Sob direção de Amir Haddad, a peça “Antígona” conta pela segunda vez com a interpretação de Andrea Beltrão
Uma narrativa de 2.500 anos soa contemporânea na interpretação de Andrea Beltrão, em peça que volta aos palcos do Teatro Poeira, em Botafogo, espaço do qual ela mesma é sócia – ao lado da também gigante Marieta Severo. É a segunda vez que Andrea encarna Antígona, personagem que rendeu a ela o prêmio APCA de melhor atriz em 2017. Dizer com clareza o texto da tragédia grega, escrita por Sófocles e traduzida por Millôr Fernandes, é um desafio por si só, que reflete sua grandeza e seu talento.
Há um paralelo interessante entre personagem e atriz – são duas mulheres questionadoras e insubmissas. Antígona pagou com a própria vida ao contrariar o sistema. Por buscar garantir ao irmão um fim digno, enterrando-o, ela acaba sendo condenada à morte. É um mito grego, uma história que era e é familiar. Nos últimos tempos, Andrea também é porta-voz, mesmo sem muita pretensão em ser, de pautas feministas, necessárias e atuais. Com uma preocupação natural e espontânea a respeito das questões do presente e do coletivo, ela submerge na própria subjetividade e nas discussões que norteiam as diferentes mídias atualmente – apontando caminhos e reflexões. “Tento dar o melhor mergulho que consigo. Mesmo que seja o mais imperfeito. Mas que faça sentido para mim”, medita. Em entrevista à 29HORAS, Andrea Beltrão discorre sobre o processo de montagem da peça e olha para as inquietações que a atravessam e estão em alta hoje em dia.
“Antígona” já foi vista por mais de 40 mil pessoas, um número expressivo e potente para o teatro no país. Como uma tragédia grega dialoga com o público brasileiro da atualidade?
Quando Amir e eu pensamos em montar “Antígona”, nosso primeiro impulso foi entender por que esse texto de 2.500 anos é até hoje uma das peças mais montadas pelo mundo. A tragédia grega para os gregos era e é familiar. As personagens são velhas conhecidas do teatro e da história grega. Então resolvemos trazer essa mesma familiaridade para a nossa montagem. Fizemos isso esclarecendo todos os componentes da história. Logo no início da peça, na primeira fala de Antígona, ela se refere a Laio. E quem é Laio? Quem é Cadmo? Quem é Penteu? Construímos uma grande árvore genealógica que fica exposta no cenário, onde todos esses nomes estão presentes e são esclarecidos durante a peça, e vão contribuindo para a nossa compreensão, espectadores dos dias de hoje. Além disso, os dilemas dos quais Sófocles trata na peça ainda são, infelizmente, as nossas maiores questões. Dilemas que ainda não conseguimos resolver.
O movimento cênico do diretor Amir Haddad inverte a lógica da tragédia grega, partindo do teatro para chegar ao mito. Como foi o processo de montagem? Quais foram os principais desafios de interpretar Antígona?
Amir e eu estudamos a origem da história, voltamos para o mito. Levantamos a biografia de todos os antepassados de Antígona que são fundamentais para a jornada da jovem condenada à morte por desafiar o Estado. Tudo nessa peça é um desafio para mim. Dizer com clareza o belo texto de Sófocles na tradução brilhante de Millôr Fernandes já é um trabalho e tanto.
Como é reencarnar uma personagem e viver essa história de novo? Muda algo em relação à primeira vez que encenou a peça?
Sim, muda! Três anos se passaram, muita coisa aconteceu. Vivemos uma suspensão dolorosa causada pela Covid, uma eleição conturbada, que, ainda bem, teve o melhor desfecho. E, pessoalmente, amadureci. Nesses três anos pude repensar a peça, e o que fazia para contar a história. Portanto, é uma novidade para mim e espero que também para quem venha assisti-la.
Você é sócia do Teatro Poeira, no bairro de Botafogo. Como foi materializar o projeto? Por que dividi-lo com Marieta Severo? Por que em Botafogo? Qual é a sua relação com a região?
