Gilberto Gil se despedirá dos palcos com a turnê “Tempo Rei”, que rodará o país em 2025

por | ago 30, 2024 | Cultura, Entrevista, Música, Pessoas & Ideias | 0 Comentários

A turnê de Gilberto Gil se inicia em março do ano que vem, em Salvador, e em seguida percorrerá outras cidades brasileiras. Os shows exaltarão o vasto repertório que compõe sua carreira de mais de 60 anos como cantor, compositor e instrumentista, sempre referenciado pelo público ao longo de gerações

“Não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido, transcorrendo, transformando, tempo e espaço navegando todos os sentidos”, canta Gilberto Gil na música “Tempo Rei”, de 1984. A canção agora nomeia a sua turnê de despedida dos palcos, que se inicia em março do ano que vem, em Salvador, e em seguida percorrerá outras cidades brasileiras. Os ingressos estão à venda na plataforma Eventim.

Gil quer desocupar o seu tempo, pretende levar seus dias mais tranquilos em casa, ditando os próximos passos sem pressa e anseios grandiosos. Aos 82 anos, ele afirma já não ser fácil realizar grandes turnês, apesar do gosto por estar perto do público. É hora de frear a correria. “Ficando mais em casa, vou achar naturalmente outras maneiras de ocupar (ou desocupar) os meus dias”, compartilha.

 

foto Giovanni Bianco

 

O tempo foi generoso com Gilberto Gil e, certamente, com seu público que pode apreciar suas poesias musicadas. “Como um dos maiores artistas do mundo, ele não poderia se despedir dos palcos sem antes fazer uma grande celebração. A obra de Gil é muito rica, então o conceito da turnê surgiu de forma muito natural, com o nome de ‘Tempo Rei’, uma música que consegue abraçar a sua importância”, reforça Pepeu Correa, CEO da produtora 30e que, em parceria com a Gege Produções, realizará a turnê.

O repertório será escolhido por Gilberto Gil, junto aos filhos Bem Gil e José Gil, responsáveis pela direção musical dos shows. Em entrevista à 29HORAS, o também imortal da Academia Brasileira de Letras discorre sobre o tempo, compartilha algumas memórias e outras filosofias, e antecipa mais detalhes da turnê. Confira!

O nome da turnê que você inicia em 2025 é “Tempo Rei”. Para você, o tempo é um agente que transforma as velhas formas do viver e ajuda a melhorar a sua obra (como faz com os vinhos) ou é um inimigo da permanência?
O tempo ajuda a melhorar a minha obra, a exemplo dos vinhos, como você colocou, mas também a faz envelhecer e, eventualmente, desaparecer depois de um transcorrer dele mesmo, ao mesmo tempo. O tempo é a palavra que criamos para falar desse mistério, desse deus por trás de tudo, o tempo passa e transforma.

Como você pretende passear por seu vasto repertório de mais de 60 anos de carreira? Quais serão os recortes e os enfoques na turnê?
Penso que a primeira coisa óbvia a considerar são as marcas lacradas de algumas das canções. Há uma memória que precisa ser respeitada e atendida. Muita gente vai querer ouvir suas canções preferidas. Haverá, certamente, um desfile de sucessos. Mas também outras surpresas. Eu espero que essa turnê seja no padrão histórico da minha relação com o palco, com a obsessão que tenho com a preparação, gosto muito de ensaiar! A lenda que corre é que cada ensaio meu é um show, mas a verdade é que há sempre nervosismos em estreias, em estar diante do público.
O tempo me ensinou os deleites do palco, o prazer e o gosto bom do encontro, com a minha própria música, depois com os músicos, em suas várias dimensões – e o tempo foi generoso e bondoso comigo, não me estressou, não me causou acidentes, e eu fui cantando por aí. Essa condição benigna de fazer o trabalho musical.

 

Gilberto Gil em turnê com sua família – foto Geovane Peixoto

 

Como você lida hoje em dia com o frisson de se apresentar para grandes audiências, em estádios e arenas?
Fui me acostumando a me apresentar para grandes públicos, grandes praças, estádios e tudo mais. Para mim, é mesmo mais difícil, mas dá-se um jeito. E vou trazer para o palco comigo homenagens a grandes artistas que me influenciaram. Desta vez, penso em cantar um Caymmi, um Luiz Gonzaga. Alguém mais, quem sabe… Veremos!

Na recente coletiva de imprensa que fez para anunciar a turnê, você disse que deseja “desocupar” o seu tempo despedindo-se dos palcos. Em seu grande sucesso “Palco”, você exalta a alegria de cantar evocando o “Fogo eterno pra afugentar / o inferno pra outro lugar”. O que mudou, essa chama esmoreceu? Com o que pretende “reocupar” o seu tempo daqui para frente?
As chamas sempre esmorecem, é claro. Eu mantive o gosto de subir ao palco e creio que será sempre assim. Mas fazer turnês extensas e intensas já não é tão simples. Eu não tenho boa memória, a minha tendência é esquecer os detalhes, mas me lembro de algumas viagens, lugares que visitei para fazer shows e lembro de descer de um trem na França, perto de Nice, para um show… esse acontecimento nunca me saiu da memória. Era uma correria para desembarcar com os instrumentos! São memórias assim, pouco relacionadas com o lado charmoso, eu fui carregador de piano. Nesse sentido, aos 82 anos fica mais difícil carregar pianos.
Há muito tempo venho pensando em desocupar o meu tempo, porque tocar, gravar, fazer música, encontrar pessoas, viajar em aviões, trens, ônibus, carros, navios… tudo isso ocupa um tempo danado. Chega de correria! Já são mais de 60 anos assim, é um bocado de tempo. Ficando mais em casa vou achar naturalmente outras maneiras de ocupar (ou desocupar) os meus dias.

