Com a atriz Alanis Guillen na pele da protagonista Juma Marruá, remake da novela “Pantanal” revisita o bioma após trágicas queimadas de 2020, levanta reflexões sobre preservação ambiental e propõe uma experiência cinematográfica nas telinhas
Quando foi exibida pela primeira vez, em 1990, na extinta TV Manchete, “Pantanal” conquistou multidões. A trama, escrita por Benedito Ruy Barbosa com doses cavalares de tragédia e lirismo, atingiu picos de audiência, desbancando a até então imbatível Rede Globo. “Acredito que a explicação para esse sucesso estrondoso tenha sido a curiosidade saciada de uma nação que pouco se conhece. A novela descortinou as paisagens singulares de uma região que representa muito o nosso país, mas sobre a qual a maioria dos brasileiros quase nunca ouvia falar. Pela primeira vez, ali, o Pantanal e suas riquezas e urgências foram posicionados no centro das discussões midiáticas”, comenta Alanis Guillen, atriz escalada para protagonizar o enredo, agora revisitado pelo roteirista Bruno Luperi. Aos 23 anos e com apenas um trabalho televisivo anterior no currículo – “Malhação – Toda Forma de Amar” (2019), da qual foi, também, protagonista –, a paulista de Santo André faz sua estreia no horário nobre na pele da heroína Juma Marruá.
“Esta é uma das minhas primeiras experiências artísticas e já um dos meus maiores desafios. A história de Juma é tão cheia de simbolismos e folclore, que me sinto na responsabilidade social de representar culturas e vozes que vão muito além de mim”, comenta a atriz, que, todas as noites, invade as telas globais com os cabelos cacheados se rebelando contra o vento, sempre descalça e usando quase nenhuma maquiagem. “Juma é livre, e isso aparece no seu figurino simples, no seu jeito rústico de andar e se comunicar, e na sua força indomável.”
Para vestir a trajetória épica da personagem – que, reza a lenda, herdou da mítica mãe, Maria, a habilidade de se transformar em onça quando ameaçada –, Alanis optou por se despir de quaisquer artifícios técnicos. “A Juma foi nascida e criada no cenário selvagem do Pantanal, vive em meio aos bichos, como um deles, e está sempre acesa em seus sentidos mais primitivos. Enchê-la de preciosismos seria trair a sua essência, que é crua e ainda não foi atravessada pela modernidade e suas futilidades.”
O percurso até essa construção artística exigiu um retorno às suas características mais instintivas. “Passei dias andando descalça e noites inteiras imersa na natureza, aguçando minha visão noturna. Experimentei, ainda, aulas de equitação e de kung fu – arte marcial chinesa cujos golpes são intimamente inspirados pelas movimentações animais.” Durante o estudo, a atriz também voltou a ingerir proteína animal, hábito que havia abandonado há alguns anos. “Queria me lembrar da sensação da fibra em contato com a boca, sentir os efeitos desses nutrientes no meu organismo. A carne é um alimento pesado, que nos puxa à matéria, e Juma, em toda a sua rusticidade, me pediu por esse vigor.”
Vivência imersiva
Crescida às bordas da metrópole paulista, Alanis desbravou o Pantanal pela primeira vez já a caminho dos sets de filmagem, instalados em fazendas do município de Aquidauana, no interior do Mato Grosso do Sul. “Foi uma experiência única que mesclou choque e contemplação. É, na mesma proporção, um cenário de calmaria e aventura. Não me surpreende que um ambiente tão rico tenha enchido os olhos do público em 1990 e volte a deslumbrá-lo agora”, reflete.
Considerado pela Unesco Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera, e conhecido por ser, ao mesmo tempo, o menor bioma brasileiro e a maior planície de inundação do mundo, o Pantanal chama a atenção, sobretudo, pela riqueza de sua biodiversidade. Nos quase 250 mil km² de extensão que o compreendem (e extravasam as fronteiras brasileiras para cobrir, ainda, o norte do Paraguai e o leste da Bolívia), vivem pelo menos 4.700 espécies de plantas, aves, mamíferos, répteis, anfíbios e variedades de peixes de água doce – muitas delas raríssimas e ameaçadas de extinção.
