Os melhores sons de 2023: uma retrospectiva com os relançamentos mais marcantes da música brasileira

Os melhores sons de 2023: uma retrospectiva com os relançamentos mais marcantes da música brasileira

Confira sugestões dos sons que brilharam no ano passado e um olhar sobre o que pode se destacar na música brasileira daqui para a frente!

Já viramos o ano e, para essa coluna inaugural de 2024, trago uma retrospectiva nem um pouco ortodoxa sobre a música brasileira. Começo com o projeto “Relicário”, do Selo Sesc, que não é apenas um show transformado em memória, é todo um registro histórico. Cada disco vem acompanhado de um precioso material que contextualiza o evento. No ano de 2023, foram quatro lançamentos, o primeiro foi João Gilberto em uma gravação de 1998 no Sesc Vila Mariana. No repertório de clássicos do samba sempre revisitados por ele, temos uma música inédita do grande Herivelto Martins com Waldemar Ressurreição, “Reo Sem Coroa”. São quase duas horas de música boa, bem gravada, com um dos nossos maiores cantando Dorival Caymmi, Ary Barroso, Pixinguinha, Tom Jobim e outras maravilhas. Se quiser o disco físico, é possível encontrá-lo nas lojas das unidades do Sesc e o libreto vale a pena! 

Os outros lançamentos são: Adoniran Barbosa no Sesc Consolação, em 1980 – um show delicioso, cheio de histórias contadas pelo maior cronista musical da paulicéia; João Bosco, em 1978, com o disco “Tiro de Misericórdia”, inteiro com as letras do genial Aldir Blanc e ainda com a ditadura militar sobre nossas cabeças; e Zélia Duncan, em 1997, no Sesc Pompéia, em um registro lindo depois do primeiro grande sucesso cheio de baladas e blues de Renato Russo e Joan Armatrading. Nesse “Relicário” vem de bônus uma entrevista com o jornalista Zuza Homem de Mello, nosso mestre, no projeto “Ouvindo Estrelas”.

 

Filipe Catto lançou o disco “Belezas São Coisas Acesas por Dentro” com o repertório de Gal Costa – foto divulgação

 

E entre os discos inéditos, obras frescas e artistas jovens, destaco a cantora e compositora baiana Assucena. Seu primeiro disco solo é o “Lusco Fusco” e saiu em novembro passado. Assucena fez parte do trio    “As Baías”, com Rafael Acerbi e Raquel Virgínia e – também no ano passado – fez uma linda homenagem à Gal Costa com o show “Rio e Também Posso Chorar”. É uma cantora romântica e contemporânea, que busca nos anos 1970 uma sonoridade pop e brasileira. Sobre a canção que abre o disco, que tem uma levada samba rock, ela disse: “É um desafio de que gosto, fincar os pés no meu tempo sonoro sem me perder de minhas raízes”. Sua voz é maravilhosa e traz ainda a produção do pernambucano Pupillo e a co-direção artística de Céu. 

Assim como Assucena, Filipe Catto é uma cantora do século 21. Gaúcha, compositora e dona de voz poderosa, Catto lançou o disco “Belezas São Coisas Acesas por Dentro” com o repertório de Gal Costa. Começou como um tributo e, hoje, é um dos shows mais incríveis da cena pop. Um repertório muito bem escolhido, romântico e roqueiro, libertário e sexy.

Muita coisa interessante aconteceu em 2023, mas o que cabe nesta coluna são essas sugestões, meus queridos leitores. Gosto sempre de lembrar o mestre Paulinho da Viola: “Quando penso no futuro, não me esqueço do passado”. O tempo é absolutamente relativo, se é que vocês me entendem. Bom ano, bom verão e boa escuta!

Ícone da MPB, João Donato tinha jeito leve ao piano, suingue incomparável e doçura melódica

Ícone da MPB, João Donato tinha jeito leve ao piano, suingue incomparável e doçura melódica

Pianista, acordeonista, arranjador, cantor e compositor, João Donato criou obra extensa que é um verdadeiro marco para a música brasileira, além de referência para novas gerações

Peço licença para falar de João Donato e das deliciosas vezes em que nos encontramos para o Vozes do Brasil e outros projetos de música que faço. Seu jeito leve ao piano, seu suingue incomparável, sua doçura melódica – tudo isso estava presente na hora de responder sempre delicadamente as minhas entrevistas. O multi-instrumentista e ícone da MPB – natural de Rio Branco, nas profundezas da Amazônia – nos deixou em julho deste ano e teve incríveis 74 anos de carreira.