O Teatro Poeira existe há 18 anos e no ano passado fizemos uma exposição com curadoria da Bia Lessa para celebrar essa data importante para nós. E essa parceria só seria possível com Marieta. Com ela, aprendi muito, continuo aprendendo, e temos infinitas afinidades. O Poeira é o nosso maior projeto juntas. É uma vida de aventura e alegria! E foi o diretor Aderbal Freire quem descobriu a casa, e nós fomos conhecê-la. Paixão à primeira vista. Não tínhamos um bairro definido para construir o teatro, mas agora que estamos em Botafogo, parece impossível estar em outro lugar.
Por falar nisso, quais são os seus lugares favoritos no Rio de Janeiro? Em um dia de folga, para onde gosta de ir? E em um dia corrido, por onde passa?
Meu lugar favorito é a praia. Adoro ir ao Poeira, ao cinema, andar de bicicleta. E ficar muitas e muitas horas em casa lendo. E assisto aos telejornais, gosto de saber de tudo que está acontecendo. Em um dia cheio, literalmente apenas corro para o trabalho.
Você também estará no elenco da nova série da Globo, “Histórias impossíveis”. O que é uma história impossível? Como é a sua personagem?
Na série, interpreto Meire, uma motorista de aplicativo exausta da rotina massacrante, uma história comum e possível. Mas uma mulher extraordinária, Bex, interpretada pela imensa Zezé Motta, chama o carro de Meire para uma corrida e muitas coisas se transformam na vida dela a partir desse encontro tão potente. Cada capítulo de “Histórias impossíveis” remete a uma data importante do calendário nacional, como o Dia dos Povos Indígenas, ao Dia Nacional das Pessoas Idosas e ao Dia da Consciência Negra. Serão cinco ao longo do ano.
Na última novela em que você esteve no elenco, “Um Lugar ao Sol”, a sua personagem, Rebeca, fez sucesso por retratar uma mulher que, aos 50 anos, mergulha em sua subjetividade e busca seu próprio prazer. Por que Rebeca foi tão prestigiada pelo público? Na sua opinião, o feminismo está mais assimilado pelas pessoas?
Talvez porque Rebeca represente muitas coisas das quais nós, mulheres de 50 ou mais, queremos ver naturalizadas. Como o direito ao prazer, à liberdade, sem a questão limitante da idade. O feminismo e muitas pautas absolutamente necessárias e vitais para os avanços que precisamos fazer em sociedade estão aí sendo mais mostradas e discutidas por todos nós. Podemos celebrar! Estamos caminhando devagar, mas vejo que estamos saindo do lugar retrógrado e moralista em que vivemos nos últimos quatro anos. É um avanço!
Você tem sido bastante procurada para falar sobre envelhecimento e a autoestima atravessada pelo tempo. Por que você acha que isso tem acontecido? E você diria que é ansiosa, te atrai pensar no amanhã? Ou você busca se fixar no presente?
Existe uma curiosidade que é um pouco excessiva sobre as questões do envelhecimento da mulher. Não vejo essas mesmas pautas serem dirigidas aos homens, por exemplo. Já enjoei um pouco desse papo. Acho que, no fundo, são tentativas de suavizar o envelhecimento feminino. Não há como fazer isso de verdade. O tempo passa, isso é um fato. Fico impressionada com a nova estética que está em voga, a da harmonização facial. Não consigo achar bonito, mas cada um faz o que bem entender com seu rosto, com suas marcas. E eu não fico ansiosa pensando no amanhã. Meu dia é bom, começo dentro do mar de Copacabana, nadando e vendo peixes e tartarugas. As tartarugas são muito velhas e nadam muito bem. Espero virar uma bonita tartaruga. Já que não virei jacaré depois das quatro vacinas que tomei com prazer.
Quais são as mulheres que te inspiraram e continuam sendo suas referências hoje?
Muitas mulheres. Marieta Severo, Renata Sorrah, Ana Bayrd, Fernanda Montenegro, Mariana Lima, Yara de Novaes, Bibi Ferreira, Cacilda Becker, Marilena (minha mãe), Rosa (minha filha). Ah, é uma lista interminável! Temos muitas brasileiras inspiradoras.
Como você, Andrea Beltrão, submerge em sua subjetividade e busca os seus desejos?
Tento dar o melhor mergulho que consigo. Mesmo que seja o mais imperfeito, o mais estranho. Mas que faça sentido para mim. Que seja o mergulho que escolhi dar! Aproveitando, vem dar um bom mergulho comigo aqui em Copacabana e depois vem mergulhar em ‘Antígona’, com o velho Sófocles. Que tal?
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