Elza Soares completa 90 anos em meio à pandemia, com intensa e inquieta produção musical

por | abr 30, 2021 | Entrevista, Musas, Pessoas, Pessoas & Ideias | 0 Comentários

Quando uma pessoa comemora 90 anos, com saúde e disposição, é hora de festejar muito. No caso de Elza Soares, é conveniente trocar o verbo “festejar” por “trabalhar”. E trabalhar muito. Em 2020, com boa parte do mundo imobilizada pelas restrições impostas pela pandemia de Covid-19, a cantora chegou às nove décadas de vida e lançou três singles, com direito a fazer videoclipes e divulgar as novidades em suas redes sociais.

Neste ano, Elza não pensa em parar. Já soltou música nova, “Nós”, com letra na qual dedica um samba a quem a fez sorrir, chorar, sonhar, ser feliz e amar. Uma canção com a cara e o espírito da cantora, que atravessou uma vida de alegrias e sofrimentos, sem que essa gangorra de emoções fizesse esmorecer a vontade de distribuir amor.

 

FOTO RODOLFO MAGALHÃES

FOTO RODOLFO MAGALHÃES

 

“Amor.” É a curta resposta de Elza diante da pergunta sobre o que a faz nunca se acomodar e pedir que todas as pessoas façam o mesmo. “Se você ama o próximo, você se preocupa com tudo. Isso se chama amor. Tem que dar a mão a quem precisa. Tem que seguir seu caminho dando as mãos.”

“Nós” teve seu lançamento em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, no último 8 de março. A associação de sua figura à luta das mulheres é recorrente, porque Elza carrega uma história de enfrentamento constante às adversidades de uma sociedade machista e violenta. Nascida de família pobre, no bairro de Padre Miguel, cresceu em outra localidade desfavorecida do Rio de Janeiro, Água Santa.

Quando compara os caminhos possíveis para uma menina pobre e preta nos anos 1930 e 1940 com as condições enfrentadas hoje por uma garota na mesma classe social, a cantora vê dificuldades semelhantes, porém com meios para amplificar sua voz. “Hoje nós temos meio de comunicação, temos que botar a cara, mostrar a cara. As redes sociais vieram para isso, para estarmos unidas. Eu acho que nós, mulheres, não temos que abaixar a cabeça para mais nada, somos nós que movimentamos o mundo.”

 

Self-made woman

Elza, ainda menina, saía de casa disposta a conseguir mais dinheiro para a família. Trabalhava, pedia ajuda na rua, ia atrás do que precisava, com tenacidade incomum em uma garotinha. Após nove décadas, segue combativa. Nas canções que grava ou no dia a dia com a mídia, segue cutucando feridas, falando de racismo, de violência doméstica, de diferenças sociais.

Casada aos 13 anos, por causa de uma tentativa de abuso sexual, foi mãe ainda adolescente. Na vida, teve oito filhos. Dois deles morreram por desnutrição, um foi entregue à adoção, uma menina foi sequestrada com um ano de idade (só reencontrada pela cantora 30 anos depois) e o caçula, filho do jogador Garrincha, morreu em 1986, aos nove anos. Em 2015, Gilson, de 59 anos, foi outra perda para seu coração de mãe.

 

Família de Elza e Mané Garrincha em casa, na Ilha do Governador, em 1963 - FOTO JOSÉ CARLOS VIEIRA | EM/D.A.PRESS | DIVULGAÇÃO LEYA

Família de Elza e Mané Garrincha em casa, na Ilha do Governador, em 1963 – FOTO JOSÉ CARLOS VIEIRA | EM/D.A.PRESS | DIVULGAÇÃO LEYA

 

A música veio para levar a vida para a frente, dando a ela uma paixão a seguir. “A música sempre foi meu caminho. Eu cresci com meus pais tocando violão e cantando. Então a música, para mim, é tudo.”

A trajetória musical, que não foi suficiente para dar tranquilidade a uma vida pessoal conturbada, não seguiu um desses roteiros de sucesso da noite para o dia. Em 1953, sem que a família soubesse, decidiu tentar a sorte no programa de rádio “Calouros em Desfile”, que era apresentado por Ary Barroso, o lendário compositor de hinos da música brasileira como “Na Baixa do Sapateiro” e “Aquarela do Brasil”, que tratava seus candidatos com humor de implacável ironia.

Elza foi se apresentar com uma roupa da mãe, que era muito maior do que ela. A tentativa de ajustá-la com alfinetes deixou seu visual esquisito, e Ary Barroso não iria deixar passar a chance de fazer graça. “De que planeta você veio, minha filha?”. E a cantora disparou: “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta fome”.

Hoje, em meio a uma pandemia que expõe milhares de pessoas passando fome, Elza é incisiva: “A gente tem fome de amor próprio, por mais humanidade e o fim de toda essa fome que temos. O resto a gente tira de letra. A pandemia veio para nos ensinar. A gente sabe que é difícil, mas a gente tem que abrir espaço para melhorar.”

Voltando a 1953, Elza cantou para Ary Barroso a música “Lama”, de Paulo Marques e Aylce Chaves, conquistando a nota máxima do programa. Os versos da canção, que poderiam soar estranhos a uma cantora tão jovem, já se encaixavam como um canto de luta contra os problemas que Elza já tinha enfrentado e ainda enfrentaria: “Se eu quiser fumar, eu fumo/ Se eu quiser beber, eu bebo/ Não me interessa mais ninguém/ Se o meu passado foi lama/ Hoje quem me difama/ Vive na lama também”.