Certa vez, ele chegou para gravar o ‘Vozes do Brasil’, ao vivo no Sesc Vila Mariana, com um papel dobrado no bolso e disse: “Palumbo, estou com esse papelzinho aqui. Foi o Jobim que me deu, uma música que nunca toquei, posso tocar no seu programa?”. Em outra ocasião, Donato não quis tocar nada, estava sem vontade, mas contou muitas histórias sobre o Acre, os rios, e ouvimos uma seleção de temas instrumentais maravilhosos que ele gravou fora do Brasil.

 

foto divulgação

 

Gosto de ouvir João Donato por ele mesmo. Tenho dois LPs que ganhei autografados no Festival MIA de Araçatuba, de 2019, que vivem na vitrolinha da sala. O “Quem é Quem”, de 1973, é aquele clássico que tem Donato tocando piano elétrico e um elenco de arranjadores absurdo: Dori Caymmi, Lindolfo Gaya, Laercio de Freitas e Ian Guest. Tem ainda parceria com Marcos Valle, Paulo César Pinheiro e as maravilhas do irmão Lysias Enio – autor da letra de “Até Quem Sabe”, que é uma das canções mais lindas do mundo. Nesse disco, Donato canta quase tudo, exceto “Mentiras”, que tem a belíssima voz de Nana Caymmi ainda bem jovem.

Outro álbum é “Raridades”, lançado em 2018, uma compilação de faixas avulsas (hoje chamaríamos de singles), com Donato ao piano e uma participação de Nara Leão em “Fim de Sonho”. A cantora também gravou “Amazonas”, que é uma música maravilhosa!

Eu tenho uma verdadeira lista de preferidas de João Donato. Começo com todo o “Cantar”, LP de Gal Costa que ele produziu em 1974 – gosto do piano e dos arranjos que ele assina para ela. E Donato com Caetano temos “A Rã” e “Flor de Maracujá” com Lysias, que são duas delícias.

Sigo com “Brisa do Mar”, parceria com Abel Silva. Uma bossa abolerada, letra linda e aquela divisão que faz querer dançar juntinho, alegre e triste ao mesmo tempo. E “Minha Saudade” com João Gilberto, daquele disco “João Donato e seu Trio Muito À Vontade” de 1962, e “Café com Pão”, gravado com Paula Morelenbaum em 2011. João Donato fez “A Paz” com Gilberto Gil e “Gravidade Zero” com Tulipa Ruiz. Fez “Estrela do Mar” com Rodrigo Amarante e “Síntese do Lance” com Jards Macalé.

Sua música e genialidade são atemporais. Ninguém toca como ele, ninguém compõe como ele. Gosto de dizer que artistas assim são sozinhos um gênero musical. Quando a música começa, você já sabe quem é.

O bom de uma obra longa e bonita assim é que se torna eterna. Nunca perderemos João Donato, o artista sem igual. Faz muita falta a sua risada, além da sua doçura, suas camisas coloridas, os bonés, a simpatia. Vamos ouvi-lo sempre. Com saudade.

Composições e interpretações da música brasileira que falam da maternidade

Composições e interpretações da música brasileira que falam da maternidade

Canções que dialogam sobre a maternidade e exaltam figuras complexas, imensas e amadas

Olá, viajante! Nesta coluna sugiro um mergulho nas mães da música brasileira. Mães cantadas, cantoras, compositoras. Começo com “Mamãe, Coragem”. Essa canção de Torquato Neto e Caetano Veloso não é emblemática por acaso. “Mamãe, não chore, a vida é assim mesmo, eu quero mesmo é isso aqui…” Deixar a casa da mãe para cair no mundo. Ritual necessário, mas não raramente doloroso. A música virou um clássico na voz de Gal Costa no disco “Tropicália” e foi gravada no mesmo ano pela incomparável Nara Leão. Quero lembrar aqui deste trecho da letra:

“Pegue uns panos pra lavar, leia um romance
Veja as contas do mercado, pague as prestações
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos
Seja feliz, seja feliz”