No “Livro das Citações”, de Roberto Duailibi, há uma frase sua muito interessante: “Com a velhice, o corpo vai ficando solidário com a mentalidade”. O que você quis dizer com isso, exatamente? Ainda concorda com esse pensamento?
Essa é uma afirmação muito pessoal e particular. Não creio que haja um “exatamente” em tal frase. Concordo, no entanto, com a atualidade da ideia de que há uma “conformidade conforme a idade” entre todas as partes constituintes do eu.
Se adquirimos um certo equilíbrio em tudo o que somos, penso que é natural que essa solidariedade corpo-mente vá se dando melhor cada vez mais.

 

Gilberto Gil em posse na Academia Brasileira de Letras – foto Danielle Paiva / ABL

 

Além de um dos maiores compositores e cantores da música brasileira, você sempre foi muito admirado também por seu talento e sua habilidade como instrumentista. Você já teve problemas na voz e até perdeu uma das suas cordas vocais, algo que o forçou a fazer uma cirurgia na laringe. Mas como você diria que está a sua performance como violonista/guitarrista agora aos 82 anos de idade? E sobre a sua voz? Como você avalia a condição dela neste momento?
Inventei uma maneira muito pessoal de tocar violão, que foi se ajustando aos meus propósitos como instrumentista que acompanha seu próprio canto. Pertenço a essa vasta comunidade contemporânea dos “canto-autores” que se desenvolveram desde a última metade do século passado. Continuo adaptando meu violão e minha guitarra ao meu jeito de me acompanhar; e o meu canto ao que ainda pode a minha voz.

Nos seus retiros espirituais, você fala com Deus sempre que folga os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos e dos receios? Qual o Deus que te guia?
O deus que me guia é o deus desconhecido. Ou aquele que emana das múltiplas maneiras de captar o seu significado, desconhecido, a rigor. Vai-se buscando um nome aqui, uma forma ali, um sentimento acolá, e deus vai se manifestando, é “um vago deus por trás do mundo, por detrás do detrás”, como nos versos da canção “Quanta”.

Você tem filhos e netos que seguiram os seus passos e se tornaram músicos. O que você enxerga de seu nas canções da Preta e dos Gilsons? Na sua visão, onde o seu DNA se manifesta nos trabalhos dos seus “sucessores”?
Os meninos e as meninas da minha prole, os meus “sucessores”, são frutos do meio ambiente saturado de arte e criatividade que tem caracterizado a minha vida, a “nossa” vida. Natureza (DNA) e Cultura. Quem sabe, herança genética e meio cultural. Talento e formação.

 

Ao lado do filho caçula, José Gil, carregando as netas gêmeas Pina e Roma – foto acervo Flora Gil

 

A rica poesia presente em suas canções o levou à Academia Brasileira de Letras. Como é a vida de um imortal? Você tem poemas que não foram musicados? Já pensou em lançar um livro com essas criações inéditas? Ou um livro de memórias?
Há vários poemas que não foram musicados, outros cujas músicas foram esquecidas, outros que já foram “remusicados” por colegas jovens e muitos que, provavelmente, permanecerão canções inacabadas. Não tenho pensado em ter uma reedição especial desse material. Nem, tampouco, um livro de memórias.

Metade dos estudiosos da história da música popular brasileira diz que você foi o grande idealizador da Tropicália, enquanto a outra metade atribui esse epíteto a Caetano. Você vive afirmando que foi ele e ele rebate falando que tudo só aconteceu por causa de uma epifania sua. Afinal, quem é o “pai” da coisa? Ou o movimento é um filho com guarda compartilhada?
“Guarda compartilhada” é a última conclusão a que chegamos. Talvez não houvesse “Tropicália” sem a minha intuição ou sem a inteligência dele. Mas também, sem dúvida, sem a contribuição de toda a turma que se deu ao trabalho.

 

Gil ao lado de Caetano Veloso – foto Flora Gil / Instagram

 

Nesse mundo com tantas guerras e tanto ódio sendo destilado a todo momento, você ainda tem uma visão otimista, como cantou em “A Paz”, ao lembrar que foi “uma bomba sobre o Japão que fez nascer o Japão da paz”?
O lado perverso da criação humana continuará sempre oscilando entre a paz e a guerra, até que ocorra uma migração definitiva para um estado puro de existência ou de inexistência, algo que considero improvável.

Foto da capa: Giovanni Bianco

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