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Seu Jorge em dois takes

por | jun 6, 2018 | Cinema, Música, Pessoas | 0 Comentários

CENA 1

Avenida Benjamin Pinto Dias, em Belford Roxo, periferia do Rio de Janeiro. Um menino caminha pela calçada, voltando da borracharia na qual trabalha. Sem uma razão aparente, ele para diante da entrada de um supermercado e ali, em pé e estático, permanece por alguns minutos. De repente e sem rodeios, ele  continua seu caminho.

Quem olha de longe, pouco compreende o que se passou. Mas os fregueses do supermercado escutam a frequência das ondas AM sintonizadas na Rádio Mundial reverberando os maiores sucessos do globo pelas gôndolas e corredores do estabelecimento, assim como aquele menino fazia parado à porta.

“Lá em casa não tinha aparelho de som, nossa família tinha outras carências na época. Eu passava em frente ao supermercado e, se tocava alguma música que eu gostava muito, eu tinha que parar para ouvi-la até o final”. Dessa maneira começou a história de Jorge Mário da Silva – Seu Jorge – com a música.

Hoje, cerca de três décadas depois desta cena, o ator, cantor, músico e compositor vive bem longe de Belford Roxo. Em 2013 mudou-se com as três filhas e a esposa – atualmente, amiga – para Los Angeles. E, sem ficar muito tempo parado por lá, ele viaja por dezenas de países em turnês, festivais e gravações de filmes.

Este mês, por exemplo, quase como um presente de aniversário pelos seus 48 anos, Seu Jorge está nas telas de cinema de todo o país, contracenando com outros talentos como Erasmo Carlos, Julio Andrade e Jaloo no filme “Paraíso Perdido” (trailer aqui, ingressos aqui), dirigido por sua amiga Monique Gardenberg. O melodrama conta, ao som de clássicos da música popular romântica, em uma boate chamada Paraíso Perdido, a história de uma excêntrica família de cantores unida por um amor incondicional. Teylor, o filho adotivo da família, é o personagem interpretado por Seu Jorge.

Sobre a musicalidade do longa, ele comenta: “Esse gênero musical presente no filme é muito celebrado pelo povo brasileiro; toda essa aura de ‘Paraíso Perdido’ contracena diretamente com o cenário da música que vemos hoje no país, sobretudo nas camadas mais afastadas do olhar da mídia e das principais páginas de cultura”.

Esta obra cinematográfica, contudo, está longe de ser uma das primeiras de sua carreira. Na lista, já são mais de duas dezenas. Entre os próximos lançamentos está o primeiro filme dirigido por Wagner Moura, “Marighella”, onde Seu Jorge viverá na pele o guerrilheiro baiano Carlos Marighella. E também “Abe”, dirigido por Grostein Andrade e filmado no Brooklyn, em Nova York, projeto no qual o ator brasileiro dividirá a cena com o jovem ator Noah Schnapp, que fez o personagem Will Bayers na série “Stranger Things”.

Essa história de Seu Jorge como ator, no entanto, não começou nas telas, mas sim nos palcos. Aos 21 anos, ele passou a integrar o grupo de teatro popular TUERJ, ao lado de Gabriel Moura, do maestro Paulo Moura e de outros atores e atrizes de peso. “Essa turma queria, através da companhia, proporcionar uma experiência teatral aos alunos da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), fosse atuando, cantando, fazendo iluminação ou cenografia”, Jorge explica. A questão é que os alunos acabaram não se interessando pela iniciativa e o grupo de teatro de repertório abriu as atividades para pessoas de fora. Convidado por Gabriel Moura, Seu Jorge passou a frequentar o anfiteatro. Lá, seu talento como cantor foi descoberto e incentivado pelo maestro Paulo Moura. “Foi ali que eu comecei a fazer minhas próprias músicas, a experimentar minha própria autoria fazendo canções para as peças”, revela o cantor.

https://www.instagram.com/p/Bhg9NhyH1oD

“O teatro foi vital para a minha vida e para as minhas escolhas”. A partir daí, atuando, compondo e cantando em peças do TUERJ, Seu Jorge começou a se projetar no cinema. Até que, em 2001, ele atua como Mané Galinha no emblemático “Cidade de Deus” (disponível no Netflix). “Esse foi um dos principais filmes da minha carreira pela experiência de ver toda aquela equipe comprometida com este longa baseado no livro de Paulo Lins, um negro da periferia…”, ele conta, emocionado.