Só não é mais dramática do que a letra de “Coração Materno” de Vicente Celestino, que Caetano gravou em 1968 no mesmo “Tropicalia” e, em 1999, no belíssimo “Omaggio a Federico e Giulietta”. Vale lembrar que as duas canções são antigas, do século passado. Anos 1950 e 1660. Vamos falar também da maternidade de hoje, retratada em canções contemporâneas. Em seu primeiro disco, a baiana Josyara gravou “Nanã”, escrita por ela mesma. A cantora conversa com a mãe por meio de conselhos. Uma mãe mais próxima, mais amiga, indicando caminhos. Nada de corações sangrando pela estrada. Nada de tristeza pelo ninho vazio. É musicalmente deliciosa com aquele acento Moacir Santos e João Gilberto ao mesmo tempo:

 Josyara - Foto Julia Rodrigues | divulgação

Josyara – Foto Julia Rodrigues | divulgação

“Persigo meu destino
Ouço a voz, ouço a voz de minha mãe (nanã)
Dizendo: Filha, olha ao seu redor, entenda
Tudo é como deve ser
Tenha coragem, cresça, procure um abrigo
Quando a tristeza canta, desobedeça a dor”

Quando a compositora é mãe, a história também é muito interessante. Vide “Clara e Ana”, de Joyce Moreno, talvez um dos maiores sucessos dessa grande compositora, violinista e cantora. E Anelis Assumpção gravou “Receita Rápida”, que fala da maternidade de uma forma mais fluída, mais cotidiana, ampla:

“Quem é farinha no bolo, não sola
Quem centeio integra o pão
Quem liga os ovos a todos, consola
Quem é o calor do fogão
Quem que dá gosto e recheia, põe fruta
Quem na massa põe a mão
Quem é o forno ou a forma, quenta
Quem dá forma de coração”

Mães e filhas. Maternidade. Tema complexo, imenso e realmente maravilhoso. Vamos ouvir música e pensar sobre isso?

Jards Macalé, que completa 80 anos neste mês, está presente no cenário musical e cultural brasileiro há décadas

Jards Macalé, que completa 80 anos neste mês, está presente no cenário musical e cultural brasileiro há décadas

Mais um grande nome da música brasileira completa 80 anos em março: Jards Macalé. Carioca da Tijuca, morador de Ipanema, ele foi copista de partituras para o grande Severino Araujo da Orquestra Tabajara, aprendeu a tocar em um violão de Turíbio Santos – instrumento em que compõe até hoje –, trocou ideias sobre samba e bossa nova com João Gilberto, foi fundamental na obra pós tropicalista de Gal Costa – dirigiu o histórico show “Fatal” com Waly Salomão –, é compositor de clássicos como “Movimento dos Barcos” (com o poeta Capinam) e “Vapor Barato” (com Waly). Isso só para começar!

Macalé é um imenso compositor. Em agosto de 2013, estivemos juntos no Jardim Botânico para uma longa entrevista para o livro “Vozes do Brasil” (edições Sesc). Ele me contou do “tempo do desbunde”, o final dos anos 1960 quando se reuniam nas areias do Posto 9, nas dunas da Gal, a turma da música, do cinema novo, de tudo que era novo naquela época. O músico me falou também dos anos 1980 quando parou de ouvir rádio porque “o jabá encaretou a programação” e ele se voltou para os sambas dos anos 1940, para as canções dos anos 1950. Macalé sempre misturou o jazz, o blues, o pop e o rock com a música feita no Brasil. Debussy, Ciro Monteiro, Clementina e Nora Ney são todos parte de uma mesma história.

 

Jards Macalé - Foto Felipe Giubilei | divulgação

Jards Macalé – Foto Felipe Giubilei | divulgação

 

Minha proposta é um mergulho na obra deste artista. Vamos começar com o disco de 1972, que Macalé gravou com Lanny Gordin (guitarra, violão e baixo) e Tutty Moreno (bateria). Produzido por Guilherme Araujo, o álbum tem um repertório maravilhoso: “Mal Secreto”, “Movimento dos Barcos”, “Hotel das Estrelas”, “Farrapo Humano” (de Luiz Melodia) e “Let’s Play That” – parceria de Macalé com Torquato Neto. Aliás, ler o poeta é um ótimo caminho para entender essa obra. Recomendo o livro “Torquatália”, que reúne as colunas escritas por ele e que falam muito da música feita nesse tempo.