O bom desempenho não abriu tantas portas. Pelo resto da década de 1950, ela cantou aqui e ali. As coisas melhoraram quando ganhou lugar na orquestra do professor de música de seu irmão. Com o grupo, passou a se apresentar em festas, bailes e outros eventos. Também sentiu o racismo forte, que a impedia de integrar a orquestra em alguns clubes que não permitiam negros no palco.

Elza só viu sua carreira deslanchar com o primeiro álbum, “Se Acaso Você Chegasse”, em 1960, o início de uma discografia com 35 lançamentos. O sucesso dos três primeiros discos foi posteriormente ofuscado quando ela conheceu Garrincha, em 1962. O jogador deixou a mulher e filhas para ficar com ela, e fãs e imprensa não perdoaram a cantora. O casal teve muitos problemas, com Garrincha começando o declínio no futebol e Elza com poucos contratos para cantar, por causa da rejeição popular.

Shows bem recebidos nos Estados Unidos e no México mostraram o exterior como caminho mais seguro, já que até a casa da família sofria ataques de vândalos. Eles foram morar na Itália, e Elza passou a ter uma carreira internacional, lançando discos e colecionando prêmios.

 

A cantora se apresenta em Nova York, em 1968. - FOTO PAULO LORGUS | EM/D.A. PRESS | DIVULGAÇÃO LEYA

A cantora se apresenta em Nova York, em 1968. – FOTO PAULO LORGUS | EM/D.A. PRESS | DIVULGAÇÃO LEYA

 

Depois de outros períodos conturbados, ela foi recuperando seu prestígio no Brasil. Foi importante o resgate de Elza pelo amigo Caetano Veloso, nos anos 1980. Novamente estabelecida como estrela na MPB, ela encontrou um pouco de tranquilidade para a dedicação total à arte. “Na música é onde eu expresso o que tenho vontade. Foi e sempre será a música livre, espontânea, uma expressão do que eu quero. A música era tão forte que acalmava nossa fome. A música tem sido para mim o ato de liberdade, o ato de viver.”

 

Elza Soares em show com Caetano Veloso, em 1986 - FOTO ARQUIVO | AGÊNCIA | DIVULGAÇÃO LEYA

Elza Soares em show com Caetano Veloso, em 1986 – FOTO ARQUIVO | AGÊNCIA | DIVULGAÇÃO LEYA

 

 

Antropofagia e jovialidade

Ficou sem gravar um disco de músicas inéditas entre 1988 e 1997. A partir de então, sua produção fonográfica é intensa e cada vez mais mostra uma cantora com a cabeça aberta a todos os gêneros. Nos estúdios, teve colaborações de um verdadeiro A a Z de bambas, em uma lista que inclui Caetano, Chico Buarque, Carlinhos Brown, Lenine e muitos outros.

Esse ecletismo parece motivado pelo grande interesse dela por samba, jazz, rock, bossa nova e música eletrônica. “Eu acho que cantar é liberdade. Você tem liberdade para cantar o que gosta, o que fique bem na voz. Eu sempre tive liberdade para escolher o meu repertório. Chet Baker, Caetano e Chico são meus preferidos. Mas eu escuto todo mundo.” Em 2014, chegou a apresentar o show “A Voz e a Máquina” acompanhada apenas por DJs.

Seus álbuns mais recentes têm letras contundentes e uma miscelânea sonora arquitetada por ótimos músicos da nova geração. A entrega de sua voz tão particular a essa MPB moderna tornou clássicos instantâneos os álbuns “A Mulher do Fim do Mundo” (2015), “Deus É Mulher” (2018) e “Planeta Fome” (2019).

 

Elza Soares com a cantora Mc Rebecca, no lançamento da música "A Coisa Tá Preta" - FOTO RODOLFO MAGALHÃES

Elza Soares com a cantora Mc Rebecca, no lançamento da música “A Coisa Tá Preta” – FOTO RODOLFO MAGALHÃES

 

Elza teve recentemente uma oportunidade de contar sua história e elucidar muitas passagens conturbadas de sua vida, até mesmo o ano correto de seu nascimento. É 1930, mas como trocou de documentos ao se emancipar para se casar ainda adolescente, fontes variadas davam a ela idades diferentes.

Esse e outros casos foram contados a Zeca Camargo, que transformou o material em uma completa e carinhosa biografia, “Elza” (editora LeYa, R$ 69,00), ainda em catálogo. Os relatos no livro mostram a jovialidade de Elza, o que acaba se refletindo em seu trabalho, sempre disposta a gravar com músicos jovens. “A gente sempre busca gente jovem, que está começando uma carreira. Eu os alimento, eles também me alimentam. Isso me mantém viva, acho importante.”

Alguns temas já são aceitos no discurso de uma mulher negra e madura, como o racismo e o feminismo, mas algumas questões parecem ainda incomodar, como falar de sexualidade. Ela exalta a liberdade sexual em músicas como “Eu Quero Dar para Você” ou “Pra Fuder”. “Eu me sinto livre. Você tem liberdade para ser e fazer o que bem quiser. Acho que você ser livre é isso aí.”

Vacinada, mas ainda confinada para seguir se protegendo, Elza sente saudade do carinho da plateia. Na pandemia, procura a aproximação virtual com os fãs. “Eu me mantenho ativa nas redes sociais. Converso com eles, recebo carinho, é algo recíproco.” E a questão política é o que mais a preocupa, mas é contundente e firme em seu diagnóstico: “O problema depois é votar. É necessário. Se não souber votar, fica ruim.”

 

Elza Soares no lançamento da música "A Coisa Tá Preta" - FOTO RODOLFO MAGALHÃES

Elza Soares no lançamento da música “A Coisa Tá Preta” – FOTO RODOLFO MAGALHÃES

 

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