Quando Fabrício nos encontrou para a entrevista, havia em sua mão direita um anel prateado com a imagem de um pássaro com a cabeça voltada em direção à cauda. O que aparentava ser apenas um simples acessório, em meio a rica expressão de estilo do ator, remete a um conceito da sabedoria ancestral africana. Trata-se do Sankofa, que significa “olhar novamente para o passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.
Com um repertório muito plural de referências, que vai do dramaturgo Brecht ao candomblé, sem deixar de passar pelos desenhos animados e a inspiração que vem das ruas, Fabrício é um ator compromissado com o movimento negro e à procura de contar novas histórias que representem de fato o Brasil e a riqueza cultural do seu povo.
Não é de se surpreender que o soteropolitano seja o protagonista da cinebiografia “Simonal”. Dirigido por Leonardo Domingues, o longa estreia no dia 8 de agosto com a promessa de abalar os espectadores. Retrato de uma época em que fuscas coloridos engarrafavam as ruas e o chá-chá-chá competia com o iê-iê-iê, o filme incita o debate de assuntos que poucas grandes produções nacionais ousam tratar. Onde beira o racismo? O que foi a ditadura militar? Que estrago notícias falsas podem causar? São questões que a saga de Simonal nos leva a refletir.
Os mais novos talvez desconheçam, mas quem viveu os anos 1960 e 1970 sabe quem foi Simonal. Ele passou do sucesso absoluto – vendia quase que em pé de igualdade com Roberto Carlos – para o mais completo ostracismo. Dono de uma voz sem igual, considerada uma das melhores do país, ele dominava a plateia como músico e apresentador. Foi o primeiro cantor negro a fazer sucesso sem ser um sambista – e que sucesso.
Porém, uma falsa acusação de que ele era informante da ditadura acabou com a sua carreira, e também com o seu espírito. Manchetes como “o dedo de Simonal já é mais famoso que sua voz” foram reproduzidas pelo jornal Pasquim e outros veículos, sem que houvesse provas de suas delações.
Não foi o público que abandonou Simonal, mas sim a classe artística e a mídia que o boicotaram. Aos poucos, ele foi sendo impedido de se apresentar e, entristecido, teve problemas com a bebida. Mesmo recluso e batalhando contra o alcoolismo, Simonal não poupou esforços para provar a sua inocência. Em 2000, morreu de cirrose hepática, sem conseguir recuperar o seu brilho. O primeiro astro negro do Brasil parecia ter sumido da história.
“Um grande artista, talvez um dos maiores da história do país. E por fim, um grande injustiçado.”É assim que Fabrício define Wilson Simonal. O ator percebe, com muita satisfação, que o filme tem feito o público refletir. “Simonal nos dá a oportunidade de olharmos para o passado e pensarmos no que está por vir. Quem será o novo sujeito brasileiro? Ele deve entender que não é mais um jovem, amadureceu e agora deve tomar decisões que irão repercutir na nossa história. Há a dúvida se esse novo sujeito brasileiro pode dar conta de apagar as injustiças como os resquícios de escravidão no corpo negro, o genocídio indígena, os feminicídios, os crimes de homofobia e a violência de um país que está quase em guerra. Olhar para o passado pode nos dar essa oportunidade de alçar novos voos, para poder ver o que está por vir. Só assim podemos reconstruir a realidade”, afirma o ator.
Para Fabrício, a arte é um dos caminhos para a reconstrução dessa realidade, e ela anda de mãos dadas com a política. Ele defende que a arte e, em especial a performance, permite fazer uma releitura da vida, o que amplia a nossa visão para além das restrições do cotidiano. Já a política é o cotidiano, a relação contínua com os outros que está sempre sendo negociada. Inevitavelmente, a arte e a política envolvem o afeto – “É a energia projetada por alguém sobre você, tudo aquilo que te afeta”, define o ator. Parte indispensável de seu trabalho é procurar pontos que o liguem aos seus personagens, a história a ser contada e a realidade atual. Isso o ajuda a trazer paixão para a arte, o segredo para que ela possa mover as pessoas.
Sobre a conexão entre as narrativas e quem as conta, o artista comenta: “Há uma riqueza de fábulas, histórias e realidades no Brasil. Chegamos no momento em que é preciso também perguntar quem está querendo contar essas histórias. Porque não é mais possível apontar e narrar a história do outro sem que você esteja misturado no mesmo lugar.”
Como exemplo disso, ele explica que a falta de diretores e roteiristas negros nas grandes produções foi algo que reforçou muitos estereótipos e, por um bom tempo, inflou o mercado com filmes de violência nas favelas.