No remake de 2022, com direção de Walter Carvalho, a fauna e flora da região ganham ainda mais cores e nuances, devido ao aperfeiçoamento inédito das técnicas de captação de imagens. “Hoje temos toda uma gama de tecnologias a nosso favor”, comenta o diretor artístico, Rogério Gomes. É ele o responsável por monitorar os takes, que têm atraído olhares curiosos pelo minucioso realismo. “Nosso primeiro capítulo – que foi ao ar em 28 de março e está disponível na Globoplay – foi inteiramente produzido em 8K, tecnologia de altíssima resolução nunca antes explorada pelos Estúdios Globo.”
Na produção dos outros episódios, foram utilizadas câmeras portáteis à prova d’água para a captura de imagens submersas e drones para garantir clipes em profundidade. “O objetivo, além de propor novos paradigmas cinematográficos às novelas da emissora, é, realmente, transportar os espectadores para o Pantanal em uma vivência imersiva que ultrapasse a frieza das telas”, comenta.
Grito de socorro e trégua
E, se na década de 1990 “Pantanal” conseguiu pôr em foco nacional as demandas ribeirinhas, a expectativa é que, revivida em 2022, posicione os holofotes sobre as carências de um bioma que urge por socorro. De acordo com levantamentos feitos pela Scientific Reports, cerca de 4,5 milhões de hectares do bioma foram devastados por incêndios ao longo de todo o ano de 2020. Essa sequência de desastres – que estampou os jornais por meses e, segundo estimativas do Ibama, foi responsável por dizimar ao menos 65 milhões de vertebrados e 4 bilhões de insetos nativos – acendeu sinais de alerta por todo o país. Sobretudo quando o Ministério Público do Mato Grosso do Sul apurou que quase 60% dos focos de incêndio provavelmente foram provocados por ações humanas.
“Reverter esse cenário não é tarefa simples, mas temos conseguido avanços importantes”, comenta Gustavo Figueirôa, biólogo e diretor de comunicação da SOS Pantanal, uma das principais organizações não-governamentais com atuação sustentável nas planícies pantaneiras. Além de manter à disposição brigadas de incêndio treinadas para minimizar danos, a ONG atua na produção de conteúdos sobre o bioma, auxilia no mapeamento regular da cobertura vegetal da região e estimula a promoção de políticas públicas que aliem economia, bem-estar social e sustentabilidade. “Graças ao trabalho de instituições como a nossa, cerca de 275 mil animais foram salvos nos últimos anos, seja por auxílio veterinário ou pelo estabelecimento de rotas de fuga seguras que os permitiram se esquivar dos focos de chamas. Apesar de não superar as taxas de mortes, ainda é um saldo positivo que deve ser levado em conta.”
A rotina de gravações da nova versão da novela tem se adaptado às atuais condições pantaneiras. “De 1990 para cá, a região ficou 20% mais seca, realidade que será percebida no visual mais alaranjado das cenas e trará novos desafios para os personagens da trama”, revela o autor, Bruno Luperi. O uso de animais em cena também reflete as demandas desse “novo mundo”. A maioria dos bichos é criada em computação gráfica durante o processo de pós-produção e apenas uma parte deles é realmente trazida à frente das câmeras. “Nesses casos, gravamos com animais silvestres trazidos para o set por representantes de ONGs e criadouros de conservação, e integramos à equipe duas veterinárias e uma bióloga, que acompanham e conduzem as filmagens de modo que o animal esteja sempre confortável.”
Transportada para um século 21 assolado pelas mudanças climáticas, pelas batalhas sanitárias contra a Covid-19 e por guerras internacionais, a nova versão de “Pantanal” surge, para Alanis Guillen, como um projeto sócio-político-ambiental. “Meio humana, meio bicho, Juma Marruá é um lembrete de que todos nós estamos integrados à natureza e devemos, quanto mais breve, nos reconectar a ela e a seus chamados. A personagem é um grito de socorro e trégua, pelas nossas matas devastadas e por nossos animais extintos, que eu espero muito que ressoe e seja ouvida para muito além das fronteiras do nosso Centro-Oeste”, finaliza.
0 comentários