Adriana Calcanhotto lança disco sobre a vida pandêmica

por | nov 3, 2020 | Entrevista, Pessoas, Pessoas & Ideias | 0 Comentários

O mundo parou em março quando foi decretada a pandemia. E o tempo ganhou um novo sentido. Só que a arte subverte tempo e espaço. A nova experiência da vida pandêmica brotou no disco de Adriana Calcanhotto, “Só canções da quarentena” – um trabalho concebido, composto, registrado e lançado durante os longos meses de isolamento social no país. A cantora é uma das artistas brasileiras que mais (e melhor) deu forma às angústias, aos medos, aos desejos e às saudades provocados por esse período. Adriana é alguém que lembra a potência criativa e a resiliência do Brasil.

 

Foto Leo Aversa

 

O trabalho de composição foi diferente de tudo o que a cantora já havia feito. “Eu era levada pelo impulso das notícias, das emoções provocadas através das telas”, conta. E a disciplina foi a companheira de todo o novo processo criativo. “Acordava, fazia café, vinha para o estúdio aqui de casa e escrevia, era quase um surto”. Até o almoço, sempre tinha uma canção inédita. “Como se tivesse a missão de fazer pão todos os dias. Mas não sei fazer pães, só sei fazer canções”. Foi assim que no final de maio o disco estava pronto e foi lançado.

 

Foto Leo Aversa

 

“Só” foi concebido em 43 dias, entre 27 de março e 8 de maio, o álbum traz a ficha técnica até da hora da composição, é quase um diário, um caderno de anotações. “Meu cérebro estava preparado, antes da pandemia iria a Coimbra lecionar, costumo pedir esse ritmo intenso de composições aos alunos e fiquei com aquilo dentro de mim”, lembra.

Justamente por estar sozinha, Adriana buscou parcerias distantes. O disco teve a mão de pessoas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Salvador, Orlando e Tóquio. “Falar com quem está longe e fazer música assim é um jeito de trabalhar que uso há muito tempo, mesmo antes da quarentena, mas a sensação era de que todos estávamos ainda mais distantes”.

“Céu preto inteiro antes da uma
Ninguém na rua, nem mesmo a luz da lua
Eu e você no pensamento
Eu e você no batidão do peito”

Música “Ninguém na Rua”, abertura do álbum “Só”

 

Foto Leo Aversa

 

Ecos e poemas

Adriana Calcanhotto realmente não parou. Em outubro, lançou nas plataformas de streamings sua releitura de “Futuros Amantes”, de Chico Buarque. Na voz da cantora, a música ganha um tom teatral, e foi transformada em par de “Os Ilhéus”, canção do próprio repertório. É uma das trincas mais suntuosas do show da turnê do disco “Margem”, de 2019, que percorreu Brasil e Portugal também no ano passado.

As duas músicas discorrem sobre o tempo depois de nossa civilização, e apostam no amor e na virtude, e se encontraram no palco. O álbum “Margem” fala de amor, desamor e como tratamos nossos oceanos. A composição de Chico é de 1993, mas é muito atual e lançá-la agora carrega novo sentido. “Essa canção fala do ponto de vista do futuro, de como as civilizações são cíclicas, e indaga como estaremos, está muito na frente”. O CD e o DVD do show completo chegam ao público neste mês.

Sobre o cuidado com a vida, a humanidade ou falta dela, a música “Dois de junho” também carrega questionamentos. A música é dedicada ao menino Miguel Otávio, de 5 anos, que morreu após cair de um prédio de luxo na área central de Recife na data que dá título à música. Cantando, Adriana Calcanhotto relembra a trágica morte da criança, denuncia o racismo brasileiro e está disponível nas plataformas digitais.

A renda dos direitos autorais da composição foi revertida ao Instituto Menino Miguel, vinculado à Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). “Essa canção entra no bloco de músicas da pandemia, não existiria se não estivéssemos vivendo esse momento, fecha o ciclo de composições dessa experiência”, reflete.

“No país negro e racista
No coração da América Latina
Na cidade do Recife
Terça-feira, dois de junho de 2020, 29 graus Celsius, céu claro
Sai pra trabalhar a empregada, mesmo no meio da pandemia
E, por isso, ela leva pela mão Miguel, 5 anos, nome de anjo
Miguel Otávio, primeiro e único
Trinta e cinco metros de voo do nono andar
Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar
O destino de Ícaro, o sangue de preto, as asas de ar”

Música “Dois de junho”

 

Foto Leo Aversa

Filha do sol

Os anos passam, Adriana se torna mais caseira. “Meu lugar preferido no Rio de Janeiro é minha casa, no meio do mato, nesse sentido a quarentena já era um pouco meu estilo de vida”, ri. A cantora é gaúcha, mas mora na cidade maravilhosa, ama o sol e, se depender dela, busca viver sempre no verão. “Meu ideal de vida é estar no calor!”

No Rio, sai pouco. Antes da pandemia, frequentava casas de amigos e casas de shows. “Sai menos ainda nesses tempos, no final de setembro me deparei com duas cidades, uma que respeita as regras sanitárias de distanciamento e outra que nem sequer usa máscara, fiquei impressionada e ainda mais isolada”.

A cantora traz o amor pelas artes de sua terra natal, lugar onde conheceu artistas que a marcaram. “Em Porto Alegre, cada esquina tem uma memória, eu amo a Fundação Iberê Camargo, nos tornamos amigos, ele abriu uma verdadeira janela na minha cabeça sobre arquitetura”. Adriana ainda lembra com carinho da Casa de Cultura Mário Quintana, que faz 30 anos.

Em um rico e estimulante ambiente com estudos clássicos, arquitetura, arqueologia, a gaúcha também é professora na Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra, onde dá aulas no curso “Como Escrever Canções”. Vai sempre no início da primavera, com exceção deste ano incomum. “Fiquei por aqui, mas não faço balanço de tudo o que ainda estamos vivendo, a pandemia serviu para olharmos o presente, viver o dia de hoje e pensar que o planeta precisa respirar. O que a natureza faria se não houvesse a pandemia? A gente nunca sabe o que vai acontecer”, finaliza.

 

 

 

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