“Esse filme simboliza muita coisa para mim, mostra como a arte tem um papel social importante. Foi um grande privilégio poder participar dessa experiência”

Seu Jorge, que aos dez anos começou a trabalhar para ajudar a família, se realizava na música em 1998 com a banda Farofa Carioca, misturando funk, reggae, samba e outros ritmos negros – estilos que o acompanham desde o início de sua carreira. “Quando eu morava em Belford Roxo, eu sempre sonhava em um dia poder entrar no Hotel Nacional, no Rio, para assistir a um show do Free Jazz Festival. Imagina! Alguns anos depois eu estava lá… tocando no evento ao lado de nomes internacionais como Jeff Beck. Foi uma das sensações mais maravilhosas que alguém com um sonho na vida poderia sentir. Devo isso à Monique Gardenberg que, quando ouviu meu trabalho, o julgou merecedor dessa oportunidade”. Na época, ela era uma das responsáveis por fazer a curadoria do festival.

 

CENA 2

Em um dia ensolarado na Riviera Italiana, Seu Jorge é lançado ao mar. “Eu quero que você nade até aquela pedra e retorne”, grita o instrutor de mergulho responsável por se certificar de que todo o elenco do filme “A Vida Marinha com Steve Zissou” sabia nadar e poderia participar das gravações sem acidentes. Seu Jorge hesitou, dissimulou, mas não conseguiu esconder: ele não sabia nadar e iria precisar de algumas aulas.

Para este filme, o diretor norte-americano Wes Anderson (o mesmo de “Grande Hotel Budapeste” e “Ilha de Cachorros”, que estreia dia 14) estava em busca de um ator negro brasileiro para fazer versões em português de músicas do David Bowie, bem como atuar no filme e, se possível, interpretar as canções com voz e violão. E foi aí que Seu Jorge recebeu uma ligação surpresa de Wes Anderson fazendo o convite. “Eu li o roteiro, achei muito louco, assinei o contrato, fiz as músicas e fui parar na Itália”.

Seu Jorge se surpreendeu, no entanto, quando topou com o resto do elenco, com quem ia dividir a casa durante as filmagens. “Eu estava de frente para a Sessão da Tarde inteira!”, ele brinca. “Era a Anjelica Huston de ‘A Família Addams’, o Bill Murray de ‘Os Caça-Fantasmas’, Jeff Goldblum do ‘Jurassic Park’, Willem Dafoe do ‘Platoon’, estava todo mundo lá. E essa turma me tratou com um carinho, com uma humildade, sabe?”.

Cena do filme “A Vida Marinha com Steve Zissou” (2005)

Passada a emoção, chegou a hora de gravar as cenas aquáticas. Mas, ao contrário dos dias ensolarados de seu treinamento, os takes seriam filmados no inverno. “Eu pedi, pelo amor de Deus, para que o Wes Anderson me tirasse das cenas com água. Ele poderia ter me mandado embora, me demitido, mas foi lá e reescreveu as cenas. Foi uma experiência maravilhosa”.

Em 2005, no mesmo ano de lançamento do filme, as versões de David Bowie recriadas por Seu Jorge foram compiladas no álbum “Life Aquatic Studio Sessions” (disponível do Spotify) e renderam uma série de shows mundo afora, além de uma crítica positiva vinda do próprio Bowie: “Se Seu Jorge não tivesse gravado minhas músicas em português, eu nunca teria escutado este novo nível de beleza com o qual ele as imbuiu”. O projeto fez tanto sucesso que será apresentado no próximo mês, no dia 5, no palco da 52ª edição do Montreux Jazz Festival, na Suíça – mesmo evento pelo qual já passaram nomes como Miles Davis e Ella Fitzgerald.

O talentoso músico, que descobria canções mundiais ouvindo rádio em supermercados, hoje já passou por palcos como o Olympia, em Paris, pelo Blue Note, em Nova York, e pelo Albert Hall, em Londres. Sobre seu percurso na música, Seu Jorge comenta sem hesitar: “Existem lugares pelo mundo que trazem uma certa graduação, que é bem mais do que dinheiro e fama… que tem a ver com um sonho. São lugares nos quais você coloca o seu pé e onde grandes personalidades também o fizeram… e deixaram suas almas ali, suas músicas, receberam aplausos. Eu vivi essa experiência na minha vida. E eu colho com muito amor o que a música propõe diariamente para que eu vivencie. É muito interessante a diferença entre escolher uma coisa e ser escolhido por ela. E eu me sinto muito escolhido pela música”.

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