A chef brasileira Alessandra Montagne supera as adversidades e brilha em Paris com dois restaurantes próprios

por | jul 31, 2024 | Comida & Bebida, Entrevista, Pessoas & Ideias | 0 Comentários

Alessandra Montagne supera as adversidades de uma infância difícil entre Rio e Minas e hoje brilha na cena gastronômica de Paris, com as delícias franco-brasileiras servidas nos dois restaurantes que comanda — e tem um terceiro a caminho!

Alessandra Montagne nasceu no morro do Vidigal, foi abandonada pela mãe com dois dias de vida, cresceu no interior de Minas vendo sua avó cozinhar, sofreu nas mãos de um marido violento antes mesmo de atingir a maioridade, mudou-se para a França, trabalhou como babá para pagar seus estudos em uma conceituada escola de gastronomia e hoje, aos 46 anos, comanda dois restaurantes de sucesso em Paris: o Nosso e o Tempero. Já preparou banquetes para celebridades e até para o presidente Emmanuel Macron.

Seu talento com as caçarolas lhe rendeu inúmeros prêmios, condecorações e convites. O mais recente veio de Alain Ducasse — chef cujos restaurantes pelo mundo somam mais de 20 estrelas Michelin. Ele a chamou para comandar um dos restaurantes que sua empresa vai inaugurar nos próximos meses dentro do Museu do Louvre!

 

Alessandra Montagne – foto Maki Manoukian

 

Mesmo radicada na França há 25 anos, ela preservou sua brasilidade. O morro segue em seu DNA, está até no nome (Montagne) que herdou de seu segundo marido, um francês com ascendência vietnamita. Suas criações misturam de maneira harmoniosa e criativa referências brasileiras e francesas. Ela reformulou a frase famosa de Antonietta: “Se os franceses estão fartos de brioches, que comam pães de queijo!”

Na entrevista que concedeu à 29HORAS, Alessandra Montagne fala de seus pratos com sotaque franco-brasileiro, de sua passagem pelo Brasil neste mês, de seus projetos para o futuro e de seu trabalho social com refugiados, presidiárias e imigrantes. Confira a seguir os principais trechos dessa conversa.

Como foi o convite do Alain Ducasse? Você já o conhecia?
Já havia feito uns trabalhos para ele, em eventos. E ele já comeu no Nosso. É uma pessoa muito educada, muito afável e muito direta. Quando me ligou para fazer o convite, eu estava na rua, caminhando. Atendi e fui pega totalmente de surpresa. Ele me disse que eu teria tempo para analisar melhor a proposta, mas eu aceitei na hora! Ele é um querido e disse que a França tem muita sorte por eu ter escolhido este país para viver. Dá para imaginar um elogio melhor do que este para uma profissional da gastronomia?

 

Alessandra com o premiado chef Alain Ducasse – foto Reprodução Instagram

 

O que você pode adiantar para a gente sobre esse restaurante que você vai comandar no Louvre?
Eu não posso revelar muita coisa, nem o nome. Tudo ainda está sendo mantido em sigilo. Apenas posso dizer que será grande, com algo entre 200 e 300 lugares, acessíveis apenas a quem já pagou ingresso e está dentro do museu. A inauguração estava prevista para o final deste ano, mas como o Louvre proibiu obras durante o período dos Jogos Olímpicos, eu imagino que a abertura só deva acontecer no primeiro trimestre de 2025.

E sobre o cardápio, não dá para revelar nada? Vai ter toques brasileiros?
Bem, eu fui escolhida para ser a chef, então dá para deduzir bastante coisa, né? O que posso dizer é que a minha personalidade, o meu coração e a minha história estarão na comida que será servida ali.

E você ainda tem outro projeto em andamento aqui na Europa, não é?
Sim, a partir de meados de 2025 vou comandar um restaurante em Valência, na costa mediterrânea da Espanha. O espaço vai funcionar dentro de um hotel que ainda está em obras. Não vai ser uma “filial” do Nosso. Vai ser algo diferente, vamos brincar com as receitas e ingredientes locais, criando uma mistura ibero-brasileira, com a potência espanhola, um ou outro toque francês aqui e ali e o tempero que somente o Brasil tem.