Seguindo nos discos, vamos para 1987: “Quatro Batutas e Um Coringa”. Macalé gravou composições de Paulinho da Viola, Geraldo Pereira, Lupicínio Rodrigues e Nelson Cavaquinho. Um luxo. Anos depois, em 2011, pela Biscoito Fino , saiu o disco “Jards” – uma belíssima compilação de composições de Macalé e seus parceiros, com participações maravilhosas de Elza Soares, Elton Medeiros, Luiz Melodia, Ava Rocha, Cristovão Bastos, Jorge Helder – um timaço!

Em 2019, o professor Macalé se encontrou com os paulistas Rômulo Fróes, Kiko Dinucci, Thiago França, Tim Bernardes, Rodrigo Campos e mais uma turma de talentos dessa geração para compor, arranjar e tocar em “Besta Fera” – disco que concorreu ao Grammy Latino. Em 2021, ele se juntou ao também fundamental João Donato, e os dois mestres lançaram “Síntese do Lance”.

Todas as loas para o mais novo oitentão da música pop do Brasil. Salve Macalé! Ouça e caia no feitiço. Perceba a sofisticação das melodias, do ritmo, da intenção em cada parceiro, em cada verso. A história do Brasil passa por ali!

O melhor do forró, para aproveitar o clima junino em casa

O melhor do forró, para aproveitar o clima junino em casa

Uma seleção para curtir as delícias do forró e se inspirar com a diversidade do gênero.

De onde vem o baião? Perguntou Luiz Gonzaga. E o xote das meninas? O chiclete misturado com banana? Esses ritmos tradicionais nordestinos que nos fazem dançar ganharam o país justamente com o maravilhoso Lua – sanfoneiro pernambucano nascido em Exu, em 1912. Chegou ao Rio de Janeiro muito jovem, disposto a viver de música. Tentou cantar boleros, mas o que o povo queria mesmo ouvir era a música de sua terra natal.

Foi da festa, do forrobodó, que nasceram todas essas delícias. O forró é mais que um gênero, é uma manifestação cultural brasileira que reúne muitos elementos: a festa, a saudade do sertão, os instrumentos, os ritmos e as formações típicas, além de grandes letristas, ícones da nossa música, e canções populares.

 

Mariana Aydar - Foto: Autumn Sonnichsen | Divulgação

Mariana Aydar – Foto: Autumn Sonnichsen | Divulgação

 

Se não fosse a pandemia teríamos agora uma grande temporada de shows e festas dançantes por todo Brasil, especialmente pelo Nordeste. Para não perder de todo a graça, vamos recorrer à música. Vamos ouvir em casa uma bela seleção que começa com Mariana Aydar, cantora e compositora paulistana que ama o forró. Tanto que fez um disco chamado “Veia Nordestina”, contando em capítulos a história do gênero. Começa com a voz de Luiz Gonzaga chamando para o baile e, se ele chama, a gente afasta os móveis da sala e tira o par para dançar.

Agora vamos de Mestrinho, jovem sanfoneiro que tem grande inspiração na delicadeza do mestre Dominguinhos. Mestrinho é de Itabaiana, Sergipe, e toca que é uma beleza! Recomendo a música “Eu e Você”, para deixar o baile cheio de chamego. Mas ouça mais, aventure-se no repertório dele e descubra o grande instrumentista que ele é. “Numa Sala de Reboco”, clássico de Luiz Gonzaga, tem que estar nessa lista. E aí você escolhe na voz de quem quer ouvir. Tem Elba, Lua, Dominguinhos, trios e mais trios de forró que gravaram essa canção para lá de convidativa.

Quer forró instrumental? Procure por Nicolas Krassik, um violinista francês que vive no Brasil e é apaixonado pelo gênero. “Cordestinos” é incrível! E seu mais recente trabalho é uma leitura da obra de Gilberto Gil com quem ele tocou bastante. Forró pé de serra é aquele mais ligado à tradição. Tem Falamansa, Bicho de Pé, tem Chico César, Quinteto Violado, uma infinidade. E tem até o Forronejo, mas esse, eu confesso, conheço pouco. Mistura o eletrônico, o brega e o sertanejo mais pop com o forró para dançar.

Vale tudo para se divertir e esquecer a tristeza. Dançar para não dançar, já cantou a mestra Rita Lee. Ou como canta o velho Gonzaga: “Todo tempo que eu tiver pra mim é pouco pra eu dançar com meu benzinho numa sala de reboco”. Tem coisa melhor?

Acesse a playlist do 29HORAS Play no Spotify e participe desse arraiá sem sair de casa!

 

Mestrinho - Foto: Sesc Virada

Mestrinho – Foto: Sesc Virada