“Já estava saturador ver negro de tênis Nike com arma na mão. Não aguentamos mais ver esse tipo de retrato. Assim, o cinema deixa de ser denúncia e passa a ser entretenimento com violência. Talvez, filmes assim tenham perdido a capacidade de dialogar. Claro que devemos falar da violência, porque vivemos uma realidade superviolenta, mas é preciso trazer outras linguagens e outras poéticas […] Algo que o movimento negro exige é protagonismo. Com ele vem a possibilidade de renovarmos a nossa arte”.
O ator ressalta mais um fator importante que vem limitando a produção artística brasileira: ao invés de se aventurarem na construção de novas poéticas e buscar inspiração na pluralidade e riqueza do seu povo, muitos artistas optam por copiar o que vem de fora. O cinema nacional tem vários exemplos disso, roteiros engessados com clichês americanos e personagens que parecem viver no cotidiano de uma cidade europeia. Aos olhos do ator, essa preferência pela imitação sobre a criação é sobra de uma mentalidade de colônia – reflexo de um país que ignora a sua história, não dá valor para a sua gente e desacredita da sua capacidade.
“A fonte de luz do ocidente já se apagou. É como se nós estivéssemos olhando para uma estrela que já morreu e só nós estamos vendo-a brilhar. Avistamos apenas restos de brilho e deixamos de perceber a terra resplandecente em que pisamos. No Brasil, não há muito espaço para valorizar o que de nosso é rico, o que é fértil e nem o que é experimental. Está na hora de nos emanciparmos. Precisamos ver desabrochar histórias de outras fontes, não podemos mais ficar o tempo inteiro revalidando aquilo que foi estereotipado pela cultura ocidental. Essa fonte já morreu. É aqui que está sendo produzido o novo, mas ainda precisamos entender isso.”
De Genisson a Fabrício
Filho de um petroquímico e de uma funcionária pública que trabalhou em espaços culturais como a biblioteca e o teatro, Genisson Fabrício Boliveira Pereira nasceu na capital baiana em 1982. Criado com outros quatro irmãos e com muito afeto, teve a autonomia e a criatividade bastante estimuladas pelos pais.
Ele se recorda de como cada espaço que ocupou na infância fazia aflorar uma personalidade diferente. “Na escola eu era Genisson, porque era o primeiro nome. Era gago, usava óculos e aparelho, sentava na frente, era bem estudioso. Em casa, eu era o Fabrício. Eu era um demônio em casa!”, conta, gargalhando com as lembranças.
Desde pequeno, teve bastante contato com a arte. Sempre dançou muito e, por influência da mãe, passou a infância e adolescência vendo vários espetáculos, frequentando ambientes artísticos e lendo bastante. Aos 19 anos, começou a trabalhar para o IBGE, aplicando questionários aos moradores de Salvador; no mesmo ano, dava aulas de dança em academias e começou a estudar teatro na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ainda como calouro, estrelou a sua primeira peça de sucesso, “Capitães da Areia”, adaptação do romance de Jorge Amado.
Outra face surpreendente da sua história foi a experiência como garoto propaganda do governo do estado da Bahia. Fabrício não concordava com as ideias do governador, mas tinha vinte anos e precisava aproveitar a oportunidade de ter seu primeiro emprego fixo na área. Foi quando teve as suas primeiras noções técnicas de televisão e aprendeu sobre enquadramento, a escrever roteiro e a entrevistar.
Em pouco tempo, estava trabalhando com a elite da tevê brasileira. Em 2005, teve bastante projeção com o filme “A Máquina”, de João Falcão, e a sua participação na série “Cidade dos Homens”. Foi chamado para fazer vários projetos, depois de registrado no banco de atores da Globo.
Em 2006, mudou-se para o Rio, onde ficaria por dez anos trabalhando em projetos de cinema, televisão, teatro e dança. Ele foi o Saci do “Sítio do Picapau Amarelo”, o protagonista do filme “Faroeste Caboclo”, atuou na série global “Subúrbia” e encarnou recentemente o Roberval na novela “Segundo Sol”. Sempre muito empenhado nos seus papéis, o ator passa constantemente por transformações físicas, ganhando e perdendo peso, para dar vida a seus personagens.
Atualmente, ele vive em Salvador, mas é assíduo frequentador da ponte aérea – sempre está participando de trabalhos no Rio e em São Paulo. Em “Simonal”, pôde se divertir agitando a plateia de figurantes e exercendo outra grande paixão: dançar com muito swing.
Confira o Ping Pong 29 com o ator:
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