França, Espanha… E quando você vai ter um restaurante no Brasil?
Ainda não sei. Em agosto cozinho para o time de equitação da França, que vai ter o Palácio de Versalhes como sede, e depois, lá pelo dia 10, vamos fechar o Nosso para as férias da minha equipe, como fazemos em todo verão francês. Nos dias 14 e 15, faço jantares em São Paulo, no restaurante Vista Ibirapuera, e depois vou para Itacaré, no litoral da Bahia, para comandar um jantar no Barracuda Hotel, no dia 24. Eu adoraria abrir um restaurante no Rio — a cidade onde eu nasci — ou em São Paulo, que me acolheu em momento muito difícil e onde tenho muitos amigos. Só posso te dizer que não vai ser este ano ou em 2025, pois a minha cabeça está focada em colocar em pé esses novos empreendimentos no Louvre e em Valência. Mas estou aberta a propostas e convites para ter um endereço no meu país. Seria uma glória para mim!

A propósito, alguma editora brasileira já te procurou para lançar uma versão em português do seu livro?
Infelizmente, não. Ainda não. Mas, assim como falei sobre a possibilidade de abrir um restaurante no Brasil, vou ouvir com muita atenção a eventual proposta de alguma editora brasileira que se interessar em lançar o meu livro. Foi doloroso relembrar tantas coisas do meu passado, mas foi um processo de certa forma “terapêutico”. O resultado foi elogiado por quem teve a oportunidade de ler e a obra até ganhou um prêmio aqui na França. Modéstia à parte, a história é tão boa que virará filme. O diretor Daniel Lieff está pilotando esse projeto, e o roteiro está sendo escrito pela Patrícia Andrade, a autora do script de filmes como “Os 2 Filhos de Francisco” e “Gonzaga – De Pai para Filho”.

 

Capa de seu livro – foto reprodução Instagram

 

Voltando a falar de comida, qual é a fórmula do sucesso do Nosso e do Tempero?
O Nosso é um restaurante contemporâneo onde apresento as minhas criações mais autorais. O menu-degustação (€ 98 por pessoa) inclui clássicos franceses com um toque tropical e receitas tradicionais do Brasil com um charme francês. Exemplos disso são o pão de queijo com caviar, o robalo com molho de moqueca e a lagosta da Bretanha com chuchu e mucilagem de cacau — uma releitura do camarão ensopadinho com chuchu cantado por Carmen Miranda. Entre as sobremesas, temos um baba au rum que, no lugar do rum, leva cachaça. Já o Tempero, que funciona praticamente ao lado do Nosso, é um bistrô com receitas descomplicadas, como as que eu fazia quando ele abriu e foi o meu primeiro restaurante aqui em Paris, em 2012. O cardápio também muda constantemente, mas já tem seus “clássicos”, como o porco confitado com purê de cenouras, o mole de frango com creme de ervilhas e, eventualmente, até feijoada. O Tempero também é uma épicerie (mercearia de produtos como massas, molhos e condimentos) e uma loja de vinhos.

Além de conhecida por seu livro e por seu trabalho como chef, você também comanda uma atração na TV francesa. Como é esse programa?
O “Le Goût des Rencontres” é uma atração exibida semanalmente pelo canal France 3. A cada programa, eu visito um pequeno produtor rural francês e apresento suas joias gastronômicas ao espectador. Já estive em criações de patos e gansos em Périgord, em queijarias da Normandia, em vinícolas de Bordeaux, em fazendas de azeite na Provence… Esses produtores são verdadeiros artistas e merecem ser valorizados. Alguns já conhecia antes, outros são descobertas para mim também, não apenas para quem assiste.

 

Alessandra em seu programa de TV – foto reprodução Instagram

 

Com o sucesso do seu restaurante, do seu livro e do seu programa de TV, você se considera uma referência para outras mulheres?
Todo mês, eu dedico um dia inteiro só para trabalhos sociais. Cozinho para as detentas de um presídio feminino, para moradores de rua e para refugiados acolhidos por uma ONG. Outro dia, a mãe de uma ex-presidiária veio aqui no Nosso e me disse que sua filha tem a minha trajetória como referência e que agora ela vai estudar para ser cozinheira. Disse que ninguém se importava com ela e que eu fui a única pessoa que lhe ofereceu algum carinho e atenção nos meses em que ela ficou na prisão. Saber que consegui tocar o coração de garotas como essa é algo que me enche de realização e orgulho. Nunca quis ser exemplo para ninguém, durante muito tempo o meu único objetivo era sobreviver. Sei bem como é viver com privações, senti na pele como é mudar para um outro país sem ter uma rede de apoio. Fico feliz ao ver que a minha história inspira outras pessoas.

As delícias franco-brasileiras do restaurante Nosso

 

Pão de Queijo com Caviar – foto reprodução Instagram

 

Lagosta com Chuchu e Mucilagem de Cacau – foto reprodução Instagram

 

Robalo com Molho de Moqueca – foto reprodução Instagram

 

Baba au Cachaça – foto reprodução Instagram

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