Ex-jogador de futebol do São Paulo e da Seleção Brasileira, Raí lidera iniciativas sociais e educativas no país

por | nov 30, 2022 | Entrevista, Pessoas | 0 Comentários

Raí se firma como voz ativa em prol das políticas públicas pelo esporte, pela educação e pelas cidades. O mestrando em ciência política e ex-jogador de futebol divide seu tempo entre a rotina de sua admirada fundação e a conexão Paris-Brasil

O clima é de copa do mundo ainda neste mês, mas há muitos outros assuntos para se discutir antes de o ano acabar. Se há um ex-jogador de futebol que foi capitão da Seleção Brasileira e se destacou no Brasil e na Europa que sabe refletir sobre temas para além da modalidade é Raí, natural de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Aos 57 anos, o tetracampeão do mundo pela Seleção Brasileira, eterno camisa 10 do São Paulo Futebol Clube e ex-atleta adorado do Paris Saint-Germain é articulado e engajado em causas sociais há décadas.

Irmão do também ex-jogador Sócrates, ídolo do Corinthians e símbolo da luta pela democracia, Raí carrega a consciência política como característica intrínseca de sua família. “Quem nos inspirou foi nosso pai, Raimundo. Ele foi autodidata, teve que sair da escola aos 13 anos, e, mesmo depois de ter filhos, estudava, adorava os filósofos gregos”, conta. Veio dessa imersão paterna na filosofia o nome dos irmãos em homenagem aos ícones da História Ocidental. Além de Sócrates, tinha também Sóstenes e Sófocles dentro de casa. Ele chegou anos depois, é o caçula, e assegurou um nome menos pomposo, mas ainda assim forte.

Conhecedor do entorno dos campos, o ex-craque foi pioneiro em se dedicar aos direitos humanos e, principalmente, à educação depois que saiu dos gramados. À frente da Fundação Gol de Letra, fundada em 1998, ao lado do parceiro de Seleção Leonardo, ele abriu as portas para a mobilização no meio esportivo. “Para alcançar um país mais justo, é preciso uma sociedade civil organizada, e os atletas não podem ficar para trás.”

Foto Stéphane Mantey

Foto Stéphane Mantey

 

Apaixonado por cinema e pela vida urbana, a sensibilidade do ex-jogador ainda se volta à arte. Ele é sócio do Cinesala, charmoso cinema de rua no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Foi ali que Raí recebeu a equipe da 29HORAS para uma conversa sobre política, cultura e, como não poderia deixar de ser, uma pitada de futebol.

Conta um pouco sobre como surgiu a ideia de montar um cinema de rua em São Paulo. O que esse espaço significa para você?
Somos quatro sócios apaixonados por cinema, principalmente aqueles de bairro, urbanos. O Cinesala virou um projeto de resistência, porque não existem opções parecidas na cidade. Quando morei em Londres, em 2006, vivia perto do Eletric Cinema (em Portobello). O Paulo Velasco, meu amigo, um dos sócios e diretor criativo do projeto, veio me visitar, e assim pensamos em montar um cinema de rua parecido com aquele. Queríamos aquela referência, pensando em dar um retorno à cidade que amamos, em construir um lugar que se articulasse à rua. Foi um apanhado de amor pela arte, pelo cinema, tudo isso em diálogo com a vida urbana. Sou apaixonado por Woody Allen e Walter Salles, que representam o que gosto nos filmes, e o Cinesala materializa o que adoro no cinema.

A sua atuação fora de campo é muito extensa há décadas, e a Fundação Gol de Letra representa seu envolvimento social. Hoje você faz mestrado em Ciência Política pela Sciences Po, em Paris. O que você está estudando e o que pretende com essa pesquisa?
Fazia um tempo que queria voltar a morar em Paris e retomar os contatos que fiz por lá. Eu me interesso muito pela área de Ciência Política, e minha experiência nos projetos sociais me instigou a querer ir além e a fundo nos estudos. Então, eu uni as duas coisas. A ideia da minha pesquisa é entender como os espaços com formação esportiva e cultural podem impactar uma cidade pequena, como alguma do Nordeste, por exemplo, que é a minha origem e a dos meus pais. Existem poucos exemplos disso no país, vemos as escolas desarticuladas dos clubes onde há práticas esportivas, e as escolas de teatro também estão fora das instituições de ensino, em outro lugar. Quero estudar casos de sucesso para construir uma política pública que integre tudo isso, que seja o centro do desenvolvimento humano e econômico de uma cidade e talvez de toda uma região. Por que não?

E de onde veio toda essa consciência social e política? Para além do seu irmão, o Sócrates, que era engajado com temas como a democracia, seus pais também discutiam esses assuntos em casa?
Éramos seis filhos homens em casa. Quem nos inspirou foi nosso pai, Raimundo, descendente de africanos. Ele foi autodidata, teve que sair da escola aos 13 anos, e, mesmo depois de ter filhos, estudava, adorava os filósofos gregos… por isso os nomes dos meus irmãos: Sócrates, Sóstenes, Sófocles. Ele sempre foi uma pessoa interessada em investigar a injustiça social do Brasil e, por causa de sua origem, quis mostrar tudo isso aos filhos. Todo ano ele nos levava para a periferia de Fortaleza, lugar onde ele cresceu. Nosso pai também estimulava muito a discussão, fazia provocações a respeito do que estava estudando… Lembro que certa vez, quando eu tinha uns 12 anos, ele me parou no corredor de casa e me perguntou “o que é cultura para você?” Naquela idade eu nem sabia o que responder, mas ele foi me explicando, era muito preocupado em despertar o conhecimento, principalmente sobre temas ligados ao coletivo.

Sua infância foi em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo…
Sou o mais novo dos filhos. Fui criado em Ribeirão, depois que meu pai já havia sido transferido para cá. Eu me identifico muito com esse espírito interiorano, livre e pé no chão. Sou um cara com essa mistura de origem nordestina com interior paulista.

Qual é a memória mais marcante que você carrega do seu irmão e também ex-jogador de futebol, Sócrates?
São muitas! Eu assistia aos treinos do Botafogo de Ribeirão Preto, quando ele jogava e eu era menino. A lembrança mais marcante para todos é o período da Democracia Corintiana, o envolvimento político dele, que me impactou também. Já os nossos momentos mais íntimos, como irmãos, conseguiríamos compartilhar apenas depois da carreira dele, porque tínhamos 11 anos de diferença. Ele vinha para São Paulo e ficava na minha casa, trocamos mais figurinhas nesse período. Eu admiro muito a coragem dele, de expor as ideias, era um cara muito autêntico, obcecado pela liberdade de todos.

Por que é raro ver jogadores de futebol envolvidos com temas sociais e políticos hoje? É difícil vê-los se posicionando até mesmo sobre assuntos importantes para o esporte, como a igualdade de condições entre as modalidades masculinas e femininas…
Isso acontece por diversas razões. A grande maioria dos jogadores vem de famílias mais humildes e não teve acesso a uma formação mais ampla para ter essa consciência, de tudo que se passa no entorno. O ponto mais preocupante é que existe uma tendência ao individualismo entre esses atletas, que vejo como algo mais geracional, seja por causa da comunicação que se dá por meio de redes sociais, ou pelo fato de que cada atleta representa uma marca, é uma empresa…tudo leva a um pensamento menos coletivo.

Você foi um jogador de futebol muito atento ao entorno. Quando foi jogar na Europa, escolheu a França também por um aspecto mais pessoal. Como a cultura francesa te atravessa? Qual é o seu lugar favorito em Paris?
Tenho uma identificação muito forte com a França. Minha primeira formação foi História e sempre fui apaixonado pela Revolução Francesa e todo aquele movimento. É um país com histórico de resistência, de origem dos direitos humanos. Quando se vive naquela sociedade, você percebe uma preocupação com o que é público. Lembro que quando fui para lá, nos anos 90, uma pessoa nos acompanhou para fazer os trabalhos domésticos e levou sua filha. Lá, a minha filha e a dela estudavam no mesmo colégio e eram acompanhadas pelo mesmo médico. Esse é o lado daquele país que eu mais admiro, esses valores intocáveis de educação pública, saúde para todos, uma vida digna… Hoje eu moro no centro de Paris, em um bairro que se chama Le Marais, no coração da cidade, é perto de tudo! Ali, o que mais gosto é andar de bicicleta. Frequento o Centro Georges Pompidou, um centro cultural que adoro e tem muita vida.

 

Foto Reprodução PSG

Foto Reprodução PSG

 

Você cresceu entre irmãos homens e hoje é pai de três filhas e avô de uma neta. Como é estar agora em um ambiente familiar tão feminino?
Tive a sorte de ter sido o caçula, tive proteção dos irmãos e de todo mundo. Viver entre tantas mulheres é um grande aprendizado. Para quem cresceu em um tempo ainda mais machista do que hoje, no meio só de homens, é uma evolução contínua e muita rica. Eu vejo como um grande privilégio! Durante a minha adolescência, convivi muito com a minha mãe, dona Guiomar, porque meu pai viajava bastante a trabalho, e esse período serviu como um estágio para o pai de mulheres que eu viria a ser (risos).

Você está à frente da Fundação Gol de Letra, ao mesmo tempo que valoriza a democracia e a horizontalidade. O que é ser um líder ou capitão para você? Quais líderes te inspiram atualmente?

Eu aprendi a desenvolver meu lado líder, porque fui um jovem muito tímido, exageradamente tímido. Ficava sem graça por tudo, não gostava de falar em público, na frente dos colegas na escola, ficava nervoso…então o esporte me ajudou bastante, na minha socialização mesmo. Aos poucos, percebi que meu lado introvertido não era um impedimento para me tornar um líder.
Falo em palestras que não existe um perfil único de liderança, são diferentes tipos de líderes! Tem aquele líder natural, como foi o Sócrates; tem o líder que cobra mais; tem aquele mais diplomático e agregador, que é o meu estilo; e ainda existem aqueles líderes que se destacam pela experiência de vida. E vai sempre ter o capitão, e eu fui no Botafogo de Ribeirão Preto, com 22 anos, depois no São Paulo por muitos anos, na Seleção Brasileira por quase quatro anos e no Paris Saint-Germain. Meus amigos na adolescência, e até mesmo eu, jamais imaginaríamos isso, então sei que é algo que se pode desenvolver. Um líder atual que admiro é Obama, ele tem uma habilidade de oratória incrível, seus discursos são sempre humanos e impactantes.

Foto Rafael Amaro

Foto Rafael Amaro

 

O legado da Fundação Gol de Letra foi justamente ter aberto portas para que outros jogadores se tornassem líderes fora de campo no país?
Quando começamos, em 1998, o estatuto da Fundação já dizia que nosso foco seria trabalhar com crianças e jovens em situação de risco social. E outro ponto importante também era mobilizar o meio esportivo. Fomos pioneiros entre os atletas que se envolvem em ações sociais, não apenas ajudando ou fazendo campanhas pontuais, o que já é uma grande ajuda, mas que estão no dia a dia de uma ONG. Algo que aprendi, depois da Gol de Letra, é que para se ter um país mais justo é preciso de uma sociedade civil organizada, e os atletas não poderiam ficar para trás.

 

Foto Rafael Amaro

Foto Rafael Amaro

 

Entre os jovens jogadores, e recentes revelações em times brasileiros e europeus, quem você vê brilhando nos próximos anos? E quais conselhos você daria a eles?
O Rodrigo, que está no Real Madrid, será referência pelo estilo de jogo e ainda vai amadurecer. O Richarlison, titular na Copa do Mundo, também se destaca. Meu conselho é que o futebol é um fenômeno de massa, um dos maiores que há, então que eles se preparem, porque se tornarão referências. Invistam na formação humana, busquem conhecimento para além do futebol!

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