, já em vias de lançamento. Em fevereiro, sai pela Roseira e pela Kinossaurus Filmes, “Tia Virgínia”, um longa com direção de Fabio Meira, que encabeço ao lado de Louise Cardoso e Arlete Salles. Mais para frente, também lanço com a O2 Filmes o documentário ficcional “Quatro Irmãs”, de Evaldo Mocarzel. Aqui, revivemos a história da minha família, nos arredores de Tatuí. Quanto ao retorno às novelas, não sei ao certo quando virá – mas também não acho que esse tipo de narrativa esteja fadada ao esquecimento. Na verdade, sinto que o mercado se beneficiou bastante com a chegada do streaming e seus formatos inovadores, que podem muito bem ser aplicados à TV aberta. Vejo que as novelas, clássicas, como conhecemos, nunca morrerão. Tivemos aí “Pantanal”, uma produção tão diferenciada, com seu próprio ritmo narrativo, que conquistou o Brasil justamente por essa pureza e liberdade. Para mim, enquanto houver alguém criando e disposto a se dedicar às novelas, elas resistirão, com público cativo.

Bom, e depois de tantos trabalhos renomadíssimos, papéis inesquecíveis e prêmios, o que Vera ainda sonha realizar?
Eu nunca fui uma pessoa de criar expectativas. Acho a coisa mais linda quem tem seus sonhos da vida. Mas eu nunca fui assim. Sou uma pessoa motivada. Quando algo vem a mim, mergulho por inteira naquilo, no presente. Não me atrai pensar no amanhã. Estou sempre aqui e agora. O acaso me basta.

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1 Comentário

  1. Esmeralda Franco

    Entrevista maravilhosa. Parabéns à repórter da 29 horas: soube captar o melhor da profissional Vera Holtz, essa artista fantástica